23 de set. de 2014

Fica quieto e vai ler um livro!



Nas reflexões de Charles Fourier sobre educação, no início do século XIX, uma atenção secundária era dada aos livros e à cultura letrada na infância e na adolescência. Atento às vocações e energias de crianças e jovens, a educação não poderia esvazias as intensidades vitais dos jovens nem se tornar excessivamente desconectada do que não era escola. A crítica então de Fourier era a uma educação que se fazia na autonomia da vida cotidiana e, para isso, os livros eram essências.
Os livros ajudariam a educação a se tornar abstrata e a demarcar o que era escola e o que não era - o trabalho em coletivo, a sociabilidade, a brincadeira e o jogo - produzindo um verdadeiro divórcio entre escola e vida. Fourier temia que uma educação excessivamente marcada pelo livro dificultasse a forma mais intensa de aprendizado que acontece quando a criança “solicita ensinamento”. Para que ela pudesse solicitar, a educação precisaria estar em contexto; Fourier fala de uma “realidade do encontro”. Uma bela expressão para manter junto a vida, as energias vitais e o desejo de conhecimento.
Obviamente, não seria o caso fazermos hoje uma crítica à cultura do livro, mas, ao mesmo tempo é evidente como uma enorme centralidade dessa cultura na educação traz grandes desafios para pais e educadores. Com frequência escutamos a reclamação dos pais: ele não estuda! Ele não lê nada. Ler e estudar fazem parte dessa associação natural que no início do século XIX desagradava Fourrier.
Nos perguntamos então, como o livro é parte de uma leque de possibilidades para o estudo? Claro, está tudo na Internet, mas é como se fossemos desafiados a encontrar e inventar o ritmo para a entrado do livro nos estudos, sem esperar que ele tenha a centralidade, também porque a centralidade do livro gerou um segundo problema sério na educação. Em nosso projeto de cinema nas escolas, uma das mais frequentes narrativas que recebemos, vinda sobretudo de professores, era sobre a forma como alunos que precisavam de uma atenção particular para trabalhos que demandavam escritas mais elaboradas – o menino ruim em português -, frequentemente tinham grande destaque na execução dos trabalhos com imagens. Esse foi um dos motivos que quando pensamos a metodologia nos concentramos em uma experiência com a imagem. Não falamos em roteiro, por exemplo, justamente porque queríamos focar em uma relação com o mundo que não precisasse da mediação da palavra escrita em primeiro lugar. O que não excluía a escrita, obviamente, mas apenas não a deixava em primeiro plano.
De alguma maneira, nossa metodologia espelhava a 1) tentativa de colocar o livro e a escrita como como eventuais instrumentos para o trabalho, e não como aquilo que deve ser conhecido antes e 2) trabalha na atenção de desfazer hierarquias internas à sala de aula, centradas na escrita.
    Mas, a expressão de Fourrier - “a realidade do encontro” - nos dava mais um elemento do que estávamos construindo com nossa metodologia. Fournier na sua busca por uma educação harmônica, palavra que ele utilizava com frequência em seus textos, dava especial atenção às capacidades naturais das crianças, mas, para isso, ele chama atenção dos gostos dominantes da infância e um deles é o gosto por vasculhar. Vasculhar é algo extremamente forte em crianças de dois anos de idade e com o tempo tende a ganhar focos de atenção. A criança, “não para quieta”, felizmente, de outra forma não aprenderia. O risco da escola está em trabalhar com métodos em que esse princípio associativo e curioso da criança é desprestigiado em favor de uma centralidade do livro. Quantas vezes, como país ou educadores não falamos ou tivemos vontade de falar:  - para quieto e vai ler um livro!
Whitehead muito tempo depois de Fourier expressava essa preocupação no início do século XX, numa época de intensa especialização da escola, dizendo que havíamos deixado uma época de interesse na educação para a sabedoria em direção ao conhecimento livresco – text-book knowledge -  de disciplinas. O problema disso era o abandono de ideais de sociedade para que a educação de adaptasse à uma praticidade, no limite da estagnação intelectual. O texto de quase 100 anos é bem atual. Nos tornamos uma sociedade que felicita alunos brilhantes que com notas altas passam para as melhores universidades e ficam ricos trabalhando na especulação com o capital. O que é um desastre para a comunidade é visto como um sucesso pelas escolas e universidades.
A cultura do livro não pode ser uma cultura a parte, separada de uma demanda do estudante e das conexões sociais em que ele se forma. Grande desafio para pais, professores, arquitetos de escolas, etc; colocar o livro e a cultura letrada dentro de uma educação que transcenda o livro como fim.
Como diziam os antigos: “você não pode ser um sábio sem alguns conhecimentos básicos, mas você pode facilmente adquirir conhecimento e permanecer vazio de sabedoria” (Whitehead - Aims p 46)

22 de set. de 2014

Nativos Digitais?


Com muita frequência, quando chegamos na escola com o cinema, ouvimos de professores e pais a mesma marca temporal que os separa das crianças.
- Eles nasceram no mundo digital, na era da internet!
- Desde pequenos estão com seus computadores e celulares.
A tecnologia é entendida como um elemento de ruptura entre duas gerações. Mais do que isso, entende-se o fato de hoje os jovens e crianças terem tido que lidar com dispositivos de comunicação móveis, desde pequenos, como uma marca constituinte de seus processos subjetivos que os diferenciariam da geração dos professores – pelo menos os mais velhos – que entraram no mundo da comunicação 24/7, com o bonde andando.
Pois, nossa experiência pede que matizemos essas afirmações, dando, sobretudo, um lugar para a tecnologia que não é tão central nem tão constituinte dos processos subjetivos. Pelo menos não como divisor geracional.
Na escola nos deparamos com relações absolutamente heterogêneas com os mesmo dispositivos. Antes de organizar uma ruptura com a geração anterior, os nativos digitais continuam, assim como os não-nativos, encontrando os mais variados espaços e ritmos na relação com o mundo digital.
Na escola, nos deparamos com alunos que no recreio usavam aparelhos móveis com internet para jogar, namorar ou consultar assuntos discutidos em aula. Nos deparamos com professores que no meio da aula, buscavam o celular incessantemente enquanto reclamavam de alunos que faziam o mesmo. Ou, por conta de uma questão de classe, o mais corrente nas escolas em que trabalhamos, são crianças que simplesmente não tinham acesso à internet em seus telefones.
Mais do que uma linha de ruptura, o mundo digital parece entrar como mais um dos elementos constituintes dos modos de o conhecimento se fazer e não como um definidor em que os nativos digitais teriam vantagens, desvantagens ou especificidades em relação aos imigrantes digitais.
Essa separação essencializa a relação de idade com a tecnologia, o que me parece enganoso. A relação da tecnologia com os processos subjetivos são mediados de maneiras distintas entre diferentes indivíduos, comunidades, culturas. O que não quer dizer, é claro, que não haja uma forte modificação em muitos aspectos da vida urbana uma vez que essas vidas se encontram mediadas por tecnologias de comunicação digital.
Johnatan Crary aponta, por exemplo, para a forma como as tecnologias de informação estão fortemente associadas à novos estados de atenção e repouso na vida contemporânea. Quando tudo é acessível 24 horas durante 7 dias por semana, deixamos cada vez mais de lado nossas horas de sono para nos colocarmos em estado de vigília, mesmo no sono.
Stand by state, como se tivéssemos uma luzinha vermelha na testa, pronta a ficar verde. Segundo o autor, cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam no meio da noite para checar a entrada de mensagens em suas redes sociais. Esse processo que afeta o corpo é inseparável das demandas capitalistas que estimulam uma atividade constante de mercados e regimes de troca de dados constantes. Qualquer leitor reconhece esse fenômeno narrado por Crary em pessoas nascidas antes e depois dos anos 80. Nativos digitais ou não.
Com essa crença em mãos, nosso problema não é nem a exclusão dos dispositivos digitais das escola, nem a essencialização dos jovens como capazes ou incapazes de utilizar os dispositivos desta ou daquela maneira por serem nativos digitais. A rede em que esses dispositivos nos permitem navegar e da qual eles mesmos fazem parte, nos demanda antes que nos perguntemos quais são as conexões e ritmos que eles permitem. Voltando ao Whitehead: Quais são as conexões frescas que eles permitem? A cada momento que o dispositivo se tornar um homogeneizador de ritmos de atenção e um estabilizador de conexões, são os processos subjetivos que perdem em invenção e diferença.

19 de set. de 2014

É importante aprender isso porque lá na frente....

É importante aprender isso porque lá na frente....
E quantas vezes nos deparamos com professores, livros e nós mesmos fazendo essa formulação para convencer filhos e alunos a aprender uma reação química, uma problema de álgebra ou objeto indireto?
Preocupado em pensar um ritmo para o aprendizado que não seja pautado por um simples esquadrinhamento do tempo, como se o aprendizado estive associado à idade ou à passagem normatizada de séries, Whitehead define três estágios para o aprendizado; romance, precisão e generalização.
1 - Romance – momento do entusiasmo, das descobertas randômicas, conexões pouco precisas.
2 -Precisão – a extensão das relações são subordinadas à precisão das formulações.
É o momento da gramática – da língua, da ciência - mas não é possível um momento de precisão sem o romance.
Se a precisão antecede a conexão, o aprendizado vira um acúmulo artificial e inútil, diz Whitehead.
Não há objeto direto sem o entusiasmo pelo lugar onde ele pode nos levar.
3 - Generalização - Hegelianamente, o terceiro estágio de Whitehead tem um caráter sintético. Retorna-se ao romance com técnica, gramáticas e ideias organizadas e classificadas.
A educação, para se manter viva, diz Whitehead, não pode interromper esse círculo: romance, precisão, generalização. Esse ritmo, pautado por uma certa dialética entre ordem e desordem, não pode ser ordenado fora do processo do conhecimento.
No artigo, chamado The Rythm of Education, Whitehead coloca que
não é verdade que as matérias mais fáceis devem anteceder as mais difíceis.
Algumas mais difíceis devem vir antes porque elas são essências para a vida, claro.
O inglês tem uma escrita divertida e nessa palestra ele dá como exemplo o aprendizado infantil que precisa, na primeira infância, aprender a associar sentidos com sons, para a prender a falar. Uma operação altamente complexa. Logo depois, para aprender a escrever, trata-se de associar sons com formas...
O que é a dificuldade de um texto de Guimarães Rosa perto disso?
Ordenar a educação do mais fácil ao mais difícil, como um princípio, faz sentido se ela é artificialmente separada dos dois elementos centrais para Whitehead, a aplicabilidade e a lógica das combinações fresca.
Uma criança é capaz de falar por conta da aplicabilidade evidente que seu esforço e conhecimento recebe, por outro lado, uma tarefa muito mais simples, uma equação de álgebra ou a conjugação de um verbo pode parecer uma tarefa absurdamente complexa se isolada de outros processos de aprendizado do estudante.
Na etapa do romance, abre-se uma disponibilidade para tarefas muito complexas, como aprender a falar, por exemplo.
Me parece que a essa é uma das grandes dificuldades para os professores. Nossos alunos nunca estão no mesmo ritmo e os três estágios fazem parte de uma mesma turma, quiçá de uma de uma mesma pessoa.
Em aulas criativas, oficinas de cinema, é evidente como esses estágios precisam coabitar. Certos alunos tem extrema dificuldade de sair do romance e outros, como um aluno que tive, na primeira aula de direção me perguntava sobre o codec que ele deveria usar nos exercícios. Para ele talvez o romance estivesse nessas descobertas, o que me colocava uma dificuldade, mas, difícil também seria começar o curso pelo codec e explicar aos estudantes que “lá na frente....”

Educador cineasta


Descobri recentemente um artigo do Whitehead, um filósofo inglês por quem o Deleuze tinha grande admiração e que o influenciou bastante, em que ele discute de maneira muito aberta algumas questões sobre educação.
Nessas questões há dois pontos que me ajudam a pensar o lugar do professor.
A primeira é uma citação cinematográfica que Whitehead traz logo no início do artigo: “Educar é fazer com que as ideias sejam utilizáveis ou entre em “combinações frescas”” Gosto muito dessa ideia de um educar que exige um processo de montagem – combinações frescas, novas. Como se educar nunca tivesse um fim em si, mas no que pode ser conectado, na abertura que é feita em que as ideias possam se conectar com outras coisas.
Me parece que essas conexões podem atuar em dois sentidos. Um primeiro que nos remete a Paulo Freire: quando falamos dos dispositivos móveis em sala de aula; de onde vem o chip? Quem fabrica? Como chega a energia? Quem ganha dinheiro?
Trata-se de uma conexão que forma um contexto, uma rede que constitui as condições de possibilidade para que aquele celular esteja ali.
Uma segunda que é mais esquiza, que não forma contexto, mas que entra em montagem criadora do que não existe. Conhecimento como ato de montagem entre elementos heterogêneos. Os dispositivos móveis passam a fazer arte, conectar manifestantes, estabelecer relações randômicas, etc.
Me parece que o Whitehead abre para essas duas dimensões das combinações em seu texto de 1932. Um conhecimento por montagem que produz contexto e potência.
Para que isso seja mais efetivo a aposta dele é curiosa; poucas ideias, muitas combinações.
O princípio é fortemente democrático. Enquanto o que ele chama de ideia é algo que se passa à criança, a combinação é a ação da criança, é o momento em que ela efetiva o conhecimento. Tal princípio em que a criança é criadora do conhecimento está longe de uma funcionalidade para o conhecimento, uma vez que pertence ao estudante os modos de mobilizar desejos, esperanças e sentimentos nas combinações que ele executa.
O problema da educação é manter o conhecimento vivo e uma das formas fundamentais de Whitehead para isso é o não isolamento dos saberes e a intensa atividade combinatória. Montagem.

"Educar não é entreter"

"Educar não é entreter", escreveu Jacotot no início do século XIX.
Ele ficaria bem impressionado em ver como se difundiu a ideia de que a escola deve ser um lugar legal, divertido e animado para poder interessar os alunos.
- Ainda mais com a concorrência dos dispositivos de comunicação móvel, dizem alguns.
Triste fim para a escola. Precisa concorrer com o espetáculo para fazer o seu papel. Se assim for, o jogo está perdido. Até nesse ponto a lógica do espetáculo consegue organizar o debate, como se a escola devesse ser pautada pelas suas regras. O professor se torna assim um animador, divertido e ágil, com vários truques na manga caso o ibope caia.
O prazer da escola precisa achar um outro tempo, menos imediato que o espetáculo, que mobilize outros afetos. Que possibilite às crianças e jovens atuarem em múltiplas velocidades, em múltiplos ritmos. Isso não significa, obviamente, um isolamento do mundo e das velocidades contemporâneas. Mas também não significa entregar para o professor o papel de animador.
Os ritmos do espetáculo e das telas não têm nada de natural, nos mobilizam 24/7 porque queremos mudar o mundo ou comprar um pouco mais. Nos tiram o sono e nos mantém no lugar quando viajamos, mas não é com essa velocidade que a escola deve concorrer. Se a comunicação contemporânea e o espetáculo são pautados por velocidades excessivas e instantâneas, talvez o que a escola possa é oferecer outras velocidades, enquanto tenta desvenda um pouco do mundo que diz que ela é um tédio.

Decorar

< 3
É uma pena que a ideia de decorar traga algo de negativo quando pensamos em educação; mas é também compreensível, claro! Nossa palavra para memorizar se distanciou demais do afeto que o “by heart” ou o “par coeur” trazem.
Nos últimos anos, o método de Jacotot, educador do século XVIII, trabalhado por Jacques Rancière, tem sido muito comentado e utilizado para se pensar uma educação emancipadora.
A conclusão mais radical do método de Jacotot, doutor em línguas, direito e ciências, é que é possível ensinar o que não sabemos. Para tal método, decorar é fundamental; é a partir de onde o conhecimento se produz. Nas nossas leituras recentes - e se bem me lembro inclusive em Rancière esse decorar parece ter perdido importância. Como se fosse possível guardar apenas a parte mais “nobre” e democrática do pensamento de Jacotot. Talvez seja, mas decorar com coração fica mais fácil.

Filmes-carta no Inventar com a Diferença

No Inventar com a Diferença,
Uma de nossas propostas de exercício era a realização de filmes-carta.
Filmes que pudessem colocar escolas em diálogo e que ao mesmo tempo tivessem a simplicidade de uma carta repleta de afetos.
Muitos dos filmes podem ser vistos aqui:
http://www.inventarcomadiferenca.org/filmes-carta
É um tocante documento em que vemos centenas de crianças e jovens, de todo o país, pensando e inventado seus territórios; desejosos de expressão.

Ainda sobre educação...

Ainda sobre educação...
Recentemente fiz um post sobre educação em que eu falava da importância de o estado participar de inciativas privadas de educação básica. Essa afirmação enseja críticas duras porque ela é entendida como uma privatização do dinheiro público, pois, gostaria de pensar de outra maneira, lembrando os educadores anarquistas como Francisco Ferrer.
Para eles, no início do século XX, o embate era com o estado e com a igreja – Ferrer foi morto pelo estado espanhol em 1909. E, nesse embate, a escola era uma das principais formas de se resistir a esses poderes. O que esses anarquistas combatiam era a forma como a escola funcionava como uma ferramenta de manutenção do poder vigente - de alguma maneira é o que ainda temos em curso no país.
A saída seria uma escola que não tivesse atrelada ao estado mas que fosse pública, ou seja, com dinheiro público, mas livre. Capaz de atender o currículo mínimo, mas podendo atuar na comunidade sem a gestão do estado.
Curiosamente, no Brasil, parece que estamos apenas entre duas opções.
Ou a escola é privada – visando o lucro.
Ou é do estado – centralizada.
Hoje, se um grupo de professores decidir inventar uma escola, criar metodologias, experimentar na educação, ele terá que atender apenas os ricos que podem pagar.
Talvez seja excesso de crença na sociedade civil, mas acho que além de uma escola pública que seja de altíssima qualidade, seria importante criarmos formas de regular a gestão autônoma de escolas comunitárias não estatais. Importante também que pais de crianças pobres possam optar por escolas não estatais e que educadores possam atender comunidades pobres sem serem funcionários do estado.