2 de ago. de 2013

O que é um coletivo?


O que é um coletivo?
Cezar Migliorin

Quando diversos grupos de cinema e audiovisual passam a se denominar coletivos, quando a Coca-Cola lança uma campanha na internet estimulando os consumidores a fazerem parte do Coletivo Coca-Cola, quando os funcionários do Ministério da Cultura avisam que irão incentivar os coletivos ou quando, em debates públicos, cineastas e artistas dizem que não aguentam mais falar em coletivos, é hora de desacelerarmos um pouco para tentar tracejar minimamente o que seja um coletivo.
Multiplicidades
Às vezes é preciso começar pelo óbvio. Um coletivo é mais que um. Certo, acho que até aí há consenso – por mais que um sujeito sozinho possa ser muitos. Entretanto, ao colocarmos assim, restam outras variáveis importantes. Um coletivo é mais que um e é aberto. Essa é uma primeira característica que evita que tratemos os coletivos como um grupo, como algo fechado; melhor seria dizer que um coletivo é antes um centro de convergência de pessoas e práticas, mas também de trocas e mutações. Ou seja, o coletivo é aberto e seria, assim, poroso em relação a outros coletivos, grupos e blocos de criação – comunidades.
Tal prática coletiva não significa que um coletivo se crie simplesmente com todos produzindo junto: ele se cria porque pessoas compartilham uma intensidade de trocas maiores entre elas do que com o resto da sociedade, do que com outros sujeitos e práticas e que, em um dado momento, encontram-se tensionados entre si. O coletivo, assim, é uma formação não de certo número de pessoas com ideais comuns, mas de um bloco de interesses, afetos, diálogos, experiências aos quais certo número de pessoas adere, reafirmando e transformando esse mesmo bloco. Um coletivo não faz unidade, mas é formado por irradiação dessa intensidade, um condensador, agregador de sujeitos e ideias, em constantes aproximações, distanciamentos, adesões e desgarramentos. Um coletivo é, assim, fragilmente delimitável seja pelos seus membros, seja por suas áreas de atuação e influência, e seus movimentos – um novo filme, um festival, uma intervenção urbana ou política – não se fazem sem que o próprio coletivo se transforme e entre em contato com outros centros de intensidade. Certo, toda criação é coletiva, quando criamos estamos em diálogo; desde os gregos o indivíduo só é concebível em relação. Não há página em branco, a começar pela língua e pela própria página – invenções coletivas. Toda criação é um diferenciar-se, uma operação de montagem com o que o mundo nos dá. Entretanto, não é com tudo e com todos que estabelecemos o mesmo nível de interação e troca. Nesse sentido, um coletivo é um campo de troca privilegiado, uma concentração de encontros de intensidade distinta.
Desmesuras
Podemos ainda afirmar que, em termos de desejo, investimento, criação, um coletivo está sempre em estado de crise, uma vez que seus membros não se articulam em função de uma institucionalidade, de um contrato ou de uma posição na cadeia produtiva, mas por conta de uma afinidade que se concretiza em ações em tempos variados. Um filme, um roteiro, uma obra, uma ideia. A crise constante é assim determinada pela heterogeneidade necessária e pelas múltiplas velocidades que constituem um coletivo. E a manutenção da intensidade que atravessa um coletivo depende da possibilidade de suportar e fomentar a coabitação de velocidades distintas, presenças inconstantes e dedicações não mensuráveis em dinheiro ou tempo, uma vez que são as intensidades transindividuais que garantem a força irradiadora do coletivo. Por exemplo, um sujeito ou gesto que pouco se faz presente fisicamente pode ser decisivo para a manutenção do coletivo como intensidade de conexão com outros coletivos, forças e criações, permitindo a participação em redes que os transcendem. A instabilidade essencial de um coletivo é estabelecida por investimentos e experiências não mensuráveis, e por isso um coletivo precisa conviver com regimes de trabalho não pautados pela lógica da medida – seja ela temporal ou econômica. Você trabalhou menos que eu, você ganhou mais que Fulano, você não consertou o vazamento. Sim, às vezes a manutenção de um coletivo se assemelha àquela de uma casa. Essas acusações negam o coletivo não no “trabalhou” ou no “ganhou”, mas na insistência no você – em relação ao vazamento, como nos lembra Gilles Deleuze, todo sistema hidráulico depende da fluidez do líquido e das paredes dos canos.[1]
            Frequentemente um coletivo pode ter um líder ou um sujeito que ganha muito dinheiro ou alguém de grande destaque em sua área. Esse ponto fora da curva só se estabelece uma vez que ele entra em uma narrativa que atravessa o coletivo – o sucesso financeiro, a lógica da celebridade – e passa a operar dentro de uma hipersignificação dessa narrativa no interior do coletivo. As crises dos coletivos são, frequentemente, formas de incorporar narrativas externas – que também o constituem – sem que essas narrativas estandardizem a tensão do múltiplo que configura um coletivo. A crise se configura como um processo de desmanche da hipersiginificação das narrativas duras. A lógica do sucesso que está em tudo e hierarquiza uma empresa, uma família, uma sala de aula torna-se hipersignicante em um coletivo se ele se verticaliza e perde a intensidade de conexão. A crise torna-se uma forma de fazer o ponto fora da curva se assemelhar ao líder que Pierre Clastres descreve em seu livro A sociedade contra o Estado. Em determinada tribo estava nítida a necessidade de haver um chefe. Sua incumbência era bastante clara: como todo chefe, ele deveria falar para a tribo. Todos os dias, no mesmo horário, o chefe se deitava em sua rede e falava. Entretanto, ninguém o escutava. As crianças brincavam em volta e os adultos seguiam em seus afazeres. Se porventura um desses chefes se tornasse um orador escutado e suas palavras começassem a significar na tribo, ele logo era substituído. Lembremos ainda os lobos caçadores de Elias Canetti, citados por Deleuze:

Nas constelações cambiantes da matilha, o indivíduo se manterá sempre em sua periferia. Ele estará dentro e, logo depois, na borda, na borda e, logo após, dentro. Quando a matilha se põe em círculo ao redor de seu fogo cada um poderá ter vizinhos à direita e à esquerda, mas as costas estão livres, as costas estão expostas à natureza selvagem” (CANETTI, 1966 apud DELEUZE, 1997a: 45).
“Reconhece-se a posição esquizo, estar na periferia, manter-se ligado por uma mão ou um pé... Opor-se-á a isto a posição paranoica do sujeito de massa, com todas as identificações do indivíduo ao grupo, do grupo ao chefe, do chefe ao grupo; estar bem fundido com a massa, aproximar-se do centro, nunca ficar na periferia, salvo prestando serviço sob comando (DELEUZE, 1997a: 45).

Esse parece ser o frequente desafio dos coletivos. Quando um sai da curva, ou se torna o um desgarrado do múltiplo, é preciso inventar estratégias para que sua força pessoal retorne ao coletivo e a narrativa de um não se sobreponha ao todo. Cada linha reta, cada narrativa forte é atingida para logo ser abandonada, virar comédia no coletivo sem que a linha reta precise ser quebrada. Que o sucesso e o dinheiro não nos abandonem! Assim, quando um coletivo se dissolve, não há fracasso, a menos que a dissolução seja pela adesão a ordens que escapam às invenções do coletivo, às práticas dominantes que impossibilitarão tanto seu movimento quanto a existência dos indivíduos sós e associados, simultaneamente. O fracasso é a hipérbole da linha reta.
O coletivo pode ser formado por uma série de indivíduos que, olhando para o fogo, para alguma centralidade, trazem todo um mundo nas costas. Diferentemente das pirâmides, não é na acumulação de blocos iguais que se dará a construção de algo, mas no encontro não hierarquizado dos mundos que trazemos nas costas. E são esses mundos que nos coletivos são mediados. Quando a filtragem dos mundos se dá de maneira dura e exterior aos coletivos, ele perde o sentido.
Atualizações
Há uma pragmática dos coletivos. Eles se efetivam em ato, nas atualizações dos encontros que podem se dar das mais diversas formas: obras, filmes, seminários, livros, invenções simbólicas e econômicas. Quando destacamos o caráter processual de muitas obras feitas por coletivos, tal característica não se deve ao fato de serem eles grupos ou produtoras que se forjam apenas para a execução de algo, mas ao fato de haver, nessas obras, uma parte da intensidade de estar junto, com evidentes consequências para a estética das obras. Trabalho e vida se atualizam em obras, fundamentais em vários sentidos, mas nunca tomadas como o fim do coletivo. Estar junto, fazer, conectar, assim as obras são também contaminadas pela força do coletivo. Uma produtora produz filmes. No limite, um coletivo pode ou não produzir filmes, e se produz hoje pode deixar de produzir adiante. Quando a lógica dos coletivos ganha intensidade, para além da pura retórica conectivista ou coletivista, parece ser justamente o momento em que artistas, cineastas e documentaristas mais exploraram a ideia da obra como disparador de encontros, apostando em uma intensificação da comunidade por meio de instalações fílmicas, site specific, espacialização da música, desespecificação das artes e invenção de maneiras de ocupação do espaço. As obras são atravessadas por uma investigação em torno da organização entre corpos e imagens, normalmente não pautada por uma centralidade – roteiro, autor, artista.
            Jacques Rancière (2003) faz uma crítica veemente à grande parte da produção contemporânea em artes plásticas que opta por dispositivos relacionais e é tratada como arte essencialmente política. Rancière critica a falta de conflito e a tendência enfaticamente consensual das obras que se fiam em um “estar junto” da comunidade e em pequenos rearranjos do grupo. Assim, ele dirá que essas obras operam dentro de um regime ético – ou seja, meramente prolongando o ethos, as formas de ser da comunidade, sem comprometer a organização das partes da comunidade, aqueles que têm direito à fala e ao sensível.
            A revolução, que fica como um pano de fundo dessa crítica, efetivamente não tem lugar. Mas seria excessivamente redutor desconsiderar os efeitos micropolíticos de obras que não operam por amplas rupturas, mas são agregadoras e ao colocarem junto podem, sim, tocar o limite das harmonias possíveis quando se está em tensão com o real. Para isso, não basta estar junto, mas é preciso atualizar o contato: diferença que se encontra com a diferença. Nesse sentido, um coletivo se forja entre obras e pessoas com um braço estendido para o caos – um outro potencial.
Espaços
Como os sistemas hidráulicos, os coletivos existem atravessados por fluidez e abertura, disponíveis a novas conexões, mas ao mesmo tempo dependem de pontos fixos de convergência. Caso contrário, a dispersão impede a configuração de um ponto de tensão, de um irradiador de intensidade. Esse ponto de convergência pode ser um espaço, um ambiente em que sujeitos, ideias e dispersões – de todas as naturezas – sexuais, alucinógenas ou depressivas – encontram a possibilidade de coexistir. O espaço se constitui frequentemente como catalisador e como razão para a manutenção do coletivo, mesmo quando nada se conecta, mesmo quando as redes não se fazem ou quando pouco se materializa.
O espaço de um coletivo não é um ateliê nem um centro de negócios, mas tende a contemplar as dimensões econômicas, produtivas, criativas e festivas dos sujeitos que o constituem. Atravessado por várias ordens e presente em configurações de trabalho que não estão preestabelecidas, o espaço tende a ser ponto de convergência mas, no seu interior, a fluidez também é grande: novas paredes aparecem, outras caem; mudanças de sala, cadeiras que se deslocam de um lugar para outro, paredes abrigam ora uma imagem, ora outra, e o telhado ganha novos contornos para evitar o excesso de calor. Mesmo o espaço de convergência e consumo de comida, café e drogas tende a ser móvel, apesar de frequentemente ser aquele que resiste mais à transformação. E, claro, em algum lugar sempre há alguma infiltração ou goteira, ambas com sua beleza.
Redes
Finalmente, os últimos anos nos apresentaram um tipo de mobilização em torno do cinema e do audiovisual que traz singularidades para a história dos coletivos. Por questões tecnológicas, políticas, econômicas e subjetivas, vimos novas redes de produção e consumo se forjarem. Essas redes produziram muito e barato, baixaram filmes de todas as épocas, transformaram as políticas públicas, tensionaram o Estado, inventaram cursos de cinema e audiovisual em muitas cidades, multiplicaram os cineclubes e festivais, fizeram o audiovisual muito presente em ONGs, escolas e associações as mais diversas, inventaram revistas de crítica etc. Não se trata de valorar aqui esse processo, mas de perceber que a noção de coletivo reaparece em um contexto inalienável dessa configuração que atravessa as vidas e essas várias redes sociotécnicas. Diria, então, que uma das características dessas redes é estabelecer a conexão entre coletivos e que os coletivos aparecem como uma tentativa micropolítica de sincronia com movimentos de redes que os ultrapassam e para as quais eles são fundamentais. O coletivo é um ponto na rede e, também, ele próprio uma rede. Na construção de redes, acentradas, entre múltiplos atores em um espaço ilimitado, os coletivos aparecem como centros de concentração de ideias, pessoas, criação, forças de onde novas conexões podem sair para compor outras redes.
Uma rede não é por princípio um valor, mas é difícil pensarmos um cinema, uma arte ou uma comunicação que se forje de maneira potente e democrática e não passe pela ampliação dessas redes de pessoas, tecnologias, políticas e criações. Ser afetado por um filme, como espectador ou como produtor, é passar a fazer parte de um mundo, de uma comunidade, dessas redes sociais e técnicas. Nesse sentido, sempre houve coletivos na história das artes, mas eles existem enquanto se diferenciam no tempo, enquanto estão engajados com o que varia no presente e com as possibilidades de atualização criativa, política e subjetiva que não se repetem no tempo. Coletivos existem nos atos que afirmam o presente, em operações que não encontram resposta em outro lugar, mas nas próprias práticas.
Referências
CANETTI, Elias. Masse et puissance. Paris : Gallimard, 1966.
Clastres Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Francisco Alves, 1978.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997a. v. 1.
____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997b. v. 5.
RANCIÈRE, Jacques. Le destin des images. Paris: La Fabrique, 2003.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.




[1] Sobre os sistemas hidráulicos, ver “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra”, em DELEUZE e GUATTARI, 1997b.

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