23 de jan. de 2010

Além da transparência e da opacidade, (Resposta ao Vinícius Reis)


Caro Vinícius,
Tentando responder a tua pergunta colocada no Twitter.
Vamos ao histórico.
O Daney em uma bela conversa com o Godard fala algo como: O cinema se equilibra entre pedagogia e sedução. Nesse mesmo post eu digo que o problema é outro.
Porque?, v. me provoca.
Essa fala do Daney parece ser pautada por uma clivagem que prevalece ainda hoje e que faz uma divisão entre transparência e opacidade. Todos conhecemos o excelente livro do Ismail de 1977: O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Essa clivagem não me parece dar conta de importantes filmes e realizadores contemporâneos. Não é por acaso que o próprio Ismail acrescenta na reedição do livro um capítulo sobre o dispositivo.
Porque não é o suficiente?
Podemos fazer um recuo na divisão transparecia/opacidade até o ponto em que eu entenderia essa dicotomia fundada na separação natureza/cultura. Ou seja, de um lado há um uma certa objetividade, o real, a verdade da natureza das coisas se fazendo, de outro a coisa feita, aculturadas; a representação. Mantemos a dicotomia representação de uma lado, objeto do outro. O problema certamente não é a representação, mas as consequencias de se apostar na objetividade da natureza, da verdade da construção.
É interessante vermos como o recurso ao “real”, garantido pelo processo, é muito utilizado na TV e na publicidade. A Ilana Feldman escreveu um ótimo artigo sobre esse apelo realista e as imagens amadoras. (O apelo realista), isso aparece nos realitys, claro, e em uma enorme quantidade de anúncios levados ao limite em suas versões mais cínicas, como o famoso comercial da Dove. O processo nesses casos, mas também em boa parte do cinema engajado dos anos 60, precisa ser nitidamente separado do produto final, uma vez que ali resistiria uma objetividade, uma revelação não mediada da mediação. Ou seja, expõe-se verdade do engodo, enquanto a obra acabada é só engoda. As leituras mais simplórias de Brecht, por exemplo só ressaltam esse ponto; a revelação do artifício. A pedagogia da construção, a desmistificação do engodo.
Então, de um lado a pedagogia, de outro a sedução, que tão bem conhecemos.
O que me parece necessário colocar em perspectiva é:
Primeiro, o processo não é menos construção que a obra. A opacidade não é mais uma estratégia de desmistificação ou revelatória. Ou seja a presença do processo no interior da obra não está mais ligada ao distanciamento. Toda natureza é cultural, toda natureza é construção, é o que não cansa de repetir o Eduardo Viveiros de Castro. Ou seja, processo há, mas ele não pode ser pensado como o portador de uma verdade. O que há no processo de uma obra revelado ao público são outras estratégias de criação.
Segundo. E aqui o mais interessante e de onde efetivamente vem meu comentário sobre a impossibilidade de operáramos dentro de uma clivagem processo/obra, pedagogia/dedução. Como pensar filmes como - Juventude em Marcha, do Pedro Costa, Moscou, do Coutinho, Aquele Meu querido Mês de Agosto, do Miguel Gomes, Brasília Teimosa, do Gabriel Mascaro ou mesmo o filme A falta que nos move, Christine Jatahy.
De formas diferenciadas esses filmes, acredito, tem em comum a impossibilidade da clivagem entre processo e obra, entre, no limite, cultura e natureza.
Voltando ainda ao Eduardo Viveiros de Castro, acho que o cinema brasileiro vive um Devir Tupinambá - (com a licença da brincadeira!) Para pensar a relação dos Tupinambás com os portugueses que aqui chegavam, o antropólogo escreve que para os índios, o que importava era a troca e não a identidade. Há um exemplo delicioso em uma entrevista em que ele conta que a pior ofensa para um índio é dizer que ele é avarento. Por outro lado os brancos dizem que não se pode confiar nos índios. Depois de fechar um negócio - te dou 10 mil para filmar aqui - uma semana depois, o índio quer renegociar. Para o branco, fechado o negócio a relação está clara e definida, para o índio é ali que tudo começa, ou seja enquanto um fechou o processo de troca o outro está apenas começando. Evidentemente não cabe aqui fazer um paralelo entre as partes envolvidas em um documentário e a relação entre ameríndios e europeus no século XVI. O processo é a troca entre as partes em que o fim é cambiante, nunca a identidade, nunca a estabilidade. Há um devir Tupinambá no cinema contemporâneo brasileiro. O que é invariável para os Tupinambás é a variação contínua.
A leitura Deleuziana é clara, para quem a essência é a mudança.
Seguindo essa linha, o que entendemos por processo nesses filmes é então uma construção em si e não o ato de construir. Ou seja, não é possível separar, para além de uma cronologia, o que é obra e o que é processo, nos dois casos estamos inseridos em uma invenção, uma montagem de seqüências e de escolhas. A separação não se sustenta então em termos de uma clivagem construção/fim.
Em Moscou, por exemplo. Primeiramente existem dois diretores, um do filme outro da peça - escolhido pelos atores -, a peça que será performada como ensaio. Logo no início do filme, Henrique Dias tenta organizar a cena - do filme - e anuncia: “Ele (Coutinho) é o chefe”. Entretanto, essa chefia é esquiza, desde o início é o que pretende Coutinho, multiplica-se os “autores”, ou os chefes, como quer o Kike, para que todos se percam, e seus lugares sejam assim esvaziados sem que eles deixem de existir, ou seja, de participar de um agenciamento que lhes escapa. Ah, mas sempre escapa, dirão os relativistas. Mas não é desse relativismo que se trata, não é dessa presença do acaso ou do descontrole inerente à realidade e que tentamos organizar. Mas de uma afirmação do descontrole como lugar mesmo de potência, algo absolutamente diferente. “Não se trata de um relativismo da verdade, mas da verdade do relativo” (Deleuze citado pelo Viveiro de Castro - Encontros p90)
O Devir Tupinambá não multiplica os pontos de vista sobre algo, mas coloca a própria noção de ponto de vista em xeque - A pergunta quem vê perde o cabimento. Ela não pode ser respondida sem que se enumere diversos atores, sendo o filme não uma síntese, mas uma multiplicidade.
Na clivagem obra/processo, pedagogia/sedução há uma troca de pontos de vista, como se a instancia enunciativa saísse de um ponto para focar outro. Saísse do mundo construído para o mundo que constrói. - natureza, cultura - Pois no Devir Tupinambá de Moscou e Meu querido mês de Agosto a dicotomia Mundo/Ponto de Vista faz água.
Minha preocupação Vinícius, é incidimos em uma despontecialização dessas narrativas e imagens se sustentarmos uma divisão em dois do universo fílmico, aquele da obra e aquele do processo. Tal divisão é clara nos modos que a produção capitalista se organizou no século XX. A linha de montagem, as arquiteturas disciplinares, as formas de trabalho hierarquizadas e com narrativas Aristotélicas. Os meios, escondidos, se revelados apontavam para o sacrifício, para a exploração, para o tédio, para a dor contida em cada objeto forjado dentro desse modelo. O cinema mesmo, tanto tempo flutuando na discussão sobre sua própria industrialização, como se essa discussão falasse apenas dos meios de produção e não de uma separação que contaminaria toda a obra, ao separar o processo e a obra permanecemos sob a égide da separação que coloca de um lado a espontaneidade, a verdade, a natureza e outro a construção, a cultura.
Ou seja, talvez possamos esquecer essa divisão para pensarmos esses filmes, primeiramente dizendo que o fim, aquele do indivíduo exposto e acabado, do objeto pronto, da narrativa encerrada, nunca se efetiva. Mas, mais importante que isso, é pensar essa narrativa como uma máquina que não faz sistema e que vive se abrindo a uma multiplicidade. (O Didi-Huberman no último livro dele recupera o Brecht para falar dessa multiplicidade presente nas foto-montagens do diário de Trabalho do Brecht, uma dimensão mais complexa do distanciamento Brechtiniano) Não se trata nem de um processo separado do fim, nem o processo para dar conta de um contexto, de um modo de produção, mas o fazer como lugar mesmo de conexão e invenção, inseparável do que há a ser feito, a ser criado.
Em aquele meu querido mês de Agosto, há um seqüência em que a equipe parece juntar toda a comunidade para mostrar o que havia feito. Uma pessoa da equipe avisa que se juntaram ali para filmar o Chapeuzinho Vermelho em versão horror. Vemos na platéia uma senhora que, aparentemente também pertencente à comunidade e faz o papel da vovozinha sacrificada a machadadas. A partir dessa seqüência poderíamos supor que o filme ficara entre esses dois registros - como por exemplo o curta metragem Dada, do Duda Vaisman, você se lembra? que nos anos 90 trabalhara justamente com idas e vindas entre o registro da narração ficcional e a apresentação do processo. Aqui há, digamos, um aprofundamento de tal registro. Chapeuzinho vermelho será abandonado e mesmo a comunidade não passa a ter a importância que essa seqüência ameaça lhe dar. No lugar de ficar entre os dois registros o filme vai somando camadas. Pouco depois, duas jovens procuram a produção do filme que se diverte jogando malha ou algo do gênero. Elas desejam fazer parte do filme, se oferecem para serem filmadas. O filme filma a cena. A jovens se dirigem ao técnico de som, o som que ouvimos é capturado por ele. O técnico de som diz que não sabe de nada, pede para elas falarem com uma outra pessoa mas não tem dúvidas em acompanhá-las e continuar gravando o som de uma cena filmada com a câmera muito distante, sem decupagem, como que por acidente.
Essas camadas de AMQMA não fazem diferenças entre que é o filme trabalhando para mostrar algo, para fazer uma escritura e o que é a própria escritura. Não há interrupção entre o que seria a vida dos realizadores em seus trabalhos, o que é o trabalho em si ou o que é a o espaço e os personagens documentados. Isso não quer dizer que não haja diferença, apenas não há interrupção. Vida, trabalho, criação e criatura fazem parte de um mesmo fluxo que não para de nos levar para o interior do pais, para especificidades de uma região de Portugal, para o extraordinário mês de férias de Agosto, naturalmente onírico, e para o prazer do cinema. A escritura que se dobra, brincar de cinema, brincar com o mundo para que ambos transbordem seus encantamentos.
O real sob o risco do cinema.
Desculpe-me ter me alongada, mas ando pensando nisso e aproveitei para organizar uma coisinha ou outro. 140 caracteres as vezes é pouco né?

Abração Cezar


ps. percebi relendo que deixei no texto um "a" no lugar de um "o" e vice-versa, como faz parte do processo e dá mais veracidade à carta, resolvi deixar.

Um comentário:

Vinícius Reis disse...

Rapaz, sempre aprendendo tanto contigo! Muito boa essa história de "devir tupinambá"! Eduardo Viveiro de Castro já está aqui na fila, para ser lido e descoberto, desde a conversa na lentilhada. Quando leio "o processo não como portador da verdade" penso em possíveis potências falsificantes do processo. Será? Os que gostam de Brecht precisam ler esse seu texto. AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO é filme para ser revisto, apreciado novamente. Gostei muito. Vi a novidade sem dar conta dela. No Tuiter você falou do Godard, do Daney, levantou a bola e fiquei esperando o corte... Chegou agora. Obrigado!