21 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 9

Diante de um acontecimento como esse somos intensamente exigidos. Exigidos no corpo, na escuta, na atenção ao entorno e no pensamento. Ser exigido no pensamento é também ter uma saúde interrogada. No pensamento podemos nos satisfazermos com tudo que conhecemos, sabemos, experimentamos e tentar encaixar o que nos acomete ali dentro.
- Essa onda gigantesca que chega precisa de muita solidez para não nos derrubar.
Bolsonaro, Guedes, etc não fazem outra coisa.
- O mundo é esse que está aí, nós temos a receita para mantê-lo e melhorá-lo para os “eleitos” e não há Corona Vírus que nos tire do lugar.
Mesmo que isso possa significar milhares de mortos, a primeira coisa a ser feita é negar o acontecimento. Construir barragens gigantes que possam segurar a onda.
Mas não é só o desejo de morte que nega o acontecimento.
Giorgio Agamben, no final de fevereiro, escreveu um texto em que apontava para o desejo dos poderes em fazer do estado de exceção o “paradigma normal de governo” e para isso se tomava “medidas de emergência frenéticas, irracionais e completamente injustificadas”. Outra intelectual brilhante, Maria Galindo, lê a chegada das medidas restritivas na Bolívia como mais uma forma de colonização e propõe: “cultivar o contágio, se expor ao contágio, desobedecer para sobreviver.”
Em todos esses casos, em um primeiro momento pelo menos, a tentativa é olhar a novidade, o corona, sem alterar a arquitetura do pensamento – no caso do presidente não há o que alterar.
Negar o pensamento diante do acontecimento costuma ter dois desdobramentos.
O primeiro é uma violência.
– Já que meu mundo, minha estrutura, não dá conta de tamanho acontecimento, é preciso mais força, mais estacas para que eu não seja abalado. Bolsonaro e Guedes são o exemplo novamente. Diante de um evento que não se molda ao tosco neoliberalismo da dupla, é preciso ser ainda mais violento: MP das demissões, 200 reais para desempregados, negação cada vez mais enfática de que isso é só uma gripezinha. Não é de se estranhar. Aceitar o acontecimento é se deparar com a necessidade de pensamento e isso parece estar fora do espectro possível para esses homens.
O segundo é a extrema angústia, a ansiedade. Diante do acontecimento, diante de algo para o qual não nos preparamos em nossos corpos, em nossas formas de pensar, há um mundo que se desfaz, que parece obsoleto para tudo isso que nos chega. Sentir nosso mundo como insuficiente para o que nos acontece não é simples. O que conhecíamos, o que sentíamos era suficiente para navegar em duros cotidianos, subitamente não é mais.
Uma outra angústia se faz necessária, a angústia do pensamento. Uma angústia que é também uma saúde. Uma saúde que tem a vantagem de não desejar a manutenção do que era a todo custo, que não demandará a violência de negar o outro ou o pensamento. Uma saúde que terá que encontrar meios, consigo e com os outros, de aceitar que um mundo desaba, que buracos estão feitos e que aquilo que era agora nos exige outras invenções, outras formas de ficar em pé.
Diante da onda gigantesca, vale a inteligência dos surfistas.
-- Diário do entre-mundos 9 --

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