26 de dez. de 2011

A cidade e a exclusão

Duas manchetes do Globo de hoje (27.12), como se fossem fatos isolados.

1 - Rio, uma cidade em movimento. Projetos e investimentos põem o Rio no caminho para a transformação

2 - Favelas cresceram mais no interior do RJ do que na capital. Aumento foi de 121%; só em Macaé, são 36.233 vivendo em comunidade.

23 de dez. de 2011

A questão da Habitação - Engels 1873


"Na realidade, a burguesia tem apenas um método para resolver à sua maneira a questão da habitação — isto é, resolvê-la de tal forma que a solução produza a questão sempre de novo. Este método chama-se «Haussmann».
Por «Haussmann» entendo não apenas a maneira especificamente bonapartista do Haussmann parisiense de abrir ruas compridas, direitas e largas pelo meio dos apertados bairros operários e de guarnecê-las de ambos os lados com grandes edifícios de luxo, com o que se pretendia não só atingir a finalidade estratégica de dificultar a luta nas barricadas mas também formar um proletariado da construção civil especificamente bonapartista e dependente do governo e transformar a cidade numa pura cidade de luxo. Por «Haussmann» entendo também a prática generalizada de abrir brechas nos bairros operários, especialmente nos de localização central nas nossas grandes cidades, quer essa prática seja seguida por considerações de saúde pública e de embelezamento ou devido à procura de grandes áreas comerciais centralmente localizadas ou por necessidades do trânsito, tais como vias-férreas, ruas, etc. O resultado é em toda a parte o mesmo, por mais diverso que seja o pretexto: as vielas e becos mais escandalosos desaparecem ante grande autoglorificação da burguesia por esse êxito imediato mas... ressuscitam logo de novo em qualquer lugar e frequentemente na vizinhança imediata."



22 de dez. de 2011

Cairo


Grafite na parede de concreto que a junta militar fez em duas ruas que cercam Tahrir para impedir que os manifestantes cheguem nos prédios públicos.


Eleições no Egito - 3 candidatos




Por conta do alto índice de analfabetismo, cada candidato tem um símbolo. Esse símbolo é sorteado. Alguns deixam o símbolo bem pequeno no cartaz, outros se identificam e o exploram, com o é o caso do rifle.

O candidato com o boné tem na testa a marca de um muçulmano praticante, uma espécie de calo causado  por tanto se tocar a testa no chão durante a reza. A marca é muito comum no Egito.

A primeira candidata é a mais intrigante. Uma imagem sem imagem.

21 de dez. de 2011

Tv no Brasil, Tv no Egito

No Egito as restrições aos meios de comunicação sempre foram muito grandes no regime de Mubarak. Hoje, críticos à junta militar são julgados e condenados. 
Ao mesmo tempo, a TV do hotel baratinho tem 500 canais. No domingo a noite 11 filmes originalmente falados em árabe eram transmitidos simultaneamente.
Na nosso caso, a liberdade de expressão na televisão é regida por um mercado monopolista e elitista, em muitos casos pior que o de uma ditadura.

18 de dez. de 2011

Último dia em Tahrir


Estive hoje novamente na Praça Tahrir. Uma despedida. Amanha retono ao Brasil.
A Praça tem as marcas dos embates de ontem. A policia queimou as barracas dos muitos que estavam acampados, o chão da praça est'a cheio de pedras e com muitas pessoas circulando com feridas ou com capacetes de obra.

Ao mesmo tempo, algum engraxam seus sapatos, os vendedores de camiseta que homenageiam a revolução continuam ali e o comercio est'a aberto.
Rua fechada em frente ao palácio do primeiro ministro.












O embate pesado acontece 400 metros mais a frente, onde a policia bloqueou a rua com enormes blocos de concreto para impedir que os manifestantes recuperem a rua do palacio no primeiro ministro.

Impressiona a calma nas proximidades da praça, mas, mais do que isso, impressiona a massa de gente diante dos blocos de concreto.
Essa 'e a segunda barreira de concreto que a policia faz para impedir uma ligação direta entre a praça e os principais prédios do governo.

Como disse um rapaz que me deu uma carona hoje. Quando eles construirem umas cinco barreiras dessa, eles não terão como sair de la e dai derrubaremos a junta militar.

4 de dez. de 2011

5 x Favela - agora por nós mesmos e Avenida Brasília Formosa: da possibilidade de uma imagem crítica


 As favelas são parte da disputa estética e política na cidade. Uma disputa que se faz em torno do descontrole das potências vitais que ali se forjam. Privilegiamos neste artigo os filmes 5 x Favela - agora por nós mesmos (Cacá Diegues – prod., 2010) e Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro, 2009) e com eles investigamos as possibilidades críticas, de escrituras e projetos, que operam no horizonte biopolítico do capitalismo contemporâneo.
 --
Artigo publicado na Revista Devires  (segue)

3 de dez. de 2011

Internet democrática e sem nostalgia

Artigo publicado no jornal O Povo, de Fortaleza.

Internet democrática e sem nostalgia


No atual debate sobre a crítica e a forma como a internet aparece como espaço em que novas mediações são inventadas, gostaria de refletir sobre três pontos relevantes para entender o que acontece com a crítica e a produção de conhecimento com a internet.
A crítica não estava reprimida


Alguns dirão: antes da internet a crítica estava reprimida. Ou seja, havia uma massa de críticos e pensadores escrevendo e pensando sobre arte, cultura e política e, com a internet, encontraram um espaço de publicação.
( segue )



14 de nov. de 2011

Em defesa da obra às obras: Carta/comentário sobre "Em defesa da obra" - Revista Piauí #62, por Bernardo Carvalho.



Em defesa da obra às obras
Carta/comentário sobre o artigo Em defesa da obra publicado na Revista Piauí de novembro de 2011 por Bernardo Carvalho.

Prezado Bernardo,

            Seu artigo na Piauí Em defesa da obra é importante. Trata-se de uma organização de ideias que vemos espalhadas aqui e acolá, mas defendidas com menos brilhantismo que o seu.
            Partindo dos mesmos problemas, gostaria de pensar alguns pontos. Teu artigo parte do princípio que os autores existem, que eles fazem obras, vivem vidas e que essas obras e vidas são hoje disputadas pelas grandes corporações da internet que desejam tudo publicizar e obter lucro, ao mesmo tempo em que encontram justificativas para isso na própria lógica de exposição do universo privado e das celebridades que atravessa a internet.

A mediação produtiva
            Se organizarmos esses problemas entre obra, direitos e internet da maneira como tu fazes, estamos partindo do princípio que a internet – redes sociais, blogs, etc – é apenas um meio. Ou seja, algo se produz no privado: as vidas, as obras e todos os processos subjetivos em que os sujeitos estão engajados e, depois, em um segundo momento, isso é exposto, se transforma em opinião ou se entrega à lógica das celebridades. Pois, essa separação entre o lugar em que a vida se faz e o lugar em que a vida se publiciza atravessa teu artigo e produz desdobramentos inevitavelmente duvidosos.
            Quando nos deparamos com problemas subjetivos, econômicos e políticos em relação à internet, me esforçaria em pensar o mundo que ela possibilita, os processos subjetivos e políticos que ela engendra e não vê-la como um meio para transmissão daquilo que existe.
            As vidas alterdirigidas, como as denomina a Paula Sibília no Show do Eu, não são apenas participantes da lógica das celebridades. Felizmente acho que esse quadro não é tão simples. Diria que essa dimensão pública da vida é freqüentemente atravessada por novas formas de produção de comunidade, de engajamentos, de produção comum, de organização de trabalho, de invenção coletiva, de problematização das centralidades de mediação, de acesso e compartilhamento. Se retirarmos essa dimensão produtiva em que as vidas estão engajadas com as obras, com os outros e com computadores em rede, continuaremos pensando a internet como um meio em que o que acontece ali não é produção e onde as empresas – Google, Facebook - operariam dentro da mesma lógica de centralidade, hierarquia e exploração que os meios de comunicação tradicionais.
            Note, por exemplo, o caso das revoluções árabes, ou dos recentes movimentos políticos em diversos lugares do mundo. Uma coisa seria dizer: Toda a revolta estava dada, toda reflexão estava feita e, pela internet, os grupos se organizaram. Pois, acho que não é apenas isso. A internet não organiza o que está dado na rua, há uma relação muito mais complexa, sem dentro e fora da internet, nesses casos. Com a internet se possibilitou ali um modo de ser na política, também. Não sei se me acompanhas, mas é nesse sentido que eu diria que a questão do público e do privado precisa ser vista. Não apenas tornando público o que estava no privado, mas produzindo-se formas de ser que transitam entre dimensões públicas e privadas da vida, trazendo rearranjos para ambas. Uma certa espetacularização da vida, de maneira alguma, significa que toda a vida está espetacularizada, que ela foi consumida pela exposição. Tendo a achar que o mistério não se desvenda de maneira tão banal. Entretanto, tens razão, estamos diante de novas formas de colocar a vida em público, no século XX essas formas variaram enormemente e em muitos casos foram decisivas para grandes conquistas políticas, os movimentos das feministas e dos gays viveram essa tensão. Talvez uma parte da inquietante presença das vidas nas redes sociais, que você chamou de narcisismo, passe por uma profunda problematização das formas tradicionais de representação, das formas de inscrições dos sujeitos na cidade, interrogando esteticamente lugares de fala e possibilidades sensíveis. Definitivamente, não eliminaria essas possibilidades para pensar o que acontece hoje nessa tensão entre o público e o privado e, conseqüentemente, em relação à produção e a fruição estética.

A nostalgia das centralidades e das hierarquias
            Outra dicotomia com a qual guardo significativa distância é expressa na sua frase: “Hoje temos acesso a tudo, mas sabemos cada vez menos distinguir uma coisa da outra”. Nosso problema seria então ter perdido as formas conhecidas de mediação, de hierarquização. Digo perdido porque seria absurdo acharmos que na internet não se inventa formas de julgar o que é bom, o que deve ser lido e visto e o que não deve, o que não significa que essa mediação é melhor que outras. De um modo geral, um grande esforço das grandes corporações da mídia é manter na internet a mesma partilha e a mesma mediação de outros meios. Por isso, as Tvs disponibilizam seus programas no Youtube, investem em sites e proíbem que em uma novela para adolescentes se diga Facebook. Mas o que é perturbador -  para eles - é que as redes sociais tem pautado os mediadores tradicionais. [1]
            Uma das separações/hierarquizações que propões é a separação escola/internet e esta, meu caro, é falaciosa. Há uma inevitável complementaridade, tanto para alunos como para professores. Como professor, não imaginas como é prazeroso citar o Bill Viola, a Marcela Levi ou Leminski em uma aula na Baixada Fluminense e, na semana seguinte, descobrir que as imagens e sons foram baixados, vistos e discutidos pelos alunos.  Da mesma maneira, vejo meus filhos utilizando a internet para as maiores bobagens do mundo, ao mesmo tempo em que trocam partituras, compartilham reflexões, escrevem sobre futebol. Certamente não são conteúdos dos mais relevantes, mas definitivamente estão longe de ter com a internet uma relação passiva em que ela apenas entrega o que já conhecem. Se colocas que a escola é transmissão, regra e trabalho, enquanto que a internet é prazer, futilidade e repetição, perdemos o melhor dos dois mundos, uma vez que a educação e a cultura não estão nem em um nem em outro, mas em redes que estamos sempre nos esforçando para formarmos para nós, nossos filhos ou alunos. Redes que passam justamente pelas potências do outro, da diferença, de o que já inventamos em tantas áreas do saber, e essas redes, decisivas para os processos subjetivos e para uma comunidade mais rica, estão na escola, na rua ou na internet. Tendo ainda a acreditar que a democratização da internet não passa então apenas por um pluralismo discursivo: cada um em um canto falando e se expressando livremente.  A rede aqui é constitutiva de uma força nas maneiras de ser e sentir que formam comunidades e práticas que não são muito rapidamente transformadas em discursos. Separar a escola da internet, como se houvesse uma oposição, parece, antes, configurar uma nostalgia de uma centralidade ou de uma hierarquia pré-constituída, independente de qualquer práxis. A escola se torna assim uma metáfora para uma nostálgica de uma era em que os mediadores e artistas tinham seus lugares garantidos pelo estado, pelo mercado ou, na pior das hipóteses, pela mídia que atendia ao estado e ao mercado.
            A escola como metáfora é uma negação da literatura, justamente. Como nos apontou Rancière, a literatura se inventa como uma revolução poética em que se quebra a separação entre aqueles que faziam parte da história e os outros  - as pessoas comuns – que não tinham a vida reconhecida como dignas de serem contadas. [2] A escola como fato não traz em si nenhuma garantia, pelo contrário, ela é freqüentemente a forma de não se fazer política, de garantir que aqueles que não devem fazer parte da vida pública do país continuem não fazendo. As formas de modelização dos processos subjetivos são as mais diversas, na escola, na universidade, no consumo, na mídia e na auto-exposição, em todos esses lugares, os embates são cotidianos. Vou novamente lembrar do Rancière que, graças às tuas referencias, nos acompanha aqui:  A política se faz quando aqueles que são expulsos pela porta entram pela janela. “Isso é a política: encontrar uma maneira de fazer o que não era esperado que fizéssemos, estar lá onde nós não deveríamos estar. Sem isso, não há política.” [3]
            A defesa da exceção, como bem sabes, não pode se dar no sentido de se negar a possibilidade de um sujeito qualquer se proclamar artista. Essa é uma cara invenção do século XX, lá do seu início, e da qual ainda não tiramos todas as conseqüências. Pelo contrário, recentemente o presidente da França, Nicolas Sarkozy, declarou a necessidade de “redirecionar as ajudas em direção à excelência artística”, buscando formas mais claras de avaliar a diferença entre o bom e o mau artista, em uma evidente nostalgia da grande arte e dos critérios estáveis em que as formas de fazer estavam separadas das formas de ser. [4] Em nome da ordem e de critérios que hierarquizem quem deve ou não ser lido, a melhor opção não é optar pela abolição da democracia que, como bem nos explica, ainda, o Rancière, é necessariamente escandalosa, pois o sujeito sem nenhum título, que não é nem o mais rico, nem o mais inteligente, nem o mais premiado, ainda assim, continua fazendo diferença na comunidade.

Capitalismo de excessos
            Mas, voltemos às megacorporações, estas são efetivamente uma questão importante para pensarmos as formas de produção de valor hoje. Argumentas que elas são as principais interessadas na fragilização das leis dos direitos autorais e para isso marcas uma oposição do capitalismo do século XIX, que formula a noção de direitos autorais, e o capitalismo contemporâneo. A bem da verdade, antes de tudo o capitalismo. Pois, eu não faria uma oposição tão dura entre dois mundos: aquele em que os direitos autorais eram “bem vindos” e esse mundo do capitalismo informatizado. Vale lembrar um artigo brilhante da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em que ela discute a propriedade intelectual indígena e diz o seguinte:  “Na verdade, desde seu surgimento na Grã-Bretanha no início do século XVIII, os direitos autorais - os primeiros direitos de propriedade intelectual surgidos no ocidente - não foram instituídos para proteger os autores, e sim o monopólio de editores londrinos, ameaçados por edições piratas feitas por escoceses”[5]. Também esses - os editores ingleses - não eram produtores. Seria um equívoco cairmos na oposição que coloca interesses corporativos do capitalismo contemporâneo de um lado e autores de outro. As disputas corporativas não são nada recentes e se os autores são a parte frágil, como colocas, isso definitivamente não começou hoje.
O caso dos roteiristas brasileiros, que citas, é efetivamente exemplar. Eles exigem direitos autorais não para as cópias de um roteiro eventualmente vendido na internet ou nas livrarias, mas um direito que deve ser pago em cada sessão de cinema. Ora, vai aí uma compreensão muito equivocada do que é o cinema. Um roteiro em um filme não existe sem atores, montagem, fotografia, música, som, direção de arte, etc. A demanda dos roteiristas é descabida por que se tal lógica for levada a sério a prática cinematográfica se inviabilizaria, uma vez que todos esses profissionais teriam, também, que receber direitos autorais, todos eles trabalham com suas competências técnicas e artísticas e, na maioria dos casos, são pagos por isso.
            Ficamos com a questão, como defender a obra sem que se faça uma defesa do autor no sentido do proprietário alienado do mundo, sem deveres e apenas com direitos, como coloca o Godard. Como defender a exceção da obra sem trazer junto a exceção da fruição? O autor não pode defender o seu direito de ganho, com sua obra que vem sendo compartilhada indiscriminadamente, usando como justificativa os poderes mais danosos; a indústria médica que segura as patentes mesmo depois de ter efetivado seus ganhos ou o próprio Google que mantém seus códigos fechados.
            O risco, ainda, é usarmos a lógica das grandes corporações industriais para pensar Google ou Facebook, isso me parece um equívoco. O embate pela democracia e pela diferença que fazemos com essas corporações é muito diferente daqueles que tantos continuam fazendo com a Ford ou com O Globo. Isso não quer dizer que estamos em um mundo melhor ou que o capitalismo pós-industrial é menos nocivo que o capitalismo do século XIX - obviamente ainda muito forte. Mas, certamente não são as mesmas armas. Assim, diria que outra distinção carece de ênfase em teu artigo. A internet não é o Google e o Facebook. Se os filmes não são disponibilizados pelo Youtube, eles são disponibilizados por outras redes. Se os livros não são digitalizados pelo Google, eles são trocados por estudantes que acham importante não se submeterem a todas as regras das editoras. O Rancière, por exemplo, você deve ter lido em francês. Como ter acesso a esses textos no Brasil? Como defender a lógica que faz com que livros esgotados de autores mortos não possam ser reeditados por que a família não autoriza ou por que a editora que detém os direitos não tem interesse em reeditar? O Rancière mesmo protagonizou uma situação bastante ilustrativa da situação. Uma revista acadêmica brasileira, distribuída gratuitamente, pediu e obteve sua autorização para a tradução e publicação de um artigo. Quando cientes do caso, os editores franceses do livro onde esse artigo aparece, avisaram a universidade brasileira que o artigo não poderia ser publicado, depois de muito trabalho acabaram liberando apenas para a versão impressa, mas não para a internet. Nada mais anacrônico. O que fazer nesse caso? Respeitamos o autor, os editores da revista acadêmica e o público brasileiro e colocamos o artigo na internet ou obedecemos Berna e a OMC e mantemos o artigo restrito aos poucos leitores que terão acesso à revista em papel?
            Mesmo se a internet não é o Facebook, ele está aí com toda sua força, vendendo nossas formas de vida, vendendo nossa produção subjetiva – muito mais que nossa privacidade! Essa é a lógica do capitalismo hoje. Mas, se o que o capitalismo hoje tem para vender são nossas formas de inventar a vida, seria excessivamente redutor acreditarmos que tudo que inventamos é capitalizável, que nada escapa e que tudo se transforma em mercadoria. Se essas megacorporações fazem parte das formas contemporâneas de modular as forças vitais, eu tenderia a achar que há modos de engajamento e criação que se forjam com essas redes e que em muito as transcendem. O que estamos constantemente vendo é o contrário de sua apocalíptica conclusão. Somos estimulados – é verdade – à produção, o mundo parece por vezes hiperacessível, com poucas barreiras entre nós e os mais diversos poderes, o que é deveras cansativo, mas essa vida que se dá com as redes não é o privado nem algo recôndito até então trancado a sete chaves, mas formas de estar no mundo que podem ser mais democráticas, estéticas e políticas – sem garantias, é verdade.

A obra é uma fase, não é o fim

            As obras não estão em risco. O cinema é um exemplo disso, seja nos filmes fortemente interessados no outro, como os dois que acompanham a edição para assinantes desse mês da Piauí – Avenida Brasília Teimosa e O Céu sobre os ombros -, seja em obras onde o autor efetivamente está no centro, como no filme da Flavia Castro, Diário de uma busca, em cartaz nesse momento. Assim meu caro, compartilho contigo a preocupação com as obras, com o que elas trazem de desordem às formas como as estéticas e as possibilidades sensíveis dos sujeitos e das comunidades estão organizadas. É com essa perspectiva que a obra ou o autor não são o fim, mas parte de processos que os ultrapassam, parte da própria transformação da comunidade. Nosso problema é o que constrange a existência das obras e da presença que elas podem ter na comunidade, nesse sentido acho que nosso problema é menos o Google que a falta de acesso universal à banda larga, nosso problema é menos o Facebook que a política restritiva dos direitos autorias baseadas no acordo de Berna, nosso problema é menos a especularização do universo privado do que as estratégias que tentam estancar e empobrecer os processos de subjetivação coletiva; processos esses que se fazem com a escola, com a internet e com obras que já se desdobram em outras obras.

Meu abraço
Cezar Migliorin   






[1] Sobre essa questão vale ver o artigo de Ivana Bentes: Adeus aos Críticos? Jornalismo cultural e crise dos mediadores

www.trezentos.blog.br/?p=6468
[2] Rancière : Et Tant pis pour les gens fatigues. p. 578.
[3] Rancière :  Moments Politique, p. 215.
[4] Esse caso é narrado por Maurízio Lazzarato em Expérimentations Politiques, p. 157
[5] Manuela Carneiro da Cunha, Cultura com aspas p. 368

13 de nov. de 2011

Primeira página do G1 / Rocinha


Manifestação dos moradores da Rocinha alguma horas antes da entrada da polícia.

Página de abertura do site da Globo. 
Sai a justiça social entra o helicóptero

28 de out. de 2011

Seja você também um outdoor do Itaú.


Prefeitura do Rio retoma o projeto das bicicletas públicas.
Agora mais ousado, são 600 bicicletas na zona sul e no centro.

Infelizmente os mesmos problemas. As bicicletas não são feitas para isso. São bicicletas normais com pequenas adaptações, isso facilita o roubo e o rápido desgaste.

Além disso, elas são laranjas com propaganda do Itaú. Ou seja: "Vá pedalar e se torne um outdoor do Itaú." facetas do biopoder...
Absolutamente constrangedor.
 
(foto postada pelo Adalberto Muller no Facebook)

19 de set. de 2011

Luta de Classes? Conversando com Bruno Cava, Guéron e Nat Coutinho.


 Depois que escrevi um breve texto panfletário e caótico - Cinema, democracia e uma porrada de coisas - , o Guéron fez uma interessante crítica que se desdobrou na conversa abaixo.


Tudo no Facebook.



Rodrigo Guéron: Bom texto. Só acho simplista aquela parte que fala "entre a PUC e as favelas" como se fossem uma mesma "multidão". A diferença existe, é enorme, e a própria disputa que se trava no Minc ( entre tantas outras) passa por aí.

Cezar Migliorin: Cê acha é Gueron? Mas nessa produção da multidão não há algo que a diferença de classes não dá conta?
Falo também um pouco da minha experiência entre PUC e Nova Iguaçu em que certas marcas desse personagem conceitual "jovem" são comuns, potencializadas ou não...

Rodrigo Guéron  Basta ver o mapa eleitoral das últimas eleições, para ver que não dá para negar simplesmente a diferença de classe. Embora este mapa mesmo nos diga que ela não é marxista a maneira "clássica" ou dogmática. O Fabio Malini noutro dia publicou aqui uma frase do Negri dizendo que a biopolítica é um desdobramento, um aprofundamento da luta de classes (algo assim). O que quero dizer é que se não dá mais para pensar em termos de proletariado x burguesia (ou não predominantemente),e que de fato não há uma classe que seja 'consciência da história", por outro lado as diferenças, sobretudo biopolíticas, estão aí, escancaradas, e o fato dos meninos da PUC e do Morro do Alemão usarem ambos rede sociais não diminui esta diferença. Pode até às vezes abrir algumas disputas que passam pela rede. Não dá para separar política de disputa, de tensão poder x potência e etc. Os caras que foram hoje a marcha da corrupção, em sua maioria, se expressam ("creem") como aquela reportagem do JN ontem que criminaliza o pessoal do Alemão. A propósito, algumas fontes estão dizendo que foram os milicos que atiraram para cima.
Eu diria que a diferença de classe permanece de maneira importante entre outras diferenças e disputas biopolíticas: pobre x rico; favelado x asfalto; legais x ilegais; nacionais x estrangeiros...


Cezar Migliorin Claro, claro, de forma alguma retirar a diferença de classe como questão! Não há política que possa deixar isso de lado. Mas, me pergunto, quanto elas passam pelos indivíduos.. Uma questão.
Ou, na Europa, como podemos traçar uma linha que una os espanhóis classe média e os ingleses de descendentes ex-colônias?
Ou, a marcha da liberdade e jirau.
Ser do Alemão não garante nada se pensarmos em novos sujeitos políticos. Ou vamos pras práticas ou demarcamos identidades, agora, nas práticas, há ricos e pobres, claro.


Natália Maia Coutinho Ufa, que bom que alguém antes de mim lembrou da velha, clássica e quase esquecida "diferenças de classes" nos seus posts, Cezar, confesso que já tava me intimidando em aludir mais uma vez a esse porém aparentemente meio demodê nos discursos contemporâneos ;) 


 Rodrigo Guéron Não existe "identidade", existe "tornar-se". Jirau me parece muito mais importante e transformador que a marcha da liberdade. Pois a liberdade resiste mesmo é no pessoal do alemão denunciando o exército ontem. Tá feia a coisa lá. O discurso do comandante foi um aval para os soldados fazerem o que bem entendem, e tem forte apoio social do "asfalto": As UPPs não como "pacificação' mas como limpeza. Não importa que o soldado seja pobre também. É disputa de classe. Inclusive a reportagem da Globo no JN ontem foi um ato de classe e, ao mesmo tempo, biopolítico. Ou melhor, a violência de classe como violência biopolítica ( racista etc e tal..). Mas o racismo por exemplo não é derivado, é central ( porque o socialismo não acaba com racismo). A diferença biopolítica é, aliás, uma das razões do desinteresse dos pobres pela marcha da liberdade. Que é simpática, mas não tem muita força e pode ser confundida, semioticamente, com qualquer ato "anti currupção" versão versão UDN.

Cezar Migliorin Caros,

Nat, Gueron, uma ajuda.
Se pensarmos algumas ações do gov. Lula como Bolsa Família e Pontos de Cultura, por exemplo, são ações em que a luta de classes é o que pauta?
Quando defendemos a renda mínima ou uma reforma radical dos direitos autorais, vocês acham que são políticas baseadas na luta de classe?

Na minha frágil formação política, acabo realmente não me pautando pela luta de classes. Entretanto Nat, diferentemente do que dizes, o pobre é uma questão central para mim.

Não organizar a política a partir da luta de classes não significa dizer que não há classes ou que não há pobre.

Natália Maia Coutinho Cezar, queridão, eu não disse que você não se preocupa com os pobres. Jamais. Eu disse só que as vezes sinto falta dessa abordagem mais explicita nos seus textos, mas que já não comentava mais isso. Meu post foi num tom mais ironico, de brincadeira até auto-critica, "lá vem aquela chata falando mais uma vez do obvio que todo mundo sabe" - inclusive você, claro! Jamais ousaria dizer que você não se preocupa com os pobres. No caso desse texto especifico, depois de le-lo, tive o mesmo "incomodo" do Gueron de ver os jovens da Puc colocados no mesmo plano dos favelados. De fato, não acho que esses sujeitos políticos possam ser vistos da mesma forma e que suas necessidades inventivas, criativas, etc, possam ser comparados porque para mim eles partem, literalmente, de necessidades muito diferentes. Admito que acho mesmo meio complicado pensar em organização politica sem pensar em classes, mas isso não quer dizer que não entendo que para você possa ser, e que isso também já esteja de alguma forma implícito no seu pensamento. Ufa, espero ter me esclarecido! :)

Rodrigo Guéron Sim, caro Cezar. A questão do Minc é claramente um tipo de luta de classes, digamos "pós industrial". Não é bem proletários contra o capital, mas são os pobres contra os "donos da cultura" , a "cultura proprietária" e tal: modos de ser do capital hoje. O ataque aos pontos de cultura e a noção de que o Minc é uma questão da "classe artística" (como AH não para de deixar transparecer) é um antagonismo social claro. Há ainda uma disputa por mais valia na maneira com ela hoje se dá: de um lado os "donos do conhecimento" e dos "saberes", a captura afetiva, cognitiva e tal no lugar da "antiga" ( que ainda existe, não são etapas tão claras) mais valia quantitativa e de tempo, e as linhas de fuga a estas de outro. Produzir outros modos de vida, biopolítica contra o biopoder, produzir para além dos limites anti-produtivos do Capital e do estado. Há um "descontrole" saudável nos rumos produtivos dos P. de Cultura que assusta os aparelhos do Estado/Capital e que bagunça a relação tradicional entre eles. Tudo isso são antagonismos sociais claros para mim. O ataque ao Bolsa família, o discurso que é coisa de vagabundo, o preconceito contra os nordestinos depois da vitória da Dilma, tudo isso para mim é um desdobramento da luta de classes como luta biopolítica. Tem a ver com o que o Deleuze chama em certo momento de "neoarcaismos" do capitalismo, ou seja, a maneira como este tenta reverter os fluxos descodificadores do desejo dos quais ele necessita: disseminar anti-produção no movimento mesmo que a produção capitalista avança.

Cezar Migliorin Caros,
obrigado, estou aqui pensando. Nada como interlocutores dessa qualidade.
Bem, dúvidas: o fato de haver essa elite que ataca o bolsa-família ou que defende a cultura proprietária no MinC faz com que toda luta contra isso seja uma luta de classe? Se a resposta é sim, beleza. Mas ela não é feita apenas pelos pobres, mas por esses sujeitos políticos que tem suas produções vitais moduladas pelo capital.

A produção de valor não se dá por classe, talvez seja essa também uma dificuldade, mas por trabalhos muito individualizados que formam esse enorme precariado, e que não chegam a formar uma classe.
A luta contra a cultura proprietária, não é dos pobres, apenas, apesar de eles, como sempre, serem os mais prejudicados.

Olha, não vou excluir o aluno da Puc e sua potência política. Talvez seja essa transversalidade que eu acho importante afirmar uma vez que o que ele produz, subjetivamente, não será plenamente apropriado pelo capital - eis a dimensão biopolítica. O excesso dele também é social.
A tranversalidade que me distancia da luta de classe é porque estou tentando conectar lutas biopolíticas que conectam a comunidade que produz aqui no Brasil com a que luta na Espanha, percebe?
Há uma unidade na ideia de classe que me dificulta enormente quando penso na política hoje e nos eventos políticos no dito capitalismo cognitivo.
Entretanto, Jirau é problema de Classe!
Mais, falei em democracia no texto, posto que há povo! :)

Bruno Cava Acho que o pobre que não se mexe, que não resiste, não faz parte de classe alguma, mas se pararmos pra pensar num sentido mais desprendido, mais biopolítico, não há pobre que não se mexa, ele já está todos os dias na luta da lei da sobrevivência, já está todo dia constituindo um espaço criativo pra dobrar a adversidade e se apropriar do tempo, então aí tem sim um corte de classe que, menos do que sociológico, está na potência de vida na pobreza, na sua força que joga pra além.

Rodrigo Guéron Cezar, se quiser talvez seja o caso de não usar a expressão "luta de classes', mas coloco ela com origem de um fenômeno que tem um antagonismo social claro. É este antagonismos, esta desta disputa e desta resistência que é socialmente produtiva e leva a produção para além dos limites do Capital e do Estado que eu falo, para que não se perca isso de vista num tipo de pós-modernismo rasteiro.Não é mais, de fato, a classe como "unidade", o que acabou virando um imposição de cima para baixo às subjetividades, mas é sim resistência ao poder, ao que se opõe a potência inventiva da vida e por isso é, insisto, antagonismo social e liberação de novas potências em oposição ao poder no coração do socius.

Bruno Cava:  ‎Guéron e Cezar, pra mim está muito claro que um movimento por download, xérox, remix e remédio só pode ser luta de classe.

Cezar Migliorin:  ‎Guéron, Bruno e Natália

Ps. Me desculpem o texto longo, mas a pergunta sobre as classes esteve presente nos últimos dias. Abraços

Acho que essas posições precisam ser matizadas, as minhas pelo menos.
Não se trata, me parece, de trabalhar com a noção de classe ou não, mas de perceber que a noção de classe não dá conta da política contemporânea ao mesmo tempo que muitas das operações de opressão e exploração são operações de classe. Acho que uma dificuldade é operar as duas.
Bem, o limite da questão de classe passa por uma pequena colocação que fiz em um post acima em que eu falava da ideia de unidade presente na noção. Que consequência isso traz? Me parece que o mundo seria dividido em diversas partes e cada agrupamento ou indivíduo teria que fazer parte de uma classe. Essas classes poderiam ter muitas subdivisões ou apenas duas – ricos e pobres, exploradores e explorados, etc.
Tal construção enseja alguns problemas. O primeiro é que ele pode comprometer a idéia de que há alguma transformação efetiva quando um indivíduo ou grupo muda de classe, ou seja, as classes seria lugares metricamente organizados, esquadrinhamentos fixos. Se se está em uma não se está em outra. Ou seja, toda operação política seria feita a partir de um lugar dado e esse princípio organizaria a ação política. O que me parece problemático ai é que quando penso como classe, há um lugar que antecede a ação, uma estabilidade que antecede a prática, uma forma que não está em questão, que não é transformável.
Mas, ai, poderíamos argumentar que a classe implica um devir e uma modulação. Certo, concordo, não é possível imaginar tanta rigidez, partamos de grupamentos inteligentes. Mas, mesmo com esse devir, como se dá a relação com o fora? Com o que não é a classe? Que fronteiras são essas? Não teriam hoje os ajuntamentos sociais, um nível de complexidade, fluidez, redes e devires que, muito mais do que divisões métricas, seriam sobreposições, justaposições não necessariamente ligadas e conectadas a outros ajuntamentos? Entende? É difícil pensar em classe sem imaginar um mapa com vários bloquinhos cada um de uma cor, como se estivéssemos na frente de um velho mapa-mundi político em que cada país tem uma cor e que fossem todos diferentes entre si. Acho que esta configuração que se esforça em marcar fronteiras e diferenças mensuráveis entre as partes para formar uma unidade-mundo não dá conta do tipo de operação que existe hoje na política, não dá conta da forma como a vida e o trabalho estão em disputa.
Mas poderíamos argumentar então a classe não seria nem individual – um sujeito não pertence a uma classe - nem de grupo - , ela seria forma-resistência com conexões pontuais, mas acentradas que, em determinado momento, em certas práticas atualizam uma centralidade, como no mundo árabe, como na Espanha ou no Chile. Mas, se assim for, perdemos a noção de classe, ou, ela serve pouco, mesmo que eu concorde com o Negri quando ele diz que no capitalismo pós-fordista o proletariado se generalizou, todos trabalham e produzem de acordo com o capital.

Resumindo, se estamos de acordo que há uma sobreposição à disciplina; a forma controle e a modulação no lugar do molde, eu diria que a ideia de luta de classe é muito pouco. Mas claro, são camadas, como disse anteriormente. É difícil pensar o que se passa em Jirau, nas confecções da Zara com Bolivianos em São Paulo, nos operários que fazem a obra do Maracanã ou no metrô que vai em direção à Pavuna na hora do rush sem nos pautarmos pela relação explorador/explorado, mas, mais do que isso, como classe mesmo.
Finalmente, um último ponto, organizar hoje as lutas políticas pela noção de luta de classes, exclusivamente – incluído ai todas as transformações e lutas em torno da dita cultura digital – nos levaria à única coisa a se fazer efetivamente, a revolução. Ai, realmente me sinto muito distante. Acho linda a ideia, mas não trabalho com ela.

As tantas rosas que os poderosos matem nunca conseguirão deter a primavera. -Che

Beijos
c.


Rodrigo Guéron Marx disse em "A Estrutura de Classes na Alemanha" que "o grande problema do século XIX -- a abolição do proletariado -- finalmente é trazido a baila" ( Na Alemanha, com certo 'atraso'...). O que escapa à noção de "classe operária" é na maioria da vezes resultado da própria luta dos operários que , em geral, desejavam ir muito mais longe do que os programas de esquerda. E ir muito mais longe não foi o "socialismo", embora, como perspectiva utópica de destruição do modo de produção capitalista, tenha sido a grande força das lutas. Mas o socialismo acabou sendo uma espécie de triunfo do trabalho morto, da separação trabalho/subjetividade típica das fábricas: ou seja, não destruiu o modo de produção capitalista exatamente porque não libertou o trabalho, às vezes até aprofundou a sujeição do operário que acontece na separação trabalho/vida que lhe é típica. Mesmo que, justiça seja feita, a ideia de socialismo tenha sido fundamental para imensa ascensão social dos trabalhadores que permitiu eles desejarem ir além deste lugar em que eles eram (são) sujeitados através do trabalho, muitas vezes se liberando não pelo socialismo, mas pelo "medo do socialismo", ou pelo "socialismo por dentro do capitalismo" ( o que não é nenhuma contradição): o Estado de bem estar social que liberou uma série de possibilidades produtivas do comum, e salvou o próprio capitalismo e, de quebra ( o que não é pouco) apontou para a derrota do fascismo e, décadas depois, da própria URSS. Significa dizer que, mesmo com os bons salários, os operários, em certo momento do fordismo, usaram a renda e o EBS para deixar de ser operários, ou pelo menos para que seus filhos deixassem de ser. Gerações inteiras de jovens que entraram para a universidade no pós-guerra, por exemplo, como os primeiros de suas famílias ( o que aliás desconstrói, pelo menos parcialmente, a conversa que 68 foi um movimento elitista). Mas o importante, só para me ater num aspecto de sua mensagem( haveria outros para comentar, como suas reflexões sobre "revolução"), é que em certo momento o que houve de mais revolucionário nos operários foi o desejo de deixar de ser operário (que na pior das hipóteses mudou bastante o caráter do trabalho dentro das fábricas do "capitalismo avançado"). Neste sentido a insistência na ideia de classe operária acabou virando coisa de aparelhos de poder absolutamente absorvidos pela dinâmica capitalista. Sindicatos e partidos de "esquerda" passaram a ser instrumentos de controle da subjetividade dos pobres, que deveriam ser apenas "empregados assalariados", em outros termos: controle da produção desejante (expressão meio redundante...). Aliás, é preciso dizer, a noção de luta de classes, e a interpretação da história através dela é uma invenção de historiadores burqueses do final do sec. XIX, não de Marx. Eles que começaram a falar do triunfo da burguesia como classe, e por isso, quando começou-se a falar do triunfo do proletariado como classe foi uma ameaça terrível. Mas capturada no século XX, como vimos..

cinema e tecnologia


O observador acompanha um seminário sobre tecnologia 4K, um tipo de imagem digital de altíssima definição que garante ao cinema sem a película uma imagem com até mais informação que a própria película.
Os exemplos de aplicação se sucedem. Um dirigível filma fronteiras e o cinema se reaproxima da guerra. Um cineasta filma tartarugas em 3d e sentimos saudades de Nanook. Um cientista acopla a câmera a um microscópio e é do silêncio de Marey que sentimos falta.
Quando a tecnologia é separada de seu tempo – da política – ela apenas se torna risível ou fascista. 

7 de set. de 2011

Cinema, democracia e uma porrada de coisas

            Em recente debate com engajados servidores do MinC estive diante do óbvio. Não esperemos nada do MinC, da Ancine, do poder público.
            Se o cinema pós-industrial existe, e é o que mais nos interessa hoje, não é por conta do estado. Mas, como sabemos, a democracia se declara! Isso, significa que devemos pressionar, educar, exigir, impor.
            O estado é nosso, mas esses poderes não cessarão de dizer que somos a periferia, que a cultura sem espetáculo não é cultura, que é preciso movimentar a indústria, que as vidas são vazias e que se não houver sustentabilidade não serve. Eles dizem isso mesmo!
            A vida virou um problema de gestão, o que significa que a falência é algo possível.
            Quando o MinC diz que quer levar cultura para os pobres ele nega a democracia duas vezes. Primeiro diz que o pobre não tem cultura, retirando dele o que ele é. Segundo, o MinC se dá o direito de dizer o que é cultura e o que não é. Formas eficazes de eliminar o outro.
            O MinC pode mudar, mas qual estado está disposto ao descontrole da cultura? Qual poder está disposto ao poder de qualquer um?
            O que nos interessa no cinema hoje existe sem pagar pedágio para ninguém, existe pela força de jovens hiperativos que não se dispõe ao aburguesamento clássico que o capitalismo industrial prometia.
            Avise aos jovens, essa multidão entre a PUC e as favelas, entre Tahir e Puerta del Sol, que eles terão que trabalhar longe das redes sociais, com horários que separam vida e trabalho. Rirão em nossa cara ou farão o país parar.
            Uma juventude que se constitui trabalhando e se inventando em redes sociais e coletivos de criação não está disponível a largar esse mundo de hiperatividade produtiva para ser força de trabalho analógica em um mundo nostálgico da ordem e da disciplina das fábricas – tanto à direita quanto à esquerda.
            Quando a produção não se desdobra em ganhos sociais, há algo errado. É isso que leva milhões às ruas, seja para parar Madrid, seja derrubar reis.
            Avise aos jovens que as músicas, filmes e saberes são proprietários e que só alguns podem ter acesso. Virarão as costas como se estivessem diante homens de terno e gravata.
            A crise que Europa enfrenta é a mesma que inventa o cinema que temos hoje como um projeto político. Crise do governo central, do cultura proprietária, dos grandes orçamentos elitizados, da financeirização da vida, da elitização do saber, da separação entre produtores e consumidores, de restrição ao acesso.
            Como adaptar o mundo a essa nova cultura? Pergunta errada! Quando na Inglaterra os manifestantes fazem download material é porque a mudança já aconteceu, não há adaptação possível. A imaterialidade da produção contemporânea, sua desmesura, ecoa na materialidade, na carne e no sangue das vidas.
            Avise aos jovens que a internet será controlado e que a banda larga será restrita. Esse é o momento em que o Brasil parece estar. Momento de escolher entre a democracia, o descontrole das vidas produtivas, a invenção que pode se desdobrar em riqueza, ou Belo Monte, eliminação da diferença, homogeneização, aburguesamento revoltado e policial, banda larga para poucos.
            Estamos diante de novos sujeitos políticos e não apenas de novos consumidores, no mundo e no Brasil. Aqui, quando os pobres consomem são rapidamente chamados de classe C. Ou seja, são enquadrados em uma partilha da sociedade que lhes antecede, como se não trouxessem nada de novo.
            Se a digressão é excessiva é porque o cinema hoje tem essa responsabilidade com o país e com o mundo. Ele é inseparável da invenção que se faz hoje. Essa responsabilidade não é temática ou discursiva, ela é apenas democrática. Que o cinema seja em si uma forma de vida dissensual, distante das forças que insistem em organizar o mundo de cima para baixo e que a eliminam na hora de escolher quem estará na sala – de estar ou de cinema.
            Não colegas, não precisamos do MinC para levar cultura para ninguém, mas é com o governo Dilma, também, que podemos antecipar a democracia que a Europa se esforça em negar – as consequências são evidentes, nossa democracia pode ser outra.