A
geração dos professores que hoje está nas escolas foi formada por uma forte
crítica à disciplina. Disciplina aqui entendida em seu sentido amplo, como uma
forma de controle de corpos e mentes através de diversas técnicas de
visibilidade, de testes e punições constantes e mínimas. Os corpos poderiam ser
modelados por essas técnicas tornando-se capazes de atender às necessidades do
estado, da economia ou, na contemporaneidade, do sucesso pessoal. O exemplo das
escolas inglesas é flagrante: há algum tempo elas são muito concentradas no
resultados obtidos pelos alunos em avaliações nacionais feitas entre 14 e 16
anos, os GCSEs. Saber se uma escola é boa ou não é bem fácil: 1) qual a
percentagem de alunos que consegue 5 notas entre A e C, incluindo inglês e matemática.
2) qual a percentagem de alunos que consegue 5 notas A, incluindo inglês e
matemática. Tudo se resume a isso. As
notas que os alunos obtém são fundamentais para que eles possam fazer os
próximos dois anos em escolas de alto nível, o que garantirá a entrada em
Universidades de primeira linha.
Essa
concentração tem produzido escolas que trazem uma enorme crença na disciplina e
na especialização dos alunos. Para as
escolas essa crença é simples: os alunos estudam e não discutem. Não tem
bagunça nem uniforme fora do lugar. As tradicionais técnicas disciplinares são
colocadas em prática para produzir a necessária docilidade dos jovens. Mas, o
argumento que organiza a disciplina atual se associa ao neoliberalismo que os
governos trabalhistas e conservadores pós-Thatcher não abandoaram. O argumento
é simples, a disciplina é necessária para que cada um posso desenvolver ao
máximo as suas potencialidades e conquistar um lugar nesse mundo competitivo.
As velhas técnicas à serviço de uma produção subjetiva ligada ao capitalismo
contemporâneo.
Quando
vejo a discussão sobre a disciplina nas escolas no Brasil, ela parece ser
pautada por uma dicotomia em que a disciplina se opõe à arbitrariedades,
bagunças, desrespeitos, etc. Essa dicotomia me parece equivocada e seria
necessário pensar o papel do professor e da escola para problematizarmos essa
falsa dicotomia.
No
início do século XX, bem antes de Foucault, John Dewey escreve diversos artigos
em que é bastante crítico à disciplina, com especial atenção ao espaço escolar.
Ele chama atenção de como a organização militar das salas de aula é uma forma
de restrição da liberdade intelectual e como a disciplina produz uma
uniformidade artificial excluído desejos, pensamentos e imaginações; elementos
absolutamente mobilizadores para o conhecimento. Entretanto, não há produção de
conhecimento sem reconstrução, sem reordenamento desses mesmo impulsos
primeiros. Lembremos das três etapas colocadas por Whitehead, leitor de Dewey,
para falar do aprendizado – Romance, Precisão, Generalização - Trata-se de
passagens constantes entre ordem e caos, entre espontaneidade, dispersão e
foco.
Até
ai já temos um gigantesco desafio para os professores. Claro, seria bem mais
fácil que a dispersão e a liberdade de movimentos não fizesse parte da escola.
Se todos entrassem enfileirados na hora certa, se não olhassem para a lado e se
não ficassem a elucubrar soluções que não são as que estão nos livros. O
professor poderia se imaginar participando de uma linha reta de transmissão
entre o seu saber e o que o aluno deve aprender. Mas, essa geração pós-68 sabe
que não é assim que o conhecimento se produz.
Dewey,
em um outro artigo, de 1899, falava que com a industrialização, havia uma
mudança forte nas famílias e comunidades. Em uma casa do século anterior havia
sempre muito a fazer: cortar e lenha, fazer o fogo, cuidar dos animais, e que
agora - final do XIX – bastaria apertar
o interruptor para ter energia elétrica. O que precisa ser feito, para a casa e
para a comunidade? Naquela época estava claro. E hoje? Quando olhamos para o
mundo e para a nossa comunidade, o que está por fazer, onde é necessário
colocarmos a nossa força de trabalho, nossa capacidade intelectual? Qual o real
motivo do nosso esforço? Como escreveu Dewey, “a ordem faz sentido quando
relacionada a um fim” (Dewey on education 302)
Voltando
às escolas inglesas, pautadas pela concorrência entre alunos e escolas e
focados nas 5 notas, a disciplina que essas escolas inventam corre o risco de
perder toda a conexão com essas perguntas feitas por Dewey, para se limitarem
aos sucessos individuais e da própria escola. Por princípio, a disciplina torna
a comunidade irrelevante, uma vez que aquilo que constitui o background dos
alunos deve ser deixado de lado para que todos sigam as mesmas regras da
escola, em total autonomia em relação ao local e às individualidades. É também
curioso que as escolas públicas mais disciplinadoras, no caso da Inglaterra,
estejam justamente em áreas com muitos estrangeiros. Como as escolas estão em
áreas com alunos que tradicionalmente tem problemas disciplinares, para
resolver esse problema, as escolas optam por excluir a comunidade para integrarem
os alunos no mundo acadêmico das grandes universidade. O que me pergunto é se
há ai uma uma desqualificação da comunidade no processo educativo e uma
desqualificação da educação como parte do que podemos fazer por nós e pelo
outro.
Para
finalizar, (e fazer do trabalho do professor algo ainda mais complexo), parece
que a pergunta que precisamos exercitar quando nos colocamos críticos à
disciplina é: se o aluno não está sob a égide da ordenação total imposta pelas
regras disciplinares que pedem que a individualidade e a comunidade
desapareçam, quais são as forças atuando sobre ele? Ser critico à disciplina
parece demandar um mapeamento constante, por professores e pelos próprios
alunos, das conexões, dispersões e focos que atuam na construção ou na
estagnação do conhecimento. Como sempre, o papel dos educadores não é pequeno.