25 de nov. de 2014

O que as escolas privadas estão fazendo pela educação?


Com a proximidade das eleições na Inglaterra, um debate sobre educação começa a ocupar um lugar de destaque. Essa semana, um deputado do partido trabalhista, Tristam Hunt e Michael Wilshaw, o chefão do Ofstead, sistema de avaliação das escolas, colocaram de maneiras diferentes a mesma questão: O que as escolas privadas estão fazendo pela educação do país?
A desigualdade é dura.
7% dos alunos ingleses vão para escolas privadas, mas em Oxford e Cambridge, 50% dos estudantes estudaram em escolas pagas.
Segundo Melissa Benn, pesquisadora da educação, em 2009, de todos os alunos que entraram em Oxford, apenas 29 eram negros.
Um outra pesquisa mostra que os alunos das escolas privadas tem 22 vezes mais chances de estudar em uma das 20 melhores universidades inglesas do que os filhos de famílias pobres que estão no sistema público.

Não conheço os números no Brasil sobre a relação entre riqueza, escolas privadas e acesso à universidades de primeiro nível, mas não acredito que sejam muito melhores.
Pois, o que Hunt e Wilshaw colocam é: as instituições de ensino privadas precisam  assumir suas responsabilidades na educação, uma vez que é isso o que elas fazem, e não somente vibrar com o sucesso de seus alunos. Em outras palavras, o fracasso da educação como dispositivo de ascensão social e igualdade, é um problema de todos.
Hunt expõe alguns números com indignação: apenas 3% das escolas privadas ajudam financeiramente as escolas públicas e apensas 5% emprestam professores.
Wilshaw, famoso no meio por ter sido diretor de uma escola pública que obteve grande sucesso acadêmico, fala da necessidade das escolas privadas compartilharem expertise administrativa com as públicas.
Hunt é mais duro e diz que com os trabalhistas no poder eles não serão mais simpáticos nos pedidos para que as instituições privadas assumam suas responsabilidades e uma das coisas a fazer é cortar os descontos em impostos que muitas escolas privadas e religiosas recebem.

Meu interesse pela questão é obvio. Muitas escolas privadas no Brasil anunciam no final do ano o sucesso que obtiveram no Enem e as boas notas no Ideb, falam da qualidade de seus professores, de como são equipadas e da qualidade de seus espaços físicos. Mas, quantas podem efetivamente dizer que participaram na melhoria da educação como um todo e na invenção de uma país mais democrático?

Para ficarmos só na Zona Sul do Rio, qual a preocupação da Escola Parque e da Escola Nova com o sucesso escolar dos jovens da Rocinha? Qual o apoio do Santo Agostinho aos alunos da Cruzada? Qual a ação real do Lycée Moliére para melhorar a escola dos meninos do Pereirão? Qual o trabalho dos padres e dos pais do São Bento nas escolas dos pobres do Dona Marta? Quantas vezes por semana a Escola Americana abre suas instalações esportivas para a comunidade? Qual a formação que o Santo Inácio ofereceu à jovens e professores durante as férias?
Não tenho as respostas mas temo que essa que deveria ser a verdadeira parceria privado/público, acontece bem menos do que o necessário.

20 de nov. de 2014

Escola inventa e Dorival Caymmi


       Em uma antiga entrevista com a artista inglesa Bridget Riley, ela narra sua formação no Royal College of Art em que, segundo ela, a pedagogia era: “o mundo lá fora vai ser muito difícil, então é melhor começar com as dificuldades aqui”. A ideia de que o a escola precisa antecipar o mundo que nos desagrada não é exclusividade do Royal College que Riley conheceu, mas presente em uma enorme parte da educação.
      Essa antecipação possui pelo menos dois aspectos determinantes para o que será a escola.
      O primeiro é que o mundo está pronto e a escola é um modelador; na mais tradicional técnica disciplinar. A escola precisa treinar e adaptar os jovens para “o que está ai”; a competição, o individualismo, a ideia da superação, a atenção constante, a maximização do tempo de trabalho, a resistência física e intelectual aos desafios do trabalho “que irão te exigir no limite”. Assim então deve ser a escola, um espelho do que virá. A ironia maior é que conseguimos isso. A escola do pobre é pobre, a do rico é rica. Adaptar para o mundo que está ai pode ainda ter desdobramentos mais trágicos para jovens que vivem em bairros violentos com altos índices de criminalidade. Ter a escola como microcosmos de mundos possíveis parece ser um mínimo a se exigir da educação.
      O segundo, de ordem mais estritamente temporal, retira o presente da escola como um problema ético, estético e pedagógico para colocar no futuro as justificativas para aquilo que a escola é hoje. Ou seja, se a relação entre alunos, professores e funcionários não é boa, se a escola não possui artes ou música, se os jovens estão exaustos e estressados, se a participação dos pais é clientelista, tudo isso não é visto como um problema pedagógico, mas como algo a ser administrado para que a escola possa ter bons resultados.
       Como sabemos, qualquer reunião de pais de alunos de segundo grau acaba girando em torno do Enem. E, um pai de uma criança de 8 anos que pergunta em uma reunião sobre o resultado da escola no Enem não é uma aberração. Em outras palavras, o que a escola faz hoje só interessa na medida dos resultados que terá lá na frente.
      Tal problema temporal reverte a função da avaliação, tanto da escola quanto do aluno. No lugar de avaliar, a avaliação modula. No lugar de mapear sucessos e problemas, a avaliação impõe modelos. Nesse sentido, defendo que o Enem deveria ser completamente diferente a cada ano. Um ano o texto exigido deveria ser uma poesia, no outro uma carta para o Dorival Caymmi, no terceiro um diálogo entre amantes. Talvez isso ajudasse a trazer a educação para o presente dela. E quando alguém perguntar o que vai cair na prova, poderíamos responder: a vida inteira.

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Dorival Caymmi é cantor e compositor baiano, nasceu em 14 e morreu em 2008.
Bridget Riley é artista inglesa, nascida em 31 e conhecida por seus trabalhos de arte ótica.

18 de nov. de 2014

Enem, trabalho e subjetividade


       No ano passado, tentando entender um pouco do Enem acompanhei mais de perto o processo e li com bastante atenção a prova de humanas e línguas. Me chamou a atenção a qualidade das questões e a maturidade exigida dos candidatos. Já a prova de exatas e biológicas estava absolutamente distante de minhas capacidades. Mais do que um teste, o Enem hoje é um importante modulador subjetivo dos alunos, menos pela prova em si do que pela forma como o universo da educação está refém da prova.
       O segundo grau, em muitas escolas, se organiza hoje como uma corrida para as melhores notas no Enem. Essa corrida mimetiza a própria ordem empresarial contemporânea. Primeiramente o Enem tende a retirar da escola qualquer preocupação com a educação para molda-la para o modo como os alunos serão controlados. Uma escola que dedica 4 horas semanais ao ensino de música à jovens de 15 a 17 torna-se uma aberração, um atentado ao pragmatismo.
       O Enem não é uma prova que o aluno precisa passar, é uma prova em que ele deve ser melhor que os outros. Não se trata assim de chegar a um lugar, mas de torcer também para a mediocridade generalizada. Essa corrida que se decide em dois dias, cercada de elementos dramáticos amplamente utilizados pela mídia e pelos cursinhos particulares, é pautada por uma constante pressão sobre os jovens, pela competição, pela exigência de performance e pela ideia de superação física e intelectual.
Um aluno que se prepara para o Enem deve suportar as pressões de um universo em que os objetivos são móveis, cada vez mais elevados e em que nunca há trabalho suficiente, uma vez que há sempre alguém que pode “roubar” a sua vaga. Assim, não é incomum os pais falarem em reuniões escolares – Meu filho não está dando o máximo de si! E raramente alguém diz: ainda bem!
       Se no ambiente disciplinar havia um objetivo a alcançar, horas a trabalhar, tarefas a cumprir, hoje o Enem se tornou pedra central no controle dos jovens que sempre poderiam estar performando mais. O que poderia ser um processo de conhecimento ligado à adolescência é transformado em um produtor de culpa e dívida infindável. Como não há objetivo a cumprir, mas uma performance sem medidas exatas a realizar, o jovem está sempre em débito.
       Paralelamente, são esses mesmo jovens que no ambiente escolar e familiar desfrutam de grande autonomia e liberdade. Essa saudável autonomia encontra um poderoso artifício de controle que lhes entrega a total responsabilidade pelo sucesso e organização do tempo – que deve ser maximizado. Pressão e a culpa se amplificam.
       A performance só termina nos dois dias de prova em que os jovens são testados em provas longuíssimas. A linha de corte entre os bons alunos e os excelentes é muito parecida com os jogos televisivos e com o trabalho corporativo em que a pergunta é: Ele aguenta a pressão? Para isso o jovem precisa dormir bem antes da prova, precisa ser rápido nas respostas, não pode pensar muito ou fazer conexões mentais dispersivas. Se aguentar a pressão, poderá ingressar na universidade, mas, mais do que isso, poderá entrar no mundo do trabalho que não exigirá nada muito diferente.

14 de nov. de 2014

En Rachâchant - Negando a escola


O garoto de 7 anos entra na cozinha onde sua mãe faz o jantar e o pai fuma e, cantando, avisa a família.
- Eu não retornarei mais à escola.
- Por que?, pergunta a mãe.
- Porque na escola eles me ensinam coisas que eu não sei.
Assim começa o curta metragem de Jean-Marie Straub et Danièle Huillet, com texto de Marquerite Duras, realizado em 1982.
O caso é grave e Ernesto precisa ser levado à direção da escola, onde o garoto continua, com pouquíssimas frases, revelando a lógica escolar.
- Não estou lhe reconhecendo, diz o diretor.
- Eu estou lhe reconhecendo, responde Ernesto.
- Então você recusa a se instruir. E por que?
- Porque isso já durou demais.
- O estudo é obrigatório.
- Não em todos os lugares, diz o garoto.
O diretor levanta, bate na mesa e mais uma vez faz o seu papel reconhecível. O plano segue fixo na mesa do diretor.
- Aqui é aqui e não é “todos os lugares”.
Ernesto, que não quer mais a escola, é interrogado pelo professor sobre seus conhecimentos. Quando o professor mostra uma foto do presidente François Mitterrand e pergunta quem é, Ernesto responde: um companheiro. E isso? O professor mostra uma borboleta em uma placa de vidro. É um crime, responde Ernesto. Para cada objeto que o professor busca um saber organizado pela escola, Ernesto devolve um outro saber; crítico, múltiplo, pragmático ou abstrato.
- E isso? Pergunta o professor mostrando um globo terrestre. Por acaso é uma bola de futebol ou uma batata (pomme de terre)?
- É uma bola de futebol, uma batata e a terra, responde o garoto, seguro de si.
- Um caso único diz o professor intrigado. Uma criança que só quer aprender o que ele já sabe.
O professor coloca então a pergunta decisiva e fundamental.
- Mas como essa criança pretende aprender o que ela não sabe?
O menino então dá sua cartada final.
- En rachâchant, diz ele, inventando uma palavra que parece misturar pesquisa – recherche - e canto – chant.
A tensão aumenta e o professor chega a ameaçar fisicamente a criança. A mãe impede a agressão. E o professor pergunta então: - E como Ernesto irá aprender a ler, escrever e contar?
- Inevitavelmente, diz a criança. Levando ao extremo a evidência de que o mundo ensina e de que o aprendizado está em tudo.
Ernesto deixa a sala enquanto o pai questiona o professor:
- Ele conseguira aprender, ler, trabalhar, trabalhar?
- Sim, responde o professor.
O filme, organizado como uma comédia em que todos atuam com gestos hipercontrolados, é agudo na crítica à forma como a escola inventa um mundo de conhecimento auto-justificáveis, desconectados da pesquisa individual e do canto, da poesia. Mais de 50 anos antes, em um artigo sobre o ensino de matemática, Whitehead fazia essa crítica, dizendo que o ensino era baseado em detalhes extremos, distantes do conhecimento comum e das grandes ideias. Ou como dizia, Ira Shor em conversa com Paulo Freire “Quando os estudantes realmente querem alguma coisa, movem céus e terras para consegui-la.” Inclusive negar a escola, como Ernesto.

https://www.youtube.com/watch?v=jQT02HG3jx4

13 de nov. de 2014

Filme-carta em Centro de Ações Socioeducativas


       Quando começamos o Inventar com a Diferença, não sabíamos ao certo as faixas etárias que trabalhariam com o projeto, nem que tipo de escola teria interesse em utilizar nossa metodologia. Nosso princípio era de confiança no professor, ou seja, não cabia a nós dizer a idade dos alunos que poderiam se interessar em nossas propostas, mas ao professor que não só conhece a turma que tem, como tem a capacidade de adaptar o material às características e possibilidades do grupo.
     Graças ao engajamento e interesse de muitos mediadores tivemos a grata surpresa de ver o projeto chegar a um grupo para alfabetização de idosos, em BH, escolas de educação especial e à três escolas destinadas aos jovens que estão internados, cumprindo medidas socioeducativas. Antes da temática dos direitos humanos, o acesso desses jovens ao meios do audiovisuais, lhes permitindo uma experiência de mundo e estética com a ajuda dos professores e mediadores, nos parecia, em si, uma vigorosa intervenção política na vida de jovens que terão desafios gigantescos pela frente, para não terem suas vidas definitivamente marcadas pelo universo da delinquência e das prisões.
       Em uma dessas escolas, no Recife, o mediador Caio, já havia nos mostrado um minuto Lumière feito por uma interna. No CASE Santa Luzia uma adolescente de 16 anos se filma sem mostrar seu rosto, ao mesmo tempo em que desvenda o que ela chama de pergaminho. Uma carta em forma de rolo de papel, com muitos metros de comprimento com escritos como “eu te amo” em letras garrafais, desenhos, aprendizados e uma grande carga afetiva. Já havíamos ficado tocados com o contraste entre os desejos da menina expressos nesse vídeo e a sua condição em “medida socioeducativa”. Sem nos pedir nada, a menina havia conseguido inventar um “nós” nessa história. Nós que escrevemos, desejamos, inventamos e temos projetos. Por um instante, um mundo comum se fazia entre ela e os que pelos mais diversos motivos tiveram a sorte de não estar ali.
       Alguns meses depois, esse mesmo grupo produziu um filme-carta em que diversos Minutos Lumières foram montados e narrados. Em cinco minutos, com simplicidade, o filme traz essa intensa carga documental de que o cinema é capaz. Estão ali presentes, de maneira como raramente vemos, a vida de adolescentes em situação de grande fragilidade, sob a tutela do estado.
       Muitos dos planos escolhidos pelas adolescentes utilizam as janelas e portas como moldura, seguindo um dos dispositivos do material de apoio: Molduras e máscaras. Entretanto, aqui as molduras são gradeadas. Vemos com frequência a tentativa das meninas em mostrarem o lado de fora, fazendo menção ao que elas ainda conseguem ver da rua ou das comunicações que estabelecem com o exterior e com as famílias; como nos pergaminhos.
       “O tempo vai passando, às vezes vai piorando, às vezes vai melhorando e assim a gente vive a vida da gente aqui nesse lugar horrível” Escutamos isso enquanto vemos uma janela com grades e do lado de fora e palmeiras que com o vento reproduzem o que levou Geoges Mélies a dizer, em 1895, vendo os primeiros filmes dos Lumière: "no cinema, as folhas se movem". A beleza do filme está nesses pequenos contrastes e na forma como o trabalho com o cinema parece ter trazido mais uma possibilidade de reflexão sobre o lugar e a condição das meninas, uma reflexão mediada por uma escritura frequentemente poética.

Mediação: Caio Sales
Orientação: Carlos Tomaz, Lourdes Paz
Realização E.M.S.S., G.B., G.S.A., M.M.S., P.B.S.

http://www.inventarcomadiferenca.org/v%C3%ADdeos/filmes-carta/escola-carlos-alberto-gon%C3%A7alves-de-almeidacase-santa-luzia-filme-carta-de-recife

9 de nov. de 2014

The Art School and the Culture Shed.


       This week I’ve had the pleasure to discover the research by John Beck and Matthew Cornford, turned into the book The Art School and the Culture Shed.
       The professors started to document the buildings of more than one hundred art schools that existed in England during the 20th century. According to then, these places were very active during the decades that followed the WWII, but during the last 30 years, they started to close and art learning has migrated to universities.
       The small book is simple and full of well-printed images of these buildings that are no longer art schools. Some of then have been transformed into flats, others are abandoned and some have even been destroyed.
       This documentation of an era thru the edifices of art schools would already have a great interest, but the research does a second move. The professors stroll around each art school, normally not in the centre of the towns, and try to discover where art could be found in the neighbourhood. This second move is revelatory.
       Not far from where there was an art school, and now the original buildings try to resist, impressive and ultra-expensive new buildings were made. Designed by international awarded architects they receive art exhibitions, its cafes and bookshops. But no art is made there.
       The researchers act like a filmmaker; doing the shot and the countershot. On doing that, they explicit how art participate on the transformation of the cities, frequently loosing all its strength on interrogating the actual world, to become an important commodity for gentrifications and similar transformations of the urban space.
       The final story they told during a seminar at Westminster University, witch is not in the book, is about The Saint Martin's School of Art, in the central part of London. The school was active from 1854 to 1989. Internationally recognized, it was a place where artists like Gilbert and George, Richard Long and Eduardo Paolozzi went. As many other schools the building was transformed into flats; very expensive ones. But, the striking part of the story is that on the website where the apartments are presented, pictures from the time the school was there can be found, as well as the name of all the important artists that went to Saint Martin's. At the same time that art disappears from the place, the successful signatures are incorporated by real state to improve value. By the way, the new name of the building is: The Saint Martins Lofts. (http://www.saintmartinslofts.com/gallery/thelofts/)

       Doing these two movements, the research turns to be highly political with a montage effect. Art is back, at least here.
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The Art School and the Culture Shed.
by John Beck and Matthew Cornford
2014

8 de nov. de 2014

Olhar a escola pelo cinema e a aprovação automática


      Uma das discussões mais presentes sobre educação nas últimas campanhas eleitorais foi sobre a pertinência ou não da chamada aprovação automática. Com ela os alunos são autorizados a passar de um ano ao outro mesmo que não tenham adquirido o conhecimento necessário para tal. Essa discussão só é possível em um sistema em que a educação é entendida como uma sequencia de prêmios e punições. Se o aluno preencher o que é demandado, segue, se não fica parado. Como pensar uma escola em que o estudante deseje estar presente se está sob a constante ameaça de ficar parado? Ou seja, reclamamos do pouco engajamento dos alunos, mas o que temos a oferecer é a constante ameaça da repetição?
      Nesse sistema, o conhecimento é entendido como um grande bloco organizado por programas que se dividem em anos escolares e disciplinas. É duro ouvir de um jovem de 15 anos, dois anos “atrasado”, que não passou no último ano por conta das notas de geografia e ciências. Mais uma vez, seremos eficazes em achar vários culpados para o fracasso desse jovem, menos o ensino em si, menos a escola e os professores. Pois acho que uma parte grande do que acontece com esse jovem está ligada à forma como aceitamos essa blocagem de saberes desconectados do que importa nas vidas cotidianas desses jovens. O problema assim não seria aprovar ou não automaticamente, mas transformar a escola em um lugar onde uma atenção possa ser dada àquele que por alguma motivo não está vivendo a experiência da presença, por exemplo, da geografia em todos os lugares; na arquitetura das casas em favelas, nos deslizamentos de terra na região serrana, na forma com a água está chegando em sua casa, no calor que o inquieta no verão.
      Em muitos dos filmes-carta executados durante o Inventar com a Diferença, questões ecológicas vinha a tona, o cinema aparecia como uma forma eficaz de discutir e mostrar o que inquieta os jovens. Em um filme-carta realizado em Imperatriz, no Maranhão, endereçada aos alunos de Florianópolis, depois do aluno falar do prazer de olhar “com mais detalhes o que está em nosso redor” e mostrar os detalhes de grãos de areia escorrendo, o filme toma um posicionamento bastante político em que questiona questões ambientais associadas às diferenças de classe; para isso, mostra esgotos a céu aberto em contraste com uma orla cercada de prédios para famílias abastadas, isso tudo depois de localizar Imperatriz no Maranhão e no Brasil. Em um filme de 5 minutos, os alunos, de aproximadamente 15 anos, produziram um universo de interrogações que passam por questões sociológicas, econômicas, químicas, físicas, biológicas, históricas e geográficas; tudo isso mediado por problemas de linguagem e estéticos. Esse filma-carta, endereçado à Florianópolis, poderia também ser um filme-carta endereçado a nós, educadores. As inquietações estão explícitas e para aprofundá-las a escola se apresentaria como um espaço ideal, associando saberes.
      Em nosso atual modelo, a progressão automática ou não, depende de uma escola de conhecimento isolados, de ritmos homogêneos para todos e da blocagem do conhecimento, ou seja de uma profunda artificialidade nos modos de aprender, uma incongruência que não permitiria um filme tão interdisciplinar como o produzido pelos alunos de Imperatriz. O professor Fernando José de Almeida, faz uma distinção entre aprovação automática e progressão continuada e nos lembra “Na cidade de São Paulo, Paulo Freire (1921-1997), quando secretário de Educação, entre 1989 e 1991, propôs que os ciclos fossem de três anos no Ensino Fundamental e apenas no fim de cada um haveria exames que definiriam se o aluno seria retido ou não. Sistemas desse tipo devem vir acompanhados de um mecanismo que permita a correção dos rumos antes do fim do ano e envolva os professores em planos de orientação dos alunos com dificuldades.”
      Vários professores que argumentam contra a progressão automática dizem que é a possibilidade de reprovação que possibilita que seja mantida a disciplina e a assiduidade dos alunos, como testemunha o trabalho de Maria de Lourdes Rangel Tura e Maria Inês Marcondes, da UFPE. “A avaliação escolar segue normas institucionais, mas ela é basicamente de responsabilidade do/a professor/a e a nova proposta de avaliação abolia a possibilidade de reprovação, que tem sido entendida como uma forma de alcançar a disciplina escolar, o empenho do/a aluno/a em relação às tarefas escolares e a sua assiduidade.” Claro. Os professores têm razão; no presente modelo, se for retirado o medo dos alunos porque eles iria a escola? Esse argumento, mais do que dizer da necessidade da reprovação fala de um fracasso do ensino como um todo, que precisa ser baseado no medo, como se o aluno não tivesse outro motivo para estar na escola. Nesse mesmo trabalho, as autoras mostram que é o argumento da autonomia do professor na avaliação que é frequentemente usado para defender a reprovação. Ou seja, uma autonomia para exercer medo sobre os estudantes. O debate é mais complexo que isso e especialmente no Rio de Janeiro a aprovação automática foi usada sem nenhuma mudança na estrutura, que passa pela necessidade um horário integral, pela disponibilidade e remuneração de professores que trabalham com os alunos em dificuldade e por processos de avaliação autônomos a partir de certas idades.
      Enquanto no Brasil um jovem de 16 anos pode não completar o ensino médio por conta de suas dificuldades em matemática, na Inglaterra, depois dos 16 anos o jovem deve escolher as 4 disciplinas que irá cursar até a faculdade – esse pode não ser um bom exemplo a seguir, mas explicita a artificialidade do nosso. Lembro isso para dizer que as reprovações hoje justificam que as escolas entreguem aos alunos o seu fracasso, deixando de lado os problemas do próprio sistema, além de participarem de uma importante triagem, marcadamente de classe, entre os que estarão nas boas universidades e os que não estarão em universidade alguma.
      Esse breve exemplo do filme-carta, explicita a possibilidade de uma produção de conhecimento transversal às blocagens disciplinares em que o cinema não aparece para ensinar ciências ou geografia mas é o ponto de conexão entre processos que afetam as vidas dos estudantes e que mobilizam o desejo de conhecer e aprender. Certamente muitos outros são possíveis.

http://www.inventarcomadiferenca.org/v%C3%ADdeos/filmes-carta/ce-urbano-rocha-filme-carta-de-imperatriz-para-florian%C3%B3polis

6 de nov. de 2014

Escola: descobrir e organizar


Em Porto Velho, em uma das formações com os professores do Inventar com a Diferença, um dos professores que já tinha uma certa intimidade com o universo do cinema, depois de analisar cuidadosamente o material de apoio do projeto, comentou sentia falta de uma gramática básica de cinema: tamanho de planos, tipos de corte, estratégias de montagem, etc. Sim, não havia nada disso nas propostas de exercício que fazíamos ali, mas certamente não era por esquecimento. Com as melhores intenções, o professor colocou ainda que sem essa gramática era difícil saber se o aluno tinha aprendido ou não. Aquela colocação me pareceu das mais interessantes, de alguma maneira explicitava para nós mesmo as opções que havíamos feito. Por um lado, apostávamos em uma experiência com a imagem sem partirmos do mundo organizado do cinema. Ou seja, experimentar o cinema na escola era como inventar o cinema, como se as invenções ainda não tivessem nome. Quando o aluno fazia um plano nas oficinas, o que interessava não era o nome ou o tamanho do plano, mas as opções ali feitas, o ritmo, as escolhas do que podia ser visto ou não, o ângulo, as linhas, os contrastes, etc. Talvez, com o tempo ele sentiria necessidade de se referir ao que fez e, talvez, usasse um nome – plano médio – para falar de suas opções. Mas, com a experiência de ter percebido que o nome do plano não diz quase nada sobre o plano.
Nesse dia voltei para o hotel pensando na preocupação do professor em ter elementos para poder avaliar se o aluno havia aprendido ou não. De alguma maneira o professor reproduzia algo tão corrente na escola em que tudo se resume a uma múltipla escolha: aprendeu ou não aprendeu. Sabe o que é um plano geral, ou não?
Mas, o que mais nos distancia desse método é algo que serve também para a língua. Na escola acreditamos que antes de escrever o que é importante ser escrito, precisamos aprender a escrever. Acho que se aprendêssemos a falar na escola teríamos grande dificuldade de um dia dizer alguma coisa, ou como escreveu Gabriel Cohn-Bendit; se aprendêssemos a falar na escola, seríamos mudos até os 10 anos. (p.44)
Vejamos o Enem hoje, uma grande importância é dada para a redação. Uma redação que é corrigida como uma múltipla escolha. O aluno escreveu 30 linhas? tem introdução, desenvolvimento e conclusão? Não expressou opiniões politicamente incorretas? E assim por diante. Os eventuais erros ortográficos são punidos severamente. Eventuais erros ortográficos são uma prova de que o aluno não está apto a entrar na Universidade, que não pertence à cultura letrada. No meu caso, só fui capaz de escrever uma tese porque tinha uma poderosa inteligência coletiva no meu corretor de texto do Word, que aponta cada erro que faço. Obrigado! A ortografia, na escola e no Enem, é uma forma de exercer um poder e uma opressão sobre os alunos, uma forma de pontuar milimétricamente os estudantes e garantir que apenas alguns entrem nas melhores universidades; se for estrangeiro, está perdido! Sem o uso do computador no Enem, a avaliação opta por um profundo arcaísmo e joga fora o saber coletivo porque precisa avaliar o indivíduo isolado do grupo.
A pontuação milimétrica não é exclusividade do Enem. Na universidade mesmo, pontuamos um aluno com a nota 8 e o outro com 7,75. Para que? Para dizer que um é melhor que o outro, não há interesse educacional que possa justificar isso. Se o Enem fosse pontuado A, B, C, D. Teríamos que mudar todo o sistema universitário e o ensino médio. Mas não, preferimos tratar nossos jovens como nadadores olímpicos, que perdem a medalha por 0,003 segundo. Um tempo que só existe graças aos fabricantes de cronometro.
Agradeço esse caríssimo professor de Porto Velho por ter permitido um excelente conversa no dia seguinte. Com ela foi possível formularmos um pouco melhor o que estávamos fazendo. Com o cinema, assim como com a língua, é preciso falar, filmar, escrever. Não há outro motivo para aprendermos as regras gramaticais, para usarmos melhores corretores de texto ou para discutirmos problemas de montagem que a necessidade e a liberdade da comunicação, da poesia e da criação.

3 de nov. de 2014

A funcionalidade da escola


        A escola parece cada vez mais pautada por uma funcionalidade que coloca o futuro econômico dos indivíduos em primeiro lugar. A naturalidade com que no país as escolas privadas se tornaram o padrão do que podemos esperar de uma boa escola transformou a educação em um investimento que as famílias fazem em seus filhos para que no futuro eles possam dar o esperado retorno. A educação se tornou uma mercadoria de altíssimo valor com compradores frequentemente dispostos a utilizar a maior parte de seus ganhos para comprar a mercadoria que garantirá um filho na universidade, um salário adequado na vida adulta. “Nós compramos educação para melhor nos vender”, escreveu Christian Laval (école capitaliste p, 146). Essa organização centrada nos sucesso individual, no “capital humano” (Gary Becker ) e na empregabilidade colocam a educação a serviço do emprego, do mundo já constituído do trabalho. Não é por outro motivo que nas últimas décadas se criaram escolas bilíngues para brasileiros  e aulas de empreendedorismo para a crianças. Como explica o consultor do Sebrae São Paulo: “Claro que você não vai pegar um aluno de sete anos que nem sabe matemática direito e ensina-lo a fazer fluxo de caixa, mas desde cedo é possível, e não só possível, desejável, que esse aluno comece a desenvolver as habilidades empreendedoras,” afirmou Bruno Caetano.   Preparar jovens e crianças para o futuro virou sinônimo de preparar para o trabalho, como expressa com todas as letras a matéria do Universia, dedicado à educação: “Muitos professores acreditam que sim, entretanto, esquecem-se da função básica da escola que é preparar os alunos para o futuro. Pensando nisso, é importante preparar os alunos para o mercado de trabalho.”
       A escola se organiza assim como um investimento que no futuro dará o retorno, mas, como o investimento é individual, não é para o vizinho ou para a comunidade que o retorno deverá se fazer, mas para o próprio indivíduo. O futuro, não mais da sociedade ou do planeta, é mensurável pelos ganhos futuros permitidos pelo investimento. A escola se tornou um problema privado em que os pais discutem sem constrangimento seus pequenos casos particulares, os sucessos e fracassos dos filhos, sempre movidos pelos seus direitos de consumidores, em infindáveis reuniões escolares. A hiper-funcionalidade da escola desloca para o mundo do trabalho e do capital a organização do presente da educação. Tal deslocamento é parte de um círculo vicioso em que a falta de investimentos adequados em educação levará o futuro adulto a ter um emprego com baixos salários e sem dinheiro para pagar a escola dos filhos. A desigualdade da escola e a privatização funcionalista são partes fundamentais da opressão que se exerce no mundo do trabalho sobre os adultos.
       Desde cedo está claro para a criança que o mundo do trabalho não perdoa, que ele deve ser atendido e que devemos nos curvar a ele, sob o risco do desastre pessoal: não educar os filhos na melhores escolas. Se a escola pública de baixa qualidade serve muito mal à população, ela funciona muito bem como um poderoso modulador de processos subjetivos. Perto de cada casa há sempre uma escola precária e barulhenta nos avisando que é para lá que nossos filhos irão caso fracassemos no mundo do trabalho. O fracasso da escola pública é feliz em garantir a pressão da concorrência entre indivíduos forjando um excelente laboratório para o mundo empresarial. O foco no empreendedorismo individual desejado por alguns não precisa de aulas específicas, mas de uma constante manutenção do medo.
Esse fabuloso mercado da educação é estimulado pela forma como o estado se abstém em garantir escolas de qualidade. Como isso não acontece e a pressão da sociedade persiste para que as escolas públicas ainda existam com alguma qualidade, novas propostas aparecem. Uma delas é fazer com que as escolas, mesmo públicas, sejam administradas como empresas, com o forte modulação dos salários dos professores, precarização dos contratos, concorrência entre professores, redução de autonomia de ensino, avaliações centradas no sucesso dos alunos no mundo do trabalho e mesmo captação de recursos por professores e administradores escolares.
       Em resumo, a necessária radical atenção que a escola precisa se deve à forma como hoje ela é 1) parte de um sistema de exclusão 2) moduladora de processos subjetivos afeitos ao liberalismo excludente. Se os pobres são radicalmente punidos, impossibilitados em ter a escola como promotora de ascensão social, os mais ricos funcionalizam a educação em função do trabalho, excluindo as possibilidades inventivas, criativas e críticas em relação ao mundo que desejamos. Alguns se salvam, mas o mundo ....
    Na verdade, mais do que uma reforma radical da escola, o que está em jogo é uma disputa de mundos, nesse sentido, talvez fosse importante levarmos a sério o repetido desengajamento dos jovens com a escola e as frequentes manifestações de estudantes que estouram em tantos lugares do mundo ano após ano.
       O que me interessava com essas notas era explicitar como a escola não é apenas formadora dos indivíduos que estão com ela diretamente implicados, mas parte de uma processo bem mais amplo, que toca ricos e pobres e que participa das modulações dos nossos processos subjetivos, do que desejamos, da forma como investimos nossas energias e engajamos nossas forças. Sem essa abertura, a escola se mantém como um problema privado, em que cada um tenta resolver o seu e com isso aceitamos a opressão que obriga crianças, jovens e adultos a cederem sempre ao capital.