7 de set. de 2015

Que horas ela volta? - notas sobre a politica no filme


    A maior invenção do filme da Anna Muylaerte é o personagem da filha de Val, interpretado pela Camila Mardila.
    Lembrar dos recentes “O som ao redor”, “Casa grande” e “Doméstica”, do Mascaro, parece pertinente na medida em que esses filmes colocam no centro da narrativa os embates de classe e os sistemas de opressão das elites que passam por relações de afeto.
    Mas, a singularidade do personagem de Jéssica é comparável ao magistral personagem do “Invasor”, de Beto Brant. Esses personagens não querem o dinheiro dos ricos, mas pedaços dos modos de vida. A piscina, o quarto com cama confortável, o ar condicionado, o sorvete. O Invasor seduz a filha do rico e uma relação se dá entre eles. Jéssica também seduz – quase a revelia, é verdade. A jovem perturba a ordem da casa em diversas esferas.
    O que ela traz para a casa é um subversivo princípio de igualdade. “Não sou melhor, mas também não sou pior”. O princípio de igualdade sensível é expresso na cena da piscina e na forma como Jéssica “invade” o quarto de hóspede e pula na cama macia, rompendo a barreira que separa quem tem direito ao frescor do ar condicionado e quem não tem – sua mãe. Jéssica não espera o convite, enfia o pé na porta e usufrui de tudo que por direito não deveria ser exclusivo de uns e não de outros. Só um invasor rompe a barreira que organiza as sensibilidades em uma sociedade onde a opressão de classe pouco choca.
    A personagem de Jéssica inaugura então uma narrativa da emancipação de Val. Depois de desmontar a ordem do que é alto e baixo – as notas, a vivacidade, o preço do sorvete, a curiosidade – a personagem se revolta em perceber a mãe submissa aos esquadrinhamento da casa. Jéssica é movida pelo esforço individual, pela necessidade de sucesso pessoal, diferentemente do jovem de sua idade, Fabinho, envolto nos excessos do mundo familiar. Quando Jessica se revolta e vai embora, depois da decisão da dona de casa de isola-la no canto das domésticas, todas as rupturas que ela produziu não são suficientes para afetar a família rica que celebra o fracasso do filho com um intercâmbio na Austrália – a escolha deste país é mais uma das ótimas opções de roteiro. Mas, pior, a invasão de Jéssica e seu compartilhamento fugaz do mundo dos ricos também não é suficiente para mobilizar Val. A exuberante personagem interpretado pela Regina Casé precisa ainda do elemento melodramático para efetivar a ruptura. Ela precisa cuidar da família, fazer o papel de mãe que não pôde fazer com a própria filha.
    Enquanto Jéssica era a invasora e perturbava a distribuição dos direitos da casa grande, a política estava sendo feita. No momento em que Val deixa a casa para assumir o neto afetada pela possibilidade de reinventar a vida da filha, as coisas voltam aos eixos. Os pobres morando no lugar dos pobres, correndo contra o tempo, como pobres, e os ricos com suas vidas de viagens, motoristas e prazeres, como ricos. Os pobres fixos em seus territórios - com a esperança de um sucesso pessoal – e os ricos desterritorializados, com a vida ganha por princípio. Essa virada narrativa tende a esvaziar a força política do filme.
    A virada melodramática esvazia a invasão como gesto político e, apesar do final feliz – a família junta, o sucesso de Jéssica e a ruptura da circuito que coloca filhos separados de mães – a divisão de classe não sofre qualquer abalo. O embate é esvaziado pela forma como o melodrama se sobrepõe ao enfrentamento. Val provavelmente arrumará um novo emprego, como diarista talvez, enquanto a família de Fabinho terá o trabalho de conseguir uma nova empregada doméstica que continuará sem ar condicionado.  Assim, a luta de classe se dissolve na forma como o opressor não é afetado.
    Se não é no interior da narrativa que a transformação política se faz, sobretudo porque não podemos dizer que Val - ou a família rica - está agora tocada pelo princípio de igualdade efetivado por Jéssica, como o filme se coloca então como discurso político?
    Resposta óbvia, tendo o espectador como objeto. O que o filme pede então os espectadores? Pensado como um filme político, que forma de engajamento do espectador o filme pode esperar? Primeiramente que reconheçamos que há um mundo sensível na vida dos pobres e que esse mundo não é segundo em relação à sensibilidade dos ricos. Para construir isso o filme precisou de uma família muito rica, com uma mãe para quem as palavras de Val não existem, para contrastar com uma doméstica carinhosa, criativa e sensível, mas que não sai de seu lugar de submissão, a não ser pela virada melodramática. O filme pede ainda que o espectador não compactue com a alienação e preconceito dos ricos, uma vez que essas são as formas de fazer menor quem é igual – Jéssica. Não é pouco, é verdade, mas esses modos de engajamento do espectador são tênues diante da manutenção da tragédia da divisão de classe que o final feliz privado encobre.
      Enquanto Jéssica  invadia ela se colocava como portadora de um direito e de uma sensibilidade lá onde uma igualdade não se efetivava. No final feliz do filme a igualdade continua não se efetivando, mas o sucesso pessoal aparece como saída. Jéssica e seu filho talvez escapem, o mundo não.



   

13 de ago. de 2015

A greve continua - UFF


Depois de acompanhar de longe a greve da UFF que já dura dois meses, ontem fui à assembleia que deliberou pela continuação da greve.
A assembleia acontece na semana em que o governo federal amplia em mais de 5 bilhões as verbas para o FIES. O FIES é, segundo o Ministério da Educação, “um programa destinado a financiar a graduação na educação superior de estudantes matriculados em instituições não gratuitas”.
Não gratuitas é um eufemismo para falar dos grandes grupos privados que lucram com educação.
Esta foi a terceira vez no ano que, por meio de medida provisório, o governo ampliou as verbas do FIES.
Alguns grandes grupos privados, como Estácio, Anima e Kroton tiveram, segunda matéria do Estado de São Paulo, aumento de receita em mais de 200% de 2010 até hoje, sendo o FIES grande responsável pela saúde financeira desses grupos.
O grupo Kroton – Pitágoras, Anhanguera, etc – tem quase 60% de seus alunos presenciais matriculados pelo FIES. O detalhe mais triste dessa conta é que, no mesmo período, os gastos desses grupos com professores caíram em 10% da renda líquida. Se em 2010 45% dos gastos eram com professores, hoje esse gasto está em 35%.
A assembleia que manteve a greve acontece ainda em meio à paralisação de universidades que não estão em greve. A escassez de recursos é tanta que parece ser consenso que o governo está interessado em que as universidades fiquem um bom tempo paradas para economizar com custos básicos – eletricidade, água, viagens, reformas, etc.
Diante desse quadro em que a educação pública perde verbas e as “não gratuitas” ganham, não há outra alternativa. É preciso estar em greve certo? Errado.
Na assembleia de ontem se reafirmava uma relação de causa e efeito que me parece perniciosa à luta de todos aqueles que tem interesse na educação pública.
A greve é uma forma de luta e pressão, absolutamente legítima. Entretanto, a precariedade da educação, os baixos salários, o privilégio aos grupos privados não justificam em si a greve. A greve só é justificável quando ela se apresenta como a melhor forma de luta. Nesse sentido, minha impressão é que a assembleia de ontem apenas reafirma que a paralisação das universidades hoje não é a melhor forma.
1 - Fazemos o jogo do pagador desinteressado na educação. O mesmo governo que faz gigantescos repasses para os grupos privados quer as universidades fechadas para não ter gastos por uns meses. O que fazem os professores? Fecham as universidades.
2 - A greve é tímida. Uma professora dizia: precisamos botar a boca no trombone. Sinto muito cara colega, não há trombone, nem bocas. Dos mais de 3000 professores da UFF quantos estão mobilizados? Diante da penúria, a greve colocou os campi vazios e as ações de greve em nada ameaçam a estabilidade do ministério ou as práticas do governo, como prova a nova medida provisória.
Essa é uma greve de pessoas comportadas demais para a situação, nós e os estudantes.
3 -Depois de 2 meses de greve a assembleia não fez uma reflexão crítica sobre suas estratégias; como se falar dos absurdos desse governo bastasse. Se a falta de democracia na educação fosse suficiente para a greve, passaríamos os próximos muitos anos em greve.
A dureza de uma assembleia como a de ontem é sair com a sensação de que a crise é também de criatividade e capacidade de luta para enfrentar uma situação que atinge o país e a democracia como um todo.
Para colocar a boca no trombone é preciso inventar motivos para as bocas aparecerem, é preciso inventar o trombone e tocar fora do tom.

Vivemos uma curiosa crise


Depois de ficar um ano fora do país, duas coisas me chamam a atenção na cidade.
Primeiramente uma elitização generalizada.
Em Copacabana e Botafogo, por exemplo, novas lojas abriram com dezenas de marcas de cervejas importadas, a maioria com preços entre 22 e 35 reais cada long-neck. O mesmo vale para o pão, o vinho e a hóstia.
Uma amiga que possui uma loja em um shopping me dizia que nos últimos meses o número de clientes caiu muito, mas as vendas não. Quem entra na loja está comprando os produtos mais caros.
Não tenho dados, mas tenho a forte impressão que os carros dos vizinhos cresceram junto com o Bradesco e o Itaú, que anunciaram crescimentos em torno dos 20%, mais ou menos como os carros.
O segundo dado que chama atenção é a absoluta desconexão entre o cotidiano da cidade e a imprensa. A centralidade das disputas palacianas na grande imprensa é como o monotematismo de personagens de Dostoievsky que não conseguem sair da neurose que os toma.
Não sei o que se passa na televisão. Deveria, é claro, mas, lendo os jornais, tem-se a impressão que o mundo parou, que ninguém foi ao teatro ver a peça do Rosemberg, que ninguém viu o lindo filme do Ozon, que ninguém acompanhou o ótimo seminário “A vida secreta dos objetos” ou que ninguém teve que ser humilhado no transporte público naquele dia.
O divórcio entre as disputas palacianas e a vida da cidade parece ser movida por um enorme desejo de imobilismo.
“Não se mexa, estamos discutindo se a Dilma cai ou não”
“Não se mexa, vamos pegar o Cunha e o Aécio”
Que prazer em ver no cotidiano que a cidade é muito maior.
Hoje a Folha diz: na periferia de São Paulo não houve ruídos produzidos por homens e mulheres com panelas. Claro que não. Mas não é porque são a favor de Dilma, como gostariam os governistas, mas apenas porque vão acordar cedo, porque o tempo lhes foi expropriado.
A periferia é a cidade e não uma intriga que reúne o pior do capitalismo e o infantilismo engravatado.
De São Gonçalo saiu a moça que não bateu panela e, depois de esperar longamente na fila, pegou a barca lotada para vir trabalhar no MacDonald do Rio de Janeiro. Ela só não sabia que o dono do transporte que a humilha está preso.
Tudo bem, pelo menos ela sabe que em Furnas há uma peça de graça com grandes atores: Silêncio.

O que significa a expressão “país de merda” ?


Claro que não é de hoje que este termo atribuído ao país aparece em momentos de raiva ou quando somos humilhados pelos serviços públicos ou como consumidores.
Antes de ir para a “merda”, é curioso que a expressão não seja: esse “país merda”, caracterizando um adjetivo ao país, no lugar, por exemplo, de “país maravilhoso”.
A presença da preposição “de” dá uma materialidade à merda.
Ao que parece, quando alguém diz “estou cansado desse país de merda” ou “não volto para esse país de merda”, está dizendo que o país é feito de merda, o que retira qualquer ideia metafórica da expressão e demanda do leitor, ou companheiro de conversa, que ele tente imaginar que boa parte do que constitui o país é merda.
Assim o que está em questão é aquilo faz o país ser o que o país é. Ou seja, quando se diz, “país de merda”, está se dizendo que o que sustenta e garante que o país seja um país, é merda.
Mas, o que faz um país então?
Seu território, poderíamos começar dizendo. Mesmo se em tempos de fronteiras fluidas para mercadorias, finanças e informações o território parece pouco definido, entretanto ele ainda existe, com muita força. Os haitianos, sírios e africanos que o digam!
Uma língua também. No caso brasileiro, mais de 100 línguas são faladas por grupos indígenas, essa mistura junto ao português que se desdobra em sotaques e expressões que parecem constituir uma certa noção de país. E assim vamos... A padaria da esquina, climas, artes, uma certa noção de povo que se diz pertencer a esse país, uma certa organização dos poderes e tanto mais.
Ainda no caso brasileiro, não teria dificuldade em dizer que o país existe. Me parece inegável. Nesse sentido, a expressão é possível, uma vez que o país existe e é habitado, ou seja, sua existência depende de criações e interações entre humanos e não-humanos que de alguma forma se referem ao território, à língua, à certos poderes, artes, etc.
A expressão não seria possível se fosse sobre algo que não existe ou sobre algo que não depende de nenhum processo social ou subjetivo. Esse “Carbono 12 de merda”, por exemplo. Ou ele é Carbono 12 e não é de merda, ou ele é de merda e não é carbono 12. O que não significa que merda não tenha carbono 12, é claro.
Bem, chegamos então à validade da expressão.
O país existe, merda também é algo que existe e a preposição “de” nos informa que aquilo que constitui o país – povo, língua, território, culturas, relações, padarias, etc, - é de merda.
Nesse sentido aparece uma dimensão metafórica: uma língua não pode ser feita de merda, mas ao ser uma língua merda, entende-se que a expressão “país de merda” se refere à uma conjunto de coisas merda que constituem o país.
Entretanto, um outro problema, se coloca.
Quem diz “um país de merda”? Alguém que compartilha algo desse país? Fala a mesma língua merda, habita o mesmo território merda, vai na mesma padaria merda? Ou trata-se de um ser isolado sem nenhuma relação com qualquer coisa que faça com que um país seja um país? Se esse for o caso, a expressão se torna possível, entretanto não verificável. Por exemplo, eu poderia dizer que o planeta HD 219134b é um planeta de merda, uma vez que não sei nada sobre ele, mas, se eu ler duas linhas sobre o planeta, a mínima informação já impossibilita essa afirmativa.
Ou seja, a única forma de a expressão “país de merda” ser usada é quando se compartilha algo com o país, quando se faz parte dele, quando se conhece o território ou se fala a língua.
Em outras palavras, só é possível usar a expressão “país de merda” quando há continuidade entre a merda que faz o país e a merda que me faz.
É por essas e outras que evito a expressão.

18 de jul. de 2015

A democracia e o hino da Suécia


Em 2007 o Lars von Trier lançou o filme “O diretor”, nele um ator é colocado no lugar de um diretor de uma empresa. Sem ter noção do que faz ali, dizendo e fazendo absurdos, a empresa e as relações de poder continuam a existir à revelia de sua loucura. O filme fala de uma empresa autonomizada, em que os sujeitos são irrelevantes.
Como no filme de Trier, o ex-ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, narra o funcionamento do Eurogroup como um corpo antônimo em que os sujeitos, ideias e argumentos não fazem papel algum.
Em um momento da entrevista ele diz:
“Você coloca um argumento que realmente trabalhou e você é apenas confrontados com olhares vazios. É como se você não tivesse dito nada.... Você pode muito bem ter cantado o hino nacional sueco - você tem a mesma resposta.”
No Eurogroup descrito por ele, tanto faz ser o ator do filme de Trier ou um brilhante intelectual da economia atuando como ministro. O funcionamento do sistema se organizou de tal maneira que a entrada de outra voz ou sujeito, mesmo com as credenciais para se fazer ouvir, não existe.
O que Varoufakis narra é propriamente a desconexão entre o poder econômico que organiza a política e a democracia. A democracia é essencialmente um sistema instável em que o poder do momento é permeável ao povo, uma vez que é representante – parte – do próprio povo. Eliminar a democracia é antes de tudo transformar em ruído o que é fala - nos termos de Rancière - ou, transformar em hino da Suécia o que é argumento econômico.
O ministro das finanças alemão, o cérebro dessa máquina acéfala, é muito claro. As eleições dos países membros não podem alterar o funcionamento do sistema.
"Bem, talvez não devamos realizar eleições mais para os países endividados", diz Varoufakis. A ironia do grego é a realidade que estamos vendo na Grécia.
O que aconteceu não foi que as negociações não deram certo, o que aconteceu foi que não havia lugar para negociações, simplesmente porque entre a democracia e a ausência dela existe um abismo. São duas formas de entender o lugar dos sujeitos no poder e no mundo.
“As negociações demoraram enormemente, porque o lado deles se recusava a negociar”. “Quando eles nos perguntavam o que pretendíamos fazer com o VAT, eles rejeitavam a nossa proposta, mas não vinham com uma contra-proposta. E então, antes de chegarmos a um acordo, eles mudavam para outra questão, como a privatização. Nós apresentávamos propostas, eles rejeitavam. Então eles passavam para outro tópico, como pensões, de lá para mercados de produtos, relações de trabalho e a partir de relações de trabalho para todos os tipos de coisas. Era como um gato correndo atrás do próprio rabo.”
O que o caso grego parece estar explicitando de maneira pouco usual é que a democracia no ocidente não só é operada pelos grandes poderes econômicos, como conseguiu institucionalizar o golpe e a derrubada de governos democraticamente eleitos. Tsipras pode até ficar no poder, mas terá que abrir mão do papel que o levou a ser primeiro ministro. O hino da Suécia vai sendo entoado em coro.
Por que isso nos interessa? Primeiramente por que toda política precisa necessariamente passar por uma dimensão internacional para poder se fazer política novamente. Os piores inimigos da Grécia nas não-negociações com o Eurogrup eram Portugal e Espanha. Os países em que a situação não é tão distante da Grécia antes dos bancos fecharem. Segundo, a política de austeridade não precisa de mais exemplos de fracasso. O que ela vem fazendo em Portugal, na Grécia ou Brasil é eliminar os sujeitos, seja do debate político – como o próprio ex-ministro grego, seja pela pobreza que aparece da Europa como havia deixado de existir. Como diz Pablo Iglesias, do Podemos, “austeridade significa que nós nos tornamos uma colônia da Alemanha, austeridade significa o fim da democracia.” Talvez o que nos caiba hoje não é perguntarmos se os cortes na educação, na cultura ou nos direitos trabalhistas são necessários ou suficientes, mas se temos interesse na democracia ou se simplesmente queremos pessoas cantando o hino da Suécia.

14 de jul. de 2015

Direitos trabalhistas

Em 2011, durante a crise europeia, as empresas automotivas instaladas no Brasil fizeram uma remessa de lucro de US$ 5,58 bilhões.
Sucesso total. O Brasil vendia bem carros e caminhões e segurava os empregos na Europa.
Em 2015 as montadoras vendem muito menos. Mas não é possível pensar em uma empresa dessas estará no país sem lucro efetivos.
Não há problema. O Brasil subsidia e muda as regras trabalhistas.
Se cada um dos 240 mil empregos que, segundo o governo, serão poupados com o subsídio estatal recebesse 5 mil reais por mês, apenas a remessa de 2011 seria suficiente para cobrir com folga 12 meses de salário para todos os 240 mil empregados.
Mas, é claro que a regra que vale para a Grécia vale também para o Brasil.


Imagem: Vênus grega atualmente no British Museum

burocracia e simulacro

A burocracia quando é boa mesmo se transforma em uma espécie de simulacro, perdendo qualquer relação com o real. No seu limite, a burocracia é um processo autônomo em que circulam carimbos, selos, dinheiro, humilhações e poderes que se auto-justificam.
O caso.
A educação brasileira, como não é pautada por idade, exige que uma escola, para matricular uma criança tenha as informações da escola anterior.
Assim, depois de passar um ano na Inglaterra, meus filhos precisam de um histórico da escola daqui que será apresentado na escola brasileira.
Este histórico deve ser legalizado pelo consulado brasileiro.
Para legalizar, o consulado exige que o documento seja oficializado pelo FCO (Foreign & Commonwealth Office), um órgão do Estado inglês.
Para legalizar esse documento o FCO exige que o documento seja reconhecido por um Notary Public, uma espécie de cartório.
O Notório o que faz? Com meu comprovante de residência e meu passaporte em mãos escreve em um papel que eu dei a minha palavra de que aquele documento emitido pela escola é verdadeiro.
Bem, o documento da escola não foi, em nenhum momento olhado nem pelo Notory, que apenas assinou dizendo que eu existo e que alego estar dizendo a verdade, nem pelo FCO, que reconheceu a assinatura e o selo do Notório, nem pelo consulado, que apenas reconheceu o selo e a assinatura do FCO.
Fechado o círculo, 100 libras e dezenas de horas mais tarde, o documento está reconhecido por três órgãos sem que ninguém tenha olhado para ele.
Se o Baudrillard tivesse olhado para a burocracia talvez fosse mais generoso com as imagens.

27 de jun. de 2015

“CEZAR, notícia boa é ter vantagem sempre.”




Esse é o título do mail – spam – que o jornal O Globo envia oferecendo assinaturas.
Não só a mensagem reproduz a violência individualista em que todos tem sempre que “ter vantagem”, quanto tristemente desconhecem a história da publicidade e o desastre da campanha do cigarro Vila Rica com o Gerson, nos anos 70.
Mas há uma hipótese pior. O capitalismo mudou e nessa vertente cínica não há necessidade de disfarçar o que queremos mesmo: “ter vantagem sempre”. Se nos anos 70 assumir que temos que levar vantagem ainda causava algum incômodo, pode ser que a lógica tenha simplesmente se naturalizado.
No caso, preferi ficar sem a assinatura, certo?

24 de jun. de 2015

I-Phone e trabalho


O filósofo francês Gilbert Simondon é um dos mais importantes pensadores da técnica do século XX.
Em uma entrevista de 1965 ele fala dos objetos técnicos e explica que existem dois tipos de objetos, os abertos e os fechados.
Objetos não são máquinas, eles tem uma certa relação com os corpos, podem ser achados, perdidos, abandonados, “eles tem uma certa autonomia, um destino individual”, diz ele.
Os objetos fechados, uma vez que eles saem das fábricas eles começam um processo de degradação porque eles não podem ter contato com a “realidade contemporânea”, a “realidade que o produziu”.
Já os objetos abertos possuem duas formas de relação com o mundo contemporâneo. 1) O gesto do utilizador o altera; ele deve ser um “conhecedor de suas estruturas internas”. 2) As pessoas que o consertam podem sempre mantê-lo novo; trocando peças, acrescentando elementos que podem melhorá-lo.
Bem antes dos i-phones Simondon já dizia que a perfeição de um objeto técnico está ligada à sua maleabilidade.
O que um i-phone traz de novidade, entretanto, é possuir as duas naturezas: ser aberto e fechado. Ser aberto – até certo ponto – em seu software e nos modos de uso dos usuários – e fechado em seu hardware, uma vez que as peças não podem ser trocadas, melhoradas.
Os objetos abertos, diz Simondon, não tem data, não envelhecem. Algo que certamente está distante da lógica da obsolescência programada da indústria de tecnologia.
Mas, a beleza da formulação de Simondon ganha uma dimensão política ainda mais aguda.
O que os objetos abertos – esses transformáveis e que não envelhecem - podem ensinar às crianças?, pergunta o entrevistador.
Simondon: Antes de tudo “o respeito pelo trabalho do outro”.
Genial.
O desrespeito pelo trabalhador é duplo, nas indústrias de tecnologia não apenas as condições de trabalho são frequentemente sofríveis, como a lógica descartável dos produtos os desrespeita mais uma vez quando trocamos de telefone ou computador. A descartabilidade dos objetos técnicos é o apagamento do trabalho do outro, no limite, do outro.

Como viver juntos?


Essa pergunta que acompanha qualquer reflexão sobre a democracia, os espaços urbanos e a vida em comunidade, não para de nos colocar novos desafios.
Dizer como viver junto não é algo que se possa fazer fora dos embates do presente e dos contextos locais e globais.
Os 200 mil que manifestaram ontem em Londres contra a austeridade, a tensão em torno da saída – ou não - da Grécia da União Europeia, o crescente número de refugiados sírios da Turquia, Líbano - e Grécia -, as tensões no Brasil com reduções de direitos trabalhistas, redução da maioridade penal e precarização do setor público, todos esses acontecimentos são perpassados por essa questão. Como viver juntos?
As opções que temos não são separadas de tensões e dissensos. Viver junto, não é harmônico e ou livre de diferenças radicais.
Saber do dissenso no viver junto não significa dizer que inimigos não existem. Os exemplos acima nos provam que eles estão ai. Entretanto, vivemos tempos em que mesmo aqueles preocupados em como viver juntos, preocupados com o ataque aos menores que o congresso planeja, mesmo estes fazem da militância uma forma de enfatizar as divisões, marcar os inimigos, destruir os que apresentam pequenas diferenças e discordâncias.
A fragmentação e as polarizações dos mais ligados ao campo da esquerda é impressionante. Nas universidade, quem não é a favor da greve é considerado inimigo – e vice-versa. Em alguns movimentos militantes, as pequenas discordâncias são suficientes para discursos polarizados e violentos. O apoio ou a crítica ao governo federal não é recebido pelo outro sem pedradas e construção de fronteiras. Lula faz discurso comemorando a demissão de jornalistas. Haddad chama os opositores de coxinha.
Se há uma tristeza em ver o poder conservador com tanta força, não excluiria nosso cotidiano de militância e a forma como temos aceitado a polarização. Uma polarização que pouco parece contribuir para inventarmos formas de viver juntos.
Criar pequenos inimigos é hoje é uma grande contribuição para continuarmos destruindo as possibilidades de vivermos juntos.

Militância e identidade

A história da militante negra americana Rachel Dolezal que foi acusada de ser branca pelos pais e acabou por perder seu posto como associação em que trabalhava, é das mais interessantes.
Difícil refletir sobre todos os aspectos envolvidos no caso, mas um dos elementos que me chama atenção é essa exigência de uma relação identitária para que ela seja uma militante da causa.
Uma das lutas da democracia é de que para que um sujeito possa atuar em sua comunidade - com o voto, com a palavra, com uma ação - dele não seria exigida nenhuma distinção em relação aos outros. Ou seja, a democracia estaria abalada quando a legitimidade para a ação dependesse de elementos que antecedem a ação. Ser o mais rico ou o mais popular, por exemplo.
Enfatizar a democracia, colocaria a definição de uma militante do movimento negro nas práticas e engajamentos que esta mulher tem e teve ao longo da vida e não em algo que a antecede como sujeito – o fato de ter nascido branca ou não.

Quando o militante diz: “Eu posso falar sobre isso porque sofri na pele e você não”, de certa maneira ele está reproduzindo a mesma lógica da dominação. Aquela que diz que apenas alguns tem legitimidade para dizer, sentir, agir.
Certamente que essa percepção não é simples, sobretudo quando estão envolvidos grupos que tradicionalmente são excluídos dos debates públicos ou que sofrem violências frequentes em uma sociedade dominada por homens, brancos e ricos.
A radicalização dos princípios democráticos, no caso dessa militante, seria a possibilidade de ela se afirmar negra e branca, simultaneamente. Como se a militância pudesse permitir uma certa suspensão de identidades excessivamente demarcadas, uma militância imediatamente política.

16.6.15

Greve UFF


Mesmo distante, tenho tentando insistentemente entender porque a greve na UFF é a melhor forma de luta hoje contra os cortes na educação e contra a precarização das condições de trabalho.
Infelizmente tem sido difícil obter respostas satisfatórias.
De um modo geral a resposta é: as coisas não vão bem, então precisamos fazer alguma coisa.
Concordo. Mas porque a greve?
2012, nossa última greve, foi um exemplo de tristeza. Campus vazios, retomada das aulas com pouquíssimos alunos, pós-graduação trabalhando durante a greve, ganhos mínimos, consequências enormes.

O debate é ainda empobrecido quando aqueles que são contra a greve são acusados de não entender os ganhos que as greves trazem. Ora, ser contra uma greve não significa ser contra greves, nem desconhecer a importância histórica das greves.
Associar os professores críticos à uma determina greve à pessoas que desconhecem a importância das greves, é um argumento fraco e arrogante.
A pior é ainda acusar os críticos de serem pessoas desinteressadas pela universidade pública. Bem, é necessário um enorme desconhecimento da universidade e do que acontece lá dentro para fazer essa associação entre os críticos à greve e um eventual desengajamento. Com frequência, ser crítico à greve é entender que nesse momento o melhor que podemos fazer para a universidade pública e para os nossos alunos é inventar outras formas de luta, mais criativas, mais mobilizadoras e que não esvaziem a universidade, que não parem as aulas.
Ah, mas os estudantes também optaram pela greve! Bem, não me parece em nada desrespeitoso não concordar com eles.
Antes dos campi vazios, por que não ousar parar um dia por semana, por exemplo?
Por que não começar pela desobediência às agências de fomento?
Por que não ministrar aulas públicas em espaços não universitários?
Etc, etc.
Continuarei tentando entender porque a greve é necessária, mas, confesso que as respostas que tenho tido apenas me convencem do contrário.

6.6.15

Redução da maioridade penal 4

O presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha, defendeu a redução da maioridade penal com o seguinte argumento:
“Se alguém pode eleger o presidente da República, ele está fazendo o ato mais responsável que pode fazer. Não discuto se é a idade correta ou não, discuto isonomia em relação a direitos e obrigações”
Esse mesmo deputado recebeu da Ambev, 1,25 milhão de reais para sua campanha.
A Ambev domina de forma ostensiva o mercado de cerveja no Brasil. A forma da Ambev aumentar suas vendas hoje é aumentando o público que pode consumir cerveja legalmente.
Dentro do argumento do Deputado, não faria sentido um jovem poder votar e ser preso com 16 anos e não poder beber.
A Ambev gastou em publicidade R$ 1,69 bilhão de reais em 2015. A aumento do “público alvo” pode ser muito interessante para os grandes meios de comunicação.
Aos pouco vamos entendendo porque pode haver tanto interesse na redução da maioridade penal, uma vez que comprovadamente ela não torna a sociedade mais segura.

Redução da maioridade penal 3

Importante esse debate sobre a redução da maioridade penal.
Acabamos por descobrir que a reincidência no crime de jovens que passam por unidades socioeducativos - destinada à menores - gira em torno dos 30%. Enquanto nas prisões, esse número chega à assustadores 70%.
Ou seja, uma pessoa de 16 anos que comete um crime hoje e é julgado como menor, tem fortíssima possibilidade de não voltar a cometer outro crime. Entretanto, com a redução da maioridade penal, se ele pegar 10 anos, por exemplo, a possibilidade de ele voltar a cometer crimes é enorme.
Em resumo, deveríamos aumentar a maioridade penal para termos uma sociedade mais segura e mais justa, se for esse nosso desejo, claro.

22.5.15

Território, cinismo e ressaca


Em uma das histórias que fazem parte de um livro que lancei o ano passado, a menina ficava impressionada com a mãe que “pegava muito engarrafamento”, mas nunca era, ela própria, o engarrafamento.
A breve observação da menina parece apontar para uma operação importante dos processos subjetivos contemporâneos. Trata-se de uma a-territolialização cínica.
Se sempre foi necessário encontrar formas para continuar vivendo, cuidando dos filhos, se apaixonando, etc, apesar das misérias que nos cercam, esse aprendizado forçado parece ter sido levado a limites que desconhecíamos.
Da mesma forma que o mercado se tornou global, o consumo e nossas vidas parecem ter perdido o território. Radicalizamos um separação entre o mundo que nos afeta e o mundo que produzimos.
Essa separação demanda dois gestos que remetem ao cinismo.
O primeiro é que não há nada mais a esconder sobre os mundos que escolhemos. O presidente da Nestlé pode dizer que toda água deve ser privatizada. O presidente de uma cadeia de TV (TF1) pode dizer que faz uma programação para tornar os cérebros disponíveis para a publicidade. Um banco que acaba de ter vários crimes revelados, como o HSBC, pode chantagear um governo, etc. No nosso pequeno mundo, consumimos Neslté porque é mais simples, compramos as roupas mais baratas possíveis, apesar de sabermos que em Bangladesh as pessoas morrem sem garantias trabalhistas produzindo para Zara e Primark. Nós mesmos não temos nada a esconder, pelo contrário. Quando mando uma foto do meu celular está escrito “sent from my iphone” ou facilmente nos encontramos em rodas que falam de carros 4x4 para espaços urbanos.
Esse primeiro gesto da a-territolialização cínica nega o território – não há gente, na há terra, não há planeta – através de uma antecipação de qualquer crítica. “Eu mesmo sei o que faço e faço porque é o sistema”, digo junto com o presidente da Neslté.
O segundo gesto opera na filtragem, na separação entre o efeito do consumo para mim e para o mundo. Isso me permite ficar indignado com o trânsito mesmo estando parado sozinho dentro de um carro. Isso me permite separar o sabor e facilidade do Nespresso da poluição e das políticas dessas empresa. Fazemos assim uma montagem cínica entre as formas de usufruirmos das coisas do mundo, essas nós aceitamos, e o modo que essas formas prescindem de um território, de outras pessoas e do planeta para existir.
Separamos assim as múltiplas esferas de cada evento, de cada consumo criando um abismo entre a esfera privada e a subtração absoluta de qualquer território.
Enquanto espero os três “likes”, dissociando essa rede social da sua contribuição para a vigilância e opressão, vou tomar um “café sem cafeína”, como diria o Zizec, ou, melhor ainda, uma vodka que não dá ressaca.

Mercado e algoritmos


Não podemos dizer que o mercado não é criativo. Pelo contrário, a valorização de uma marca ou de um produto está fundamentalmente ligado às criação que ele absorve.
Mas, justamente, é o valor desse produto que possui a centralidade. A criação que não pode ser capitalizada, que não pode ser transformar em design ou novas formas de consumo não possui qualquer valor para o mercado.
A angústia que atravessa o mundo em que o mercado é central está diretamente ligada à forma como somos atravessados por imensas doses de criação em que nenhuma nova ordem para o mundo parece possível - Lazzarato diz mais ou menos isso em As revoluções do capitalismo. A criação está em todo lugar mas nada de novo parece possível.
É o caso da internet, potencialmente libertária e democratizante, mas constantemente gerida por sistemas de vigilância e algoritmos que não dominamos e que colocam as forças do capital como centro.
Enquanto nas embalagens de comida somos informados sobre os ingredientes e composições, no Facebook ou no Google não temos nenhum acesso aos algoritmos que nos fazem ver certas mensagens em detrimentos de outras, que eliminam certas imagens ou fazem com que certos assuntos simplesmente desapareçam.
Vivemos no paradoxo do capitalismo cognitivo – hiper-valorização da criação acentrada com hiper-controle e modulação dessa criação.
Os mesmos meios de comunicação que cobram transparência do setor público deveriam em seus anúncios serem obrigados a dizer quanto aquela empresa está pagando por aquele espaço.
Regularizar a mídia é informar os componentes, tão importante quanto em remédios ou alimentos. A opacidade dos algoritmos que usamos cotidianamente é tóxica.

Inglaterra - eleições e direitos trabalhistas


Cameron tem mais 5 anos pela frente. O atual governo conservador ganhou ontem as eleições do reino unido.
Foi durante o governo de Cameron que a Inglaterra estabeleceu os contratos de trabalho a zero horas.
Esse tipo de contrato é resultado da fantástica e escandalosa competição entre os países que o capitalismo europeu conseguiu inventar.
O contrato de zero horas é o seguinte. A pessoa é contratada por uma empresa, mas semanalmente a empresa diz quando ele deve trabalhar. O trabalhador é pago exatamente pelo que trabalha – sem férias ou direito a ficar doente. Se a empresa não precisar dele naquela semana, ele tem zero horas de trabalho e de salário. Mais de 700 mil pessoas trabalham na Inglaterra com este tipo de contrato.
O governo recentemente eleito se regozija em ter baixado as taxas de desemprego, graças a esse tipo de iniciativa.
A invenção do capitalismo europeu é união – europeia – para intensificar a competição.
Veja que interessante: a Grécia e a Espanha tem altíssimas taxas de desemprego, enquanto na Inglaterra o desemprego é baixo. Entretanto, por conta da União Europeia, gregos, espanhóis e ingleses podem trabalhar onde quiserem. Ou seja, o trabalhador é livre para mudar de país, mas a taxa de desemprego é local, assim como as regras trabalhistas.
Como os país resolvem isso? Como manter os empregos? Tendo leis mais flexíveis, menos encargos, contratos de zero-horas, etc.
O desemprego da Inglaterra está na Espanha, mas ele conta apenas para a Espanha.
Com a vitória dos Conservatives no Reino Unido a competição entre os países tende apenas a aumentar.
Tragicamente, como nos anos 80, o Uk vai dando o exemplo de como ampliar a desigualdade e estraçalhar os direitos dos trabalhadores.


8.5.15

A cadeirinha de Brasília

Infelizmente nossa democracia faz pouco mais do que manter os mesmos sistemas de poder no governo, com variáveis cada vez menores entre o que é ser de direita ou de esquerda.
Se há uma certa indiferença entre quem está no poder, é com outro tipo de pressão que democracia deveria existir.
A disputa entre superpoderosos nos acostumou a pensar pequeno.
A destruição do planeta, o escândalo da desigualdade e o poder do sistema financeiro e imobiliário não têm nem mais lugar no debate. São coisas grandes demais para serem pensadas. Enquanto isso discutimos as migalhas entre PT e PSDB.
Prato cheio para os grupos no poder, para os consumidores de agrotóxico do Ministério da Agricultura e para o Gerente do Bradesco nas finanças.
A democracia está em outro lugar: na urgência de levarmos a sério o escândalo da desigualdade – todas elas. Isso não será feito por nenhum partido nos próximos muitos anos.
Se a aberração do sistema que nos destrói e mata estiver em primeiro plano e nos mobilizar, dane-se se é Cunha, Aécio ou Dilma na cadeirinha de Brasília.


27.4.15

Crise ética e crise de legitimidade.

Uma imagem tem frequentado os jornais ultimamente.
Dois políticos conversam em lugares públicos e, para que não haja leitura labial, eles cobre a boca.
Por algum motivo os editores tem privilegiado essa imagem.
Talvez tenham razão para isso. O que a imagem diz sobre os políticos e sobre os jogos de poder é bastante evidente: “Estamos conversando e organizando coisas que não podem ser ouvidas por ninguém”. “Apesar de estarmos em público e sermos homens públicos, o que dizemos um para o outro não pode ser pronunciado, faz parte da opacidade dos jogos palacianos”
Por uma lado, felizmente que nem tudo é transparência. Por outro, que estranho que esses homens precisem cotidianamente trocar confidências impublicáveis.
A mão que cobre a boca revela a instabilidade dos acordos, como se a cada dia um novo acordo tivesse que ser feito.
Mais do que uma imagem que explicita que os políticos tem algo a nos esconder – também porque são humanos – a presença reiterada dessas imagens corrobora uma instabilidade, um cotidiano de acordos feitos e refeitos. Um certa indeterminação das formas do poder atuar. Como se houvesse, no fundo, uma desconexão entre poder e liderança.
“Veja, o tempo todo eles precisam repactuar!” diz a imagem. Com se a própria representação estivesse em crise.
A imagem perfaz assim um discurso ancorado na realidade, é verdade, mas também representativo de um certo desejo de mundo. Esse discurso parece então nos dizer: "esse homens que fazem o inconfessável – já que não podemos saber o que combinam – também não mandam nada". Crise ética e crise de legitimidade.
Se é essa a situação do país, não sei, mas que parece haver um certo interesse nessa leitura, acho evidente.

Bangladesh, Mediterrâneo e Oxford St.

Bangladesh, Mediterrâneo e Oxford St.
Está programada para esta semana uma grande manifestação em Dhaka, capital de Bangladesh. Dois anos atrás, mais de mil pessoas morreram no desabamento de um prédio ilegalmente construído em que se fabricavam roupas para marcas como Benetton, Primark, Matalan e Mango. Os manifestantes dizem que nem todas as indenizações devidas foram pagas.
Nos últimos anos, Bangladesh se tornou um centro de “máxima exploração”, garantido pela pobreza, pela fragilidade dos sindicatos, pelos baixíssimos salários, etc.
Nessa semana, como todos sabem, mais de mil pessoas morreram no mediterrâneo tentando chegar na Europa. Centro de máximo consumo, com seus salários altos, legislações trabalhistas que ainda sobrevivem em alguns países, além de algumas garantias mínimas de sobrevivência – como escolas gratuitas.
A relação entre as duas tragédias não é pequena.
Para garantir preços absurdamente baratos na Primark ou para que a Benetton possa fazer face à competição, é preciso garantir que nenhum trabalhador de Bangladesh chegue à Europa - eles são necessários lá onde estão.
A morte desses trabalhadores não traz nenhum problema para a ordem do capital. A impossibilidade de os imigrantes chegarem na Europa não impedirá que as roupas continuem viajando em primeira classe.
A única solução real para a imigração na Europa é que as leis trabalhistas e os salários sejam ditados pelo local de venda e não pelo local de fabricação. Diante do absurdo dessas mortes é preciso pensar em um outro mundo possível.

Internet e a lentidão da delicadeza

Nesta última semana dois eventos que circularam por aqui me tocaram. O caso da fala preconceituosa do Ed Motta e do texto equivocado José Jr. Pouco tempo depois, diante da repercussão, os dois fizeram notas públicas, pedindo desculpas, dizendo que erram no tom e que se expressaram mal. Entretanto, não houve saída, os dois continuaram sendo severamente agredidos, como se tivesse revelado a verdade de seus seres com os seus erros. Como um ato falho.
O ato falho é parte do “ser polícia” que a psicanálise criou. Quando alguém diz ou escreve o que não queria dizer, mesmo que depois negue o que disse, sempre haverá uma psico-policial para dizer: “A verdade é o que sai sem querer. É essa que vale.” Não adianta se justificar, dizer que errou, que se expressou sem precisão ou que não foi bem interpretado. “Te pegamos no flagra. Sabemos tudo sobre você.”
O que me toca em nossa prática nessa rede social - e fora dela -, nesses tempos de emoções agudas e posturas polarizadas, é a enorme indelicadeza que temos produzido e feito circular. Cometido o erro, o sujeito está perdido.
Não guardo simpatia por José Jr., por exemplo, mas a distância política e estética que tenho não deveria me dar o direito de usar esse momento em que ele comete um erro, para acusa-lo, inclusive, de defender que crianças sejam mortas.
A indelicadeza está na velocidade e contundência das acusações. Não há tempo para nada, apenas para reações que precisam ser maiores que as ações. Nessa lógica de vingança, uma frase que nos desagrada, mesmo que alterada por uma reflexão do autor, será rebatida com violência destrutiva.
A lógica é a da eliminação.
Se não gosto da estética-carrão e das joias do José Júnior, nem de seu apoio ao Aécio, “quando ele abrir uma brecha eu o destruo”.
Trouxemos para o cotidiano a lógica das campanhas eleitorais, dos reality shows e do mundo corporativo. O outro é um inimigo a ser abatido. Para isso, não há limites.
A delicadeza demanda um certo tempo, uma espera, uma reflexão e um pouco de cautela, mas, ai, já há outra assunto para ganharmos “likes” ou outro inimigo menor para ser destruído.
A delicadeza é lenta, por isso deveria começar na frente.

De Sica e redução da maioridade penal

No belo “Vítimas da tormenta” (Sciuscià) (1946), de De Sica, os dois meninos que fazem os papéis principais são levados para uma prisão para jovens.
Na prisão há uma breve discussão entre o diretor do estabelecimento e um outro homem, seu assistente, que cobra melhores condições para os meninos.
A resposta do diretor fala muito sobre a lógica que organiza muitos dos defensores da redução da maioridade penal. Ele diz: “Isso aqui é uma prisão e não um centro de cuidados. Se você esquecer isso, será para sempre um assistente.”
O pragmatismo do diretor é cruel e explicita que o tratamento que ele deseja para os jovens não tem relação alguma com a segurança, com uma reflexão sobre a sociedade ou com o futuro dos jovens, mas exclusivamente com seu lugar de poder.
A questão da redução da maioridade penal também passa por essa tragédia. Enquanto os adolescentes são tratados como adolescentes, em espaços responsáveis pela escola e pelo futuro dos internos, ainda há uma negociação que a sociedade faz com esses jovens. Há portas abertas, o que impede o autoritarismo extremo.
A redução da maioridade penal parece caber em um raciocínio parecido com o diretor da prisão. Para garantir o poder é preciso negar os jovens como sujeitos.
60 anos depois do filme de De Sica, continuamos tentando afirmar que esses jovens existem.


12.4.15

Redução da maioridade penal

A violência de nossa sociedade não é novidade, grande parte do que nos move política e poeticamente é essa indignação, essa recusa da violência que toca a todos, de diferentes formas, é verdade.
No atual debate sobre a redução da maioridade penal há, mais uma vez, esse desconforto profundo com a violência. Muitos que defendem a redução acreditam que alguns crimes cometidos por adolescentes poderiam ser evitados, caso esses jovens tivessem medo de ir para a prisão. No pior dos casos, acham que é uma forma da sociedade se vingar daqueles que cometerem algum crime.
Pois, no último ano fizemos um trabalho com cinema e direitos humanos em muitas escolas do país. Três dessas escolas eram Centros Socioeducativos - em que os adolescentes podem ficar até três anos internos. Comprovadamente, a reincidência de crimes de pessoas que passaram por esses centros é muito menor do que a de pessoas que foram presas – menos de 30% nos Centros Socioeducativos, em torno de 70% nas prisões. Mas, mais do que isso, o que vimos nesses lugares foram jovens com profunda vontade de futuro, desejosos de criação, afeto, educação.
Nos trabalhos com o cinema, vimos esses jovens assumirem responsabilidades criativas, pensarem suas vidas e trabalharem intensamente. A cada momento esteve explicito o desacordo entre os desejos expressos nos filmes e as possibilidades que o mundo dava a esses jovens. Se a vingança for o que nos move, teremos que estar cada vez mais preparados para a vingança desses jovens contra o mundo que os colocou ali.
Os Centro Socioeducativos não são prisões, mas é ali que muitos passam anos fundamentais de suas vidas, tentando um futuro diferente daquele escrito na pobreza.
A cada filme feito pelos jovens tínhamos a certeza de que aquele lugar precisava ser passageiro e que fora dali precisávamos continuar um trabalho de apoio, para que eles pudessem continuar criando e expressando todo sua vitalidade.
Coloco abaixo o link para dois dos filmes-carta feitos em Centros Socioeducativos.
É difícil imaginar que são esse jovens que queremos ver nas prisões por muitos anos ou décadas. Vendo esses filmes, é difícil imaginar que perdemos a crença na possibilidade de um outro futuro para esses adolescentes.

http://www.inventarcomadiferenca.org/…/escola-carlos-albert…
https://vimeo.com/97866661
O primeiro desses filmes foi premiado no mais recente CinePE. Infelizmente as jovens diretores não puderam comparecer à cerimônia de premiação por não terem autorização para deixar o Centro Socioeducativo. A torcida é para que no próximo Festival elas tenham mais de 18 anos e estejam livres para receber pessoalmente seus prêmios.

HSBC corrupção

O jornalista Fernando Rodrigues vai fazendo um péssimo trabalho com a lista do HSBC.
Na divulgação das "celebridades" que tem conta no banco suíço, trata a todos da mesma forma, divulga os nomes sem ouvir as partes, não encontra uma causa na divulgação e pior, dessa vez fez o constrangedor papel de associar o nome de atores e produtores à financiamentos públicos, insinuando desvio de verba pública.
No meio da matéria ele diz " Mas não é possível nem correto fazer uma conexão entre o dinheiro captado e os recursos que eventualmente circularam nas contas bancárias na Suíça." Para depois fazer exatamente isso.
Trabalhar com listas como esta do HSBC é muito difícil, não basta apenas colocar os nomes na roda, sem investigação e sem a tentativa de seguir um objetivo jornalístico.
A forma da divulgação apenas dispersa a atenção. Os empresários da mídia e os empreiteiros agradecem.


22.3.15

Constrangedor o trabalho dos jornalistas do Globo sobre o caso HSBC.
Eles estão cobrando declarações de imposto de renda das pessoas que estão na lista e, apesar de algumas pessoas mostrarem a declaração e provarem a legalidade das contas, seus nomes estão sendo citados nas matérias.
Colocam no mesmo saco políticos de primeiro escalão e políticos irrelevantes.
Fazem novas matérias sem acompanhar o desdobramento do que aconteceu com as listas previamente divulgadas.
O trabalho que fazem dispensa o jornalismo. A forma como as listas estão sendo divulgadas carecem de investigação e não é pautada pelo interesse público.
Em casos como estes, o jornalismo é absolutamente necessário, sobretudo quando muitas pessoas do governo e da política estão envolvidas, mas para fazer o que eles estão fazendo, bastava vazar a lista inteira, com os 8000 mil nomes.


25.3.15 

mulher comum

Dilma não precisa ser nenhuma líder carismática, afeita ao espetáculo midiático ou a populismo que organizou grande parte da política ocidental no século XX, para pautar o país pelas questões que interessam a nós e ao mundo. E parece que seu governo não tem outra saída.
É muito importante que a política seja feita por pessoas comuns, que façam parte do que somos e não por narrativas exemplares ou conquistas individuais fenomenais. Um dos grandes ganhos de Dilma como presidente é nos livrar do personalismo que torna a chegada a um cargo como algo escrito na trajetória do sujeito. Lula e Henrique Cardoso, com todas as suas diferenças, fazem parte dessa narrativa, quase heroica – no caso de Lula.
As falas golpistas aparecem porque mais insuportável para as elites que um operário com uma trajetória espetacular é uma mulher comum.

23.3.15

Negociação não é política

Fica fácil para o PMDB e Cunha se imporem no congresso. A pauta de pequenos ajustes que o governo tenta passar não mobiliza ninguém.
Se houvesse clareza e peso político em uma pauta de educação ou de meio ambiente, por exemplo, o embate não seria por conta de pequenos acordos, mas visões de mundo.
Dilma, na sua perspectiva gerencial, entende tudo como negociação, sem jamais vir a público com questões dignas de quem é presidente.
Não há melhor momento para a presidente dizer: Temos que ser protagonistas no combate ao aquecimento global, por exemplo. Se isso fosse uma pauta, não teríamos que ficar discutindo miudezas palacianas, mas as opções de cada grupo em aceitar ou não o fim da água potável e a morte de muitos por conta de nossa forma de consumo. Uma pauta como essa mobiliza questões econômicas, sócias, de política internacional, culturais, etc.
A mesma coisa a educação. O ex-ministro Cid Gomes, quando ainda era ministro deu entrevistas burocráticas sobre o papel do governo federal na educação. É preciso partir do escândalo que é a desigualdade na educação. De outra maneira vamos ficar no gerenciamento da miséria. Sem pautas que exponham opções de mundo, congressistas como o presidente da Câmara ficam no conforto de suas opções moralistas... (frequentemente fomentados por movimentos enfadonhos de esquerda)
O que é perturbador é ver o debate organizado pelos meios conservadores e pelo gerenciamento do mesmo, sem um pingo de invenção ou de explicitação de nossos desastres. Quando o executivo tiver uma causa a vida vai ficar mais leve

Dilma não é a regra

“Isso é a política: encontrar uma maneira de fazer o que não era esperado que fizéssemos, estar lá onde nós não deveríamos estar. Sem isso, não há política” Rancière
Se Dilma achar que é normal uma mulher com uma história na esquerda ser presidente, não haverá política.

1989 - Inventa Dilma!

Em 1989, quando Lula disputou sua primeira eleição, o PT elegeu menos de 7% dos deputados. Muito menos do que tem hoje.
Na época, votamos em Lula, mesmo sabendo das dificuldades que teria no congresso. Dilma hoje tem uma situação bem melhor que Lula teria tido em 89.
Se 89 fosse hoje, votaria novamente em Lula, mesmo sabendo que o congresso seria de oposição.
Já escolhemos viver situações mais difíceis que a atual. Inventa Dilma!

ciclovias SP

A questão das ciclovias de São Paulo não é nem apenas uma questão local, nem apenas um problema de planejamento urbano, mas das mais importantes tensões que podemos trazer ao capitalismo contemporâneo.
Quando os opositores reclamam de Haddad e das ciclovias, o que estão dizendo é que nada nem ninguém colocará um limite no estilo de vida que nos leva para o mesmo buraco.
O problema aqui não é o trânsito ou o planejamento, mas que mundo queremos.

março 15

Unir e abrir

Diversos vídeos impressionantes sobre as manifestações de Domingo tem circulado na internet. Muitos bastante jocosos, pelo menos é minha leitura, por me sentir extremamente distante dos manifestantes.
Mas meu ponto é outro. As recentes manifestações contra o governo Dilma tem nos levado a pensar importantes questões sobre a macropolítica. Sobre a possibilidade de uma guinada à esquerda, sobre a retórica da corrupção como estratégia para desestabilizar o governo, sobre as possibilidade de governar sem o PMDB, etc.
Entretanto, assistindo esses vídeos, se explicita uma luta que se fará a longo prazo, que não se resolverá com as saídas que este governo dará para a crise. Trata-se de uma luta micropolítica que passa por desejos, estilos de vida, formas de consumo e relação com o outro.
Ao ver esses vídeos tenho a impressão que estamos perdendo feio essa luta.
A aposta ética que um dia fez parte da esquerda não era simplesmente uma relação não corrupta com a política, mas uma outra ética, que passava pelo respeito à diferença, por padrões de consumo que, pelo menos, adiem um pouco o fim do mundo, por relações urbanas mais democráticas, pela representação política de quem não é o mais rico ou parte de alguma oligarquia.
Estamos perdendo a luta micropolítica porque esse princípios de igualdade e democracia estão fracassando. Nossas opções energéticas, nossa falta de indignação com uma educação excludente, nossas opções de consumo que destroe cidades.
É claro que é criminosa uma defesa de golpe e intervenção militar, mas o que dizer da menina de 17 anos na passeata que diz que é de direita, sem saber exatamente o que isso quer dizer? Podemos coloca-la no mesmo saco de todos os outros manifestantes, chama-la de burra e alienada ou, podemos imaginar que como sociedade temos alguma responsabilidade. Que ali há um problema comum à todos que estão na luta democrática. Podemos chamar de coxinha os que estavam na rua e reforçar a oposição política a eles, mas o que dizer de um certo desejo de mundo liberal, competitivo e excludente que está ali, em meio a pessoas muito jovens.
Nesse momento, quanto mais nos fecharmos “no meu grupo”, na “minha causa justa”, mais distantes estaremos do lugar onde o país está em jogo.
Tão urgente quanto uma pauta de esquerda é trazer aquela menina de 17 anos para uma outra possibilidade de mundo.

Inventa Dilma!

Há algo fantástico acontecendo.
O PMDB está rompido com o executivo.
Não é possível que essa crise não seja a possibilidade de uma invenção.
Talvez seja esperar demais do governo Dilma, mas que há algo extremamente interessante no ar, estou certo.
O desafio do executivo é dos mais sedutores. Criar nos próximos anos um governo com novos pactos, com a mobilização das ruas de 2013, com pautas que mobilizem forças progressistas. Mesmo que seja para sobreviver, essa é a alternativa.
Inventa ai.


17.3.15

Governismo

Que somos um país conservador, que as forças da direita sempre estiveram presentes com um ódio de classe contra Lula e PT, é certo.
Agora, que a esquerda governista tenha abandonado o pensamento, é desesperador.
A estratégia da desqualificação parece ser a única arma.
Ser de esquerda é antes saber que o outro existe, mesmo que esse outro seja tão distante de mim, mesmo que rejeitemos com todas as forças suas opções políticas.
O que fazemos então? Dizemos que todos que estão na rua são fascistas e que devem ser desqualificados. Isso é tão assustador quanto o golpismo das manifestações.
Desqualificar torna-se a única arma porque não há projeto político a ser confrontado. É preciso dar motivos de esquerda para todos irem para a rua, de outra forma, ficamos pautados pela mediocridade de todos os lados.


15.3.15

Nossa ressaca

Dos mais duros efeitos dos últimos 20 anos de governos eleitos no Brasil parece ser uma profunda descrença na possibilidade de o Estado ser realmente um operador de transformações democráticas na sociedade.
No início do século XX os anarquistas já sabiam muito bem disso, mas a lição demanda confiança demais na forças sociais não pautadas pelo capital. Mais fácil é encontrarmos líderes que assumam nossas demandas.
O problema é que uma liderança verdadeiramente democrática é aquela que permite o descontrole em relação aos seus projetos, é aquela que não produz centralidades de discursos ou de poderes. Uma liderança democrática está sempre de saída.
Infelizmente, no Brasil, caminhamos para algo bem distinto, com raras exceções, o Estado não para de fortalecer centralidades, a dos projetos políticos de certos grupos e a do capital, com representantes de peso que transitam entre bancos e governo e que garantem a permanência das mesmas elites na terra e nas boas escolas.
Não temos exclusividade, nos Estados Unidos a rede de vigilância e controle tornou o Estado americano um gigantesco violador das liberdades individuais. Na França, em nome dos valores ocidentais se proíbe o véu nas escolas e se radicaliza a diferença entre nós e eles. Tudo dominar e controlar, é a regra de quem está no poder.
Talvez tenhamos sido entusiasta demais das manifestações de 2013, mas não poderia ser de outra maneira. Só algo que resista a essa centralidade do Estado e do Capital pode ter efeitos efetivamente transformadores na sociedade. Essa força vem das ruas e redes. De outra maneira, ficaremos medindo a capacidade do partido x ou y fazer pequenos ajustes em nossos desastres urbanos, ecológicos e humanos. Ou podemos também ficar contando quantos políticos de cada partido participam de cada nova lista.


8.3.15

meio ambiente

Com o dólar alto viajaremos menos e queimaremos menos petróleo.
Com a crise energética e o preço da luz desligaremos o ar-condicionado e adiaremos novas usinas, alagamentos e deslocamento de populações.
Com a crise econômica menos caminhões terão que atravessar o país para comermos melão o ano todo.
Com a alta da inflação e o preço da gasolina deixaremos o carro em casa e queimaremos menos combustível.
Finalmente temos políticas para o meio ambiente!

O dissenso necessário


Um mesmo processo político-subjetivo parece atravessar questões no Brasil e na Europa. Esse processo é pautada pela impossibilidade do dissenso.
Na Inglaterra, muitos educadores e políticos dizem que a resposta possível ao caso das meninas que foram se juntar ao Estado Islâmico é dar uma maior ênfase nos Valores Britânicos. Essa solução parte do princípio que a sociedade está pronta, que os valores são imutáveis e que resta aos cidadãos se adequarem a estes valores.
Esquecemos que das mais importantes mudanças no século passado aconteceram por conta de “revoluções moleculares”, como diria Guattari. O direito das mulheres, negros e homossexuais aconteceram por conta de transformações nos valores, antes de serem leis. O que a imobilidade dos valores traz é uma enorme exclusão, uma ame-o ou deixe-o que não abre espaço para nenhum dissenso.
Em Londres, a escola das meninas não tinha nenhuma pista da radicalização de suas posições políticas, ao mesmo tempo, mais de dez dias depois de elas terem abandonado o país, o assunto não foi levantado nas escolas das redondezas, com muitos muçulmanos. Trazer a comunidade para a escola é perceber que uma comunidade se faz diferenciando-se de si mesma e não reproduzindo-se como igual.
Ainda nas palavras de Guattari: uma revolução molecular, uma transformação nos valores e práticas de uma comunidade, “é menos uma questão de criar consenso, ao contrário, quanto menos concordamos, mais criamos uma área, um campo de vitalidade em diferentes ramos dessa revolução molecular”. No caso inglês, os valores britânicos operam, antes, uma dicotomia entre o dentro e o fora, o aceito e o não aceito, o pensável e o não pensável. Sem trazer para a comunidade o dissenso, ele parece acabar explodindo em violências, com a do britânico que matou o jornalista inglês no Oriente Médio, ou radicalizações dicotômicas, como a das meninas.
No Brasil nossos problemas são outros, mas o adensamento da dicotomia política tem impossibilitado a criação e o pensamento. A dicotomia é a negação da transversalidade, ou seja, quando tudo se organiza em dois lados, não é possível relações e conexões parciais, construções momentâneas e intensificações circunstanciais. Se não trouxermos o dissenso para aquilo que constitui o nosso mundo, a nossa comunidade, operamos isolando, julgando e excluindo. Cada vez mais milimétrico, o julgamento do outro impossibilita que esse dissenso produtivo, de que fala Guattari, se estabeleça.
Não são poucos hoje os exemplos em que as dicotomias são reforçadas: PT e PSDB, evangélicos e os outros, homens e mulheres, intelectuais e pessoas da prática, etc, etc. A consequência é o empobrecimento geral da comunidade, a moralização das práticas, o isolamento e a radicalização de posições que tendem a se tornar violentas. Sem a dissenso nega-se o outro, uma negação que pode ser sempre milimetricamente intensificada.


1.3.15

HSBC e educação

Na última semana três adolescentes deixaram Londres para se juntarem ao Estado Islâmico, na Síria.
Os educadores ingleses rapidamente perguntam: qual a responsabilidade da escola na radicalização dos engajamentos das meninas?
Até agora não perguntaram qual o papel da escola e da universidade nos bem formados diretores do HSBC.

28.02.15

Destruindo a política

PT e PSDB parecem ter encontrado uma zona de conforto.
Transformaram a política em uma briga entre dois grupos com o PMDB ganhando sempre.
Podem estar no poder ou não, o que importa é que atuam como inimigos, justificando seus atos sempre em comparação com o outro.
A tristeza dessa dicotomia pode ser ótima para as eleições. O eleitorado não precisa pensar em nenhuma questão efetiva, apenas dizer para quem torce, com a garantia de que um dos dois leva.
A estratégia desses grupos é matar a política e esvaziar o debate. O espaço público é transformado em disputa partidária, como se uma coisa se confundisse com a outra.
A parte mais patética aparece quando também os militantes, fora de períodos eleitorais, continuam pensando o que faz Dilma, Alckmin ou Aécio na mesma lógica que proíbe o pensamento e a reflexão.
Ao que parece, cada gesto ou comentário que estimula a dicotomia dá força para o “inimigo”. Qualquer defesa cega de Dilma é ótima para o PSDB e vice-versa.


27.02.15

Grécia - futuro privatizado

A atual situação da Grécia é parte de um aprofundamento radical da privatização generalizada que destrói as bases da democracia na Europa.
Desde os anos 80, cada vez mais aspectos básicos da vida passam para o interesse privado.
Transporte, comunicação, água, educação, espaços públicos, etc.
O privado aqui não é um sujeito ou outro tocando seu negócio, mas grandes corporações que dominam ruas inteiras, bairros e serviços básicos.
Com a força do sistema financeiro mundial, que age endividando cidadãos e países, a privatização ganha novos contornos.
Na Inglaterra, um universitário termina sua seus estudos devendo 27 mil libras. Ele deve conseguir pagar, mas com austeridade e comprometendo suas escolhas profissionais. É difícil pensar em liberdade profissional com esse peso.
Na Grécia, o mesmo sistema de endividamento avisa que as eleições no país e o novo governo não tem autonomia nenhuma e que eles devem fazer o que o partido que perdeu as eleições estava fazendo.
A cartada final da privatização e das grandes corporações está dada.
O futuro foi privatizado, seja você um estudante de 18 anos ou um país.
As mais importantes disputas hoje na Europa passam pelo movimento dos estudantes contra o endividamento para pagar os estudos e pelo futuro da Grécia.
Mais que casos isolados, trata-se da possibilidade do futuro ser pensável e sonhável.


15.02.15

Iracema -

Rever "Iracema, uma transa amazônica" quase 40 anos depois de sua realização é impressionante.
Não só há uma atualidade no tema e nas tensões entre progresso e destruição, entre tradição e expansionismo, como há uma atualidade cinematográfica.
Quem hoje filma o inimigo como o Bodanzky e Orlando Senna filmaram?
Em Iracema há um posicionamento forte dos cineastas sem que esse posicionamento se confunda com palavras de ordem.
Sem abandonar os modos de vida e os micropoderes, o filme nos coloca no centro das violências da época.
Belo Monte, a falta de limite para o agronegócio, a gentrificação das cidades; atualidades que estão desenhando o país e que aguardam o cinema com invenção e engajamento

Aeroportos e viglância

Os aeroportos internacionais se tornaram o paroxismo do capitalismo.
Primeiramente se produz uma barreira. Nessa barreira com policiais, câmeras, sistemas de raio-x e vigilância eletrônica as pessoas são colocadas em estado de tensão em angústia.
- Se estou sendo vigiado e esquadrinhado a tal nível, alguma culpa devo ter.
Somos então revistados e parte de nossas roupas é retirada.
Depois desse sistema de humilhação, recolocamos as botas e cintos e chegamos no shopping center com luzes, marcas e vitrines feitas por artistas que acabamos de ver nas galerias.
Basta um passo depois da barreira policial e chegamos ao consumo que pode resolver nossas angústias.
Se em todo o mundo a violência e a humilhação do estado é parte do capital, em nenhum outro lugar as duas coisas estão tão próximas.
Depois da humilhação a recompensa não é o portão de embarque, mas o paraíso dos free-shops. Esse mercados que levam esse fantástico nome: free.
Uma liberdade que tem o preço da humilhação e da subserviência.
A globalização free-shop encontra o sujeito revistado, apalpado, cheirado, esquadrinhado, marcado.
Hora de comprar um perfume e um whisky pra relaxar.

Snowden

Mais duas ou três palavras sobre o livro do Glenn Greenwald sobre o caso Snowden.
O jornalista tem uma tese defendida com bastante consistência: o terrorismo é um retórica dos Estados Unidos e aliados para manter o controle sobre a população.
A relação de causa e efeito entre os atentados do Charlie Hebdo e a demanda por mais vigilância explicitam essa tese.
Os governos não tem interesse nenhum no debate sobre privacidade ou sobre eficácia do método em uso: recolher todas as informações sobre todos em todos os meios.
Diante dos assassinatos, o remédio é simples: mais vigilância, mais verbas para controlar a todos.
A tese do Greenwlad é que isso tem gerado pessoas cada vez mais conformadas com o status quo. Não há mudança sem rebeldia contra o estado.
Note, não se trata aqui de governo x ou y, de partido a ou b, mas contra o estado e o controle generalizado. Infelizmente as críticas ao estado, no Brasil em especial, parecem sempre associadas aos neoliberais, nunca aos anarquistas. Estes, como sabemos, se tornaram os “nossos terroristas” e sobre eles o mesmo remédio: mais vigilância.
Tão importante quanto a NSA e Snowden é a ótima discussão sobre o jornalismo, americano sobretudo, e a adesão ao governo. Bem, no nosso caso a independência jornalística virou coisa rara.
Depois de 10 dias com Snowden em Hong Kong, Greenwald se diz exausto física e psicologicamente. Hora de “voltar para o Brasil”, completa. O cara é divertido.


11.2.15

Ousadia

Em um mesmo dia o jornal The Guardian, da Inglaterra, traz duas notícias sobre bancos europeus.
Na primeira, as agências de risco apostam fundo na saída da Grécia da zona do Euro e, para isso, baixam as notas de cinco bancos gregos.
O novo governo grego não pode dar certo para os operadores centrais das finanças do mundo. As agências de risco são importantes para antecipar o futuro desejado desses operadores. Se acertarem, ótimo, é parte do plano, se errarem, fizeram seu papel e continuarão a ser pagos por empresas e governos.
Na segundo, descobrimos que o HSBC, segundo maior banco do mundo, atuou aconselhando seus clientes a burlar impostos e lavar dinheiro; permitindo e incentivando a corrupção e a circulação de dinheiro sujo em muitos países do mundo. Atuar no crime era parte do marketing do HSBC entre os ricos.
O ex-presidente do banco na época, Stephen Green, deixou o HSBC e se tonou ministro de estado do governo de Cameron. Uma prática que conhecemos.
Alguns terão prejuízos políticos e econômicos com essa história, mas sem nenhuma ameaça ao sistema. Já a Grécia, que absurdo, está querendo sentar à mesa com Merkel e Hollande. Como ousa?


10.02.15

7 de fev. de 2015

Vigilância e Direitos Humanos



Na última sexta-feira, o Investigatory Powers Tribunal, um órgão do poder jurídico inglês, pela primeira vez julgou que a agência de vigilância desse país (GCHQ) atuou contra os direitos humanos ao interceptar, junto com a agência americana (NSA), a comunicação de milhões de pessoas.
O processo aberto por ONGs de direitos humanos contra a agência foi possível depois que Snowden vazou os arquivos da NSA publicados por Greenwald no Guardian.
A decisão é no entanto bastante dura para os direitos humanos e para a defesa de uma internet livre.
Por que?
Durante anos a GCHQ e a NSA recolheram dados de milhões de pessoas, como ainda fazem. Até a comprovação desses documentos virem a público com Snowden, tudo isso era feito por baixo dos panos, em acordos entre os governos e as grandes empresas de comunicação – a Apple, onde escrevo essas linhas, o Facebook, onde as publico e a Google, onde tenho meu blog, entre outras. Com os documentos vazados por Snowden, a violação dos direitos humanos pelas agências e por essas empresas ficou claro. Foi isso que foi julgado pelo tribunal inglês.
Entretanto, ao mesmo tempo em que o tribunal condenava a falta de transparência, ou seja, empresas e estados não podiam coletar dados sobre nós sem que saibamos, o tribunal não considerou que a coleta em si dos dados é um crime.
Para o tribunal inglês, agora que sabemos, agora que há transparência na violação de todas as nossas mensagens e comunicações, as agências não estão fazendo nada de errado.
As mesmas ONGs continuam os processos em tribunais europeus de defesa dos direitos humanos.

A Grécia e o Brasil



    As enormes dificuldades econômicas da Grécia se transformaram em uma abertura para que certos paradigmas da Europa sejam questionados.
    A Grécia questiona a hegemonia dos bancos Frances e Alemães, explicitando como a Europa, distanciando-se de um projeto democrático, se tornou um projeto financeiro organizado por poucos. A recente matéria de capa do The Economist dava o tom de ameaça à Grécia; “ou vocês respeitam as regras ou acabamos de quebrar vocês”. Essa é a tradução do papel que a hegemonia financeira tenta fazer no momento. Nos padrões dessa hegemonia, matar o paciente é a melhor solução para os problemas.
    Essa situação me faz pensar na chance que o novo Governo Dilma está jogando fora.
    Diante de uma crise política, econômica e ambiental, o que faz o governo? Aumenta a dosagem do mesmo remédio.
    Mais poder para os desmatamentos, mais poder para os mesmo princípios financeiros e nenhum enfrentamento político verdadeiro.
    Diante da crise, esse governo tinha a obrigação de ter um pouco de ousadia. Olhar para as cidades e perceber que o modelo de crescimento nos últimos anos foi desastroso. Se muitos puderam comprar seus primeiros carros, hoje estão todos no mesmo engarrafamento sem um banho garantido quando chegar em casa.
    Diante da crise política, com novos escândalos de financiamento de campanha, o governo tem a faca e queijo na mão para um choque político que esvazie a necessidade de milhões de reais a cada quatro anos. O cinismo de PT e PSDB fazendo acusações mútuas sobre como desviam dinheiro de empresas para financiar campanhas, não deveria ser alvo apenas de partidos como o PSOL, mas deles mesmo. É difícil acreditar que haja conforto em todos desses partidos com a necessária corrupção para se manterem no poder. Com a crise política Dilma deveria colocar seu peso na imediata reforma política, de outra maneira há a simples opção pelo imobilismo que os escândalos causam no cotidiano do país, enquanto a elite política e financeira pensa em como conseguir a verba para a próxima campanha.
    O exemplo da Grécia é fundamental. Diante da radical crise é preciso olhar para as coisas e se abrir para mundos possíveis. Talvez seja essa possibilidade que esse início de governo esteja jogando fora.

Grécia e a violência da mídia

Grécia,
O The Economist é das mais influentes revistas do mundo.
Seus princípios liberais são conhecidos de todos, mas o texto dessa semana, sobre a Grécia, dá a dimensão do medo que esses poderes tem de que o basta que esse país quer dar para austeridade imposta pela Europa se espalhe por Espanha, Itália, Portugal e mesmo França.
O artigo é uma sequencia de ameaças, exemplo: “eles não tem escolha”, se Tsipras for provocativo demais o Banco da Grécia quebra” “se Tsipras mandar os sinais errados” sofrerá retaliações, “eles não tem experiência” para a tarefa que estão se propondo, “Tsipras está jogando com a sorte” etc, tudo isso com a constante ameaça de expulsão da Europa.
O recado para o sistema financeiro é claro. É preciso fazer a esquerda grega fracassar, de outra maneira teremos que renegociar nossos ganhos com todos os outros países. De outra forma a esquerda de muitos outros países pode se fortalecer.
A resposta do Grega tem sido: nosso problema não é um problema local, mas de todos os trabalhadores da Europa. O empobrecimento da Grécia é o mesmo que tem fomentado a xenofobia em muitos países.
O que o novo governo grego coloca para a Europa é a necessidade de recolocar em questão do porque haver uma “união”, seus princípios e prioridades.
Nas prioridades de Merkel e do The Economist não há lugar para esse debate. Diferentemente do que gostaria o jornalismo violento da revista e as ameaças da Alemanha, o que está em jogo é muito mais que economia, mas opções de mundo.

Charlie Hebdo

As questões trazidas pelo assassinato do pessoal do Charlie Hebdo são das mais importantes. Claro, todos condenaram os assassinatos, mas não foram raros os casos em que uma certa responsabilidade foi colocada nos cartunistas. “Eles estavam brincando com fogo, assim não dá.”
Poucos dias depois, no afã de uma resposta à sociedade – ou de simplesmente fazer valer seu poder – o governo francês prendeu o comediante Dieudonné, detestado por muitos por conta de suas piadas anti-semintas. A prisão de Dieudonné, entretanto, foi feita sob acusação de defesa do terrorismo depois de ele ter publicado em seu Facebook, "Je suis Charlie Coulibaly" em referência ao homem morto pela polícia após matar quatro pessoas em um supermercado.
Aqui, novamente, não há mas. Assim como as charges não podem justificar o que foi feito aos jornalistas do Charlie, essa frase não pode justificar a prisão do comediante. Qualquer defesa de terroristas é crime na França, qualquer fala que incite o ódio. Se está certo ou não, é outro problema, mas prender o comediante por essa frase só é possível por conta do seu histórico antissemita, Mas, a frase, em si, de forma alguma justificaria a prisão agora. Prende-lo por essa frase é perder a dimensão paradoxal e ficcional de frase. Se no campo da ficção há esse limite imposto pelo estado, seu autoritarismo se torna ainda mais grave. Metade dos diretores e produtores de filmes de ação americanos teriam que estar na prisão.
A ação do governo francês é mais uma forma de expor um poder desprovido de qualquer legitimidade, tipicamente imperialista.
Mas, o mais inquietante me parece ainda a forma com nesses momentos entregamos para o estado a autoridade sobre o que é correto e o que não é. A cada vez que dizemos que algo não deve ser publicado estamos dizendo que o estado deve ter poderes para punir quem expressa opiniões fora do quadro esperado. No meu caso, preferiria confiar nos leitores do que entregar para algum juiz o direito de dizer o que deve ou não ser publicado. Levar esse argumento ao limite requer uma sociedade bastante madura, exatamente aquilo que não interessa aos poderes que tem interesse em guardar o monopólio sobre o que deve ou não ser dito e escrito. O estado diz, não podemos deixar alguém defender o terrorismo, isso traria uma péssima influência para a sociedade. Com esse argumento, as universidade inglesas são “aconselhadas” a não receber oradores radicais, os governos investigam jornalistas, como expostos no Guardian de hoje, o monitoramento da correção se torna uma moeda de troca, os que refletem sobre blackblocks são monitorados, etc. Na Europa, o terrorismo tem sido enfrentado com mais e mais polícia, a mesma que proíbe rezas muçulmanas em público na França, torres de mesquitas na Suiça e constrangedores nacionalismo em tantos lugares. Minha pergunta, nesses casos, é: Chamar o juiz e a polícia é o melhor a se fazer quando o que o preconceituoso, o blasfemo ou negacionista escreve? É uma dúvida.

A escola e os "valores da república"



Para o governo francês, a solução para o radicalismo religioso de alguns franceses está na escola.
Para isso, a escola irá comemorar o dia da laicidade, professores serão formados para ensinar moral e cívica e educar sobre mídia e informação. “É preciso ensinar os estudantes a diferenciar o que é e o que não é informação”, explicou Hollande. Cada escola será obrigada a ter um meio de comunicação – blog, jornal, rádio. Mas, para tudo isso, é preciso reforçar a posição e a autoridade dos professores, consolidar a disciplina e não deixar nenhum incidente em que os valores da república sejam questionados, sem punição, dizem os gestores escolares. Os pais terão que assinar um documento em que se colocam de acordo sobre a necessidade dos alunos não questionarem os valores da república. Em caso de punição, no lugar de castigos em que o estudante fica retido na escola, ele terá que prestar serviços à comunidade.
Na reação dos poderes públicos aos ataques terroristas, vemos novamente a escola colocada como instrumento para desfazer essa fratura nos princípios da república, uma vez que, não somente os assassinos cresceram no ensino francês, como, depois da morte dos jornalistas, o repúdio dos estudantes franceses não foi uma unanimidade.
Enquanto descobríamos as medidas dos franceses, uma blitz na Avenida Brasil fazia a triagem entre os jovens que poderiam chegar na praia em um domingo de sol, e os que teriam que ficar pelo asfalto. Os arrastões vinham assustando os banhistas na Zona Sul. Quando chegar na segunda-feira, esses mesmos jovens que foram revistados no domingo, porque eram negros e pobres, estarão da escola, encontrarão seus professores, entregarão ou não seus deveres de casa e provavelmente ficarão um dia mais próximos do fracasso escolar, longe das melhores universidades. O caso francês é muito diferente, é verdade. Mas não custa lembrar que na França, a esmagadora maioria dos alunos que estudam medicina, por exemplo, passaram por instituições privadas de ensino.
Aqui como lá, “os valores da república”, não estão separados de certas ordens da cidade, organizações do capital e do apartheid escolar. Para alguns, os valores da república mantém uma ordem de privilégios, para outros, as punições e as blitzs.