28 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 32

F*da-se a vida. Foi essa frase que Gabriela Pugliese fez circular em vídeo para os seus milhões de seguidores. A frase é emblemática. Gabriela capta um ar dos tempos. Enquanto somos avisados que precisamos nos cuidar, que não devemos ter contato social, Gabriela junta os amigos, faz uma festa, bebe e, em meio a alegria de viver diz, f*da-se a vida. “Fui irresponsável e imatura” disse ela se desculpando. É verdade, foi. Mas, não é isso também que temos ouvido de todos os lados? Bolsonaro, Teich, Trump, saxofonistas de shopping, etc, talvez com menos clareza que Pugliese, mas com força de influencer bem maior.
Pugliese tem uma profissão singular. Ser influencer é viver e consumir para que seus seguidores possam ter um parâmetro de como viver-consumir. Pugliese faz de sua vida o seu trabalho. Viver é estar pronta e disponível para os olhos dos outros. Viver e consumir para entregar ao público normas, regras, produtos.
Subitamente, Gabriela derrapa feio. Erra. Mas como sua vida é para fora, para as redes, ela não tem tempo de avaliar o que fez e quando se dá conta, aquela estripulia adolescente já não lhe pertence. A velocidade entre viver e consumir agora se volta contra Pugliese. Agora, quando ouvimos falar que uma vacina para o Corona pode demorar um ano e meio para ficar pronta, isso nos causa estranhamento. Mas, nesse mundo em que tudo é tão rápido, como assim, um ano? Pugliese não vive outra temporalidade fora da ação-postação.
Bergson, o filosofo francês, dizia que o cérebro é, antes de tudo, um produtor de intervalo entre uma acão recebida e uma reação. Nesse intervalo ele associa memórias, afetos, pensamentos... Na velocidade do F*da -se a vida, esse intervalo se foi. O erro de Pugliese é um problema de velocidade também.
Mas, a beleza trágica da frase de Pugliese é que ao dize-la, sua vida-consumo despenca. Dezenas de patrocinadores-parceiros desfazem seus contratos. Talvez nem tão parceiros assim. Ao desfazerem os contratos, as empresas emitem notas que são reproduzidas em grandes jornais – o Estado de São Paulo, por exemplo, reproduziu mais de dez notas na íntegra – e, mais uma vez, ganham grande publicidade com a vida de Pugliese.
A moça consegue então dar à frase uma dimensão performativa. Assim como um padre transforma em marido e mulher o casal que declara casado, Pugliese detona a vida quando fala a frase fatídica no meio da festa.
Mas que vida é essa que é detonada? Não seria a vida o contrário? Não seria a vida aquilo que aparece quando se perde o controle, quando se erra, quando não se dá conta de performar como o público espera? Não seria a vida aquilo que nos demanda sem as garantias de likes, compartilhamentos e objetos?
Assim, na mesma frase que destrói uma certa vida de Pugliese, uma outra aparece. Depois do vídeo, é a própria vida que lhe cai no colo. Agora os parceiros sumiram, as celebridades fazem notas destrutivas. “Gabriela, não estamos juntos”, avisam. É com esse excesso de vida que a moça foi dormir.
Junte-se ao Brasil Gabriela, sem “parceiros” endinheirados, só temos a vida mesmo para encontrar todos os dias.
--Diário do entre-mundos 32 --

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