30 de set. de 2007

Arte, documentário e efeito de real

Durante debate em Belo Horizonte sobre possíveis aproximações e contágios entre artes plásticas e documentário repeti o que tinha escrito recentemente aqui no Blog que "A maior diferença entre o documentário e as artes plásticas é que no documentário a economia é de subsistência e comercial e nas artes plásticas é especulativa."

A partir disso o André Brasil fez um comentário que me parece muito pertinente:
A especulação demanda vínculos com o real, alguma ancoragem e, frequentemente, é o documentário que supri essa demanda.
Felizmente, o documentário como estética não é garantia de nada.

Muitas vezes não passa de um efeito de real, como o que Ilana Feldman e eu comentamos no artigo sobre Retrato Celular.

27 de set. de 2007

André Gorz

André Gorz morreu esta semana.
Eu o citei diversas vezes nos últimos tempos por conta de seu livro "l'immateriel" que muito me ensinou sobre a possibilidade de uma Renda Mínima Universal (ver post) e sobre o que Gorz entende ser uma crise do capitalismo que é uma economia imaterial onde os bens tendem para a gratuidade - menciono isso no artigo sobre pirataria e o Tropa de Elite.
Mas hoje passei por uma citação de Gorz muito interessante e que me obriga a repensar os frequentes usos que faço da noção de um "capitalismo cognitivo".
Diz ele: "Eu tento mostrar que o capitalismo cognitivo não é o capitalismo, é a crise do capitalismo. Não há produção de valor no cognitivo. É absurdo dizer que a produção de valor é a produção de informação. A informação não pode ter valor, posto que ela não é mercadoria, e dizer que ela é um valor e que existe capitalismo cognitivo, é negar o potencial de subversão, de gratuidade que existe na economia do imaterial".
Essa afirmação traz toda uma essencial preocupação com a linguagem. Porque dar o nome de capitalismo a algo tão subversivo se é o capitalismo é o inimigo?

Gorz se suicidou na última segunda-feira, aos 84 anos, junto com sua mulher, muito doente há 4 anos.
Morreram lado a lado em casa.
Traduzo abaixo o primeiro parágrafo do romance Lettre à D. - Histoire d'un amour - que Gorz escreveu em 2006, sua última publicação:
"Você vai fazer oitenta e dois anos. Você encolheu seis centímetros, você não pesa mais que quarenta e cinco quilos e você continua bela, graciosa e desejável. Fazem cinquenta e oito anos que nós vivemos juntos e eu te amo mais que nunca. Eu tenho novamente um buraco no meu peito, um vazio devorando que somente preenche o calor do seu corpo contra o meu."

O último do mesmo livro:
"Nós gostaríamos de não ter que sobreviver à morte do outro. Nós nos dissemos frequentemente que se, pelo impossível, nós tivéssemos uma segunda vida, nós gostaríamos de passá-la juntos."
«J'essaye de montrer que le prétendu capitalisme cognitif n'est pas du capitalisme, c'est la crise du capitalisme. Qu'il n'y a pas de production de valeur dans le cognitif. Il est absurde de dire que la production de valeur, c'est la production d'information. L'information ne peut pas avoir de valeur, puisqu'elle n'est pas une marchandise, et dire qu'elle est une valeur et qu'il y a un capitalisme du cognitif, c'est nier tout le potentiel de subversion, de gratuité qu'il y a dans l'économie de l'immatériel.»

"Tu vas avoir quatre-vingt-deux ans. Tu as rapetissé de six centimètres, tu ne pèses que quarante-cinq kilos et tu es toujours belle, gracieuse et désirable. Cela fait cinquante-huit ans que nous vivons ensemble et je t'aime plus que jamais. Je porte de nouveau au creux de ma poitrine un vide dévorant que seule comble la chaleur de ton corps contre le mien.»

«Nous nous sommes dit que si, par impossible, nous avions une seconde vie, nous voudrions la passer ensemble.»

Estômago, de Marcos Jorge

Estômago é um filme saboroso. Péssimo trocadilho para um filme em que o personagem central é um cozinheiro.
Atuação excelente de João Miguel.
Quando Estação Carandirú, de Drauzio Varela, que certamente foi uma referência para Marcos Jorge, um dos personagens que mais me impressionaram foi o do preso que refaz a comida na prisão. Ele recebe uma gororoba e transforma aquilo em algo saboroso. Talvez por identificação - se um dia eu for preso vou fazer isso - esse personagem me impressionava. Naquele ambiente infernal ele trabalha com odores, perfumes, sabores, cores e combinações. Uma tensão óbvia, mas poética.
Pois é o que faz Raimundo Nonato no filme. Por conta de seu talento na cozinha ele consegue subir na vida, tanto quando está em liberdade quanto preso.
O filme é especialmente divertido por conta da forma como o talento de Nonato é meio que apartada do lugar em que ele está. Na prisão suborna o policial para comprar Gorgonzola e Angustura e serve Carpaccio para o chefe dos criminosos. Uma delícia!
O filme me fez pensar em um momento de Barry Lyndon do Kubrick (1975). O filme é dividido em capitulos e um dos deles se chama algo como : De como Barry Lyndon perdeu seu filho em um acidente de cavalo. A cartela sai e o filme narra o que prometera que iria acontecer.
Seria demasiadamente cruel com os espectadores não avisá-los que o personagem principal, com quem certamente já estabelecemos uma relação de identificação, perderá o filho.
Pois esse é uma forte incômodo em Estômago.
O personagem de João Miguel é excelente, e passamos o filme muito colados a ele, torcendo pelo seu sucesso e encantados com seu talento espontâneo e natural. Mas, o tempo todo sabemos que ele irá preso, já que o filme narra as duas situações em paralelo - a chegada em SP e a chegada na Prisão.
Essa apreensão nos distancia do que é divertido e delicado no filme. Frequentemente me vi envolvido com o filme e me dizendo: "Ai não, agora ele vai fazer uma besteira e vai ser preso."
O filme cria um tipo de tensão absolutamente desnecessária, que mais nos distância do que o filme tem de rico do que nos mantém junto à ele.
Um filme popular que espera uma boa distribuição. DVDs a 5 reais, por exemplo!

Documentário e Artes Plásticas

A maior diferença entre o documentário e as artes plásticas é que no documentário a economia é de subsistência e comercial e nas artes plásticas é especulativa.

24 de set. de 2007

Por que somos contra a propriedade intelectual? Pablo Ortellado

André Brasil me mandou esse ótimo artigo que conta a história da noção de propriedade intelectual, de Jefferson até o Linux.

Uma das atenções do artigo está na diferença entre crime e desobediência civil, um distinção que eu poderia ter discutido no artigo Tropa de Elite e a crise da propriedade imaterial

"A desobediência civil, como se sabe, é muito diferente do crime. O crime é
uma violação de lei clandestina, feita às escondidas e com o entendimento
de que a lei que se viola é legítima. A desobediência civil, por sua vez,
é uma violação pública das leis motivada por seu caráter ilegítimo. A
desobediência civil se faz abertamente e ela não reconhece que a lei que
está sendo infringida seja justa."
Pablo Ortellado


20 de set. de 2007

Tropa de Elite e a crise da propriedade imaterial

Artigo sobre o evento Tropa de Elite na Cinética, por Cezar Migliorin.

"ser a favor ou contra a pirataria é uma falsa questão. Ela existe porque criamos as condições técnicas e sociais para sua existência, e essas condições nos interessam. Resumir a pirataria a uma atividade criminosa é a melhor maneira de defendermos poderes anti-democráticos, mas ao mesmo tempo ela não resolve os problemas do capitalismo contemporâneo."


PS. A Ilana Feldman me chama a atenção para o fato que Tropa de Elite foi feito com verbapública e que isso torna o filme ainda mais comum; impróprio ao controle e lucro exclusivamente privado.
Acho que ela tem razão e isso não está no artigo.

Diminuição da Miséria e distribuição de renda

Pesquisa de apresentada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta que aproximadamente 6 milhões de brasileiros deixaram a miséria em 2006.
Pela primeira vez menos de 20% dos brasileiros são miseráveis.

A notícia foi publicada na Agencia Brasil e às 16 horas de quarta no Globo on line.

O site da FGV com a pesquisa é muito interessante, ele permite visualizar diversos gráficos que dão conta da evolução de renda e pobreza no Brasil.

Segundo o economista da FGV Marcelo Neri (vídeo), que a presentou a pesquisa, cada real investido no Bolsa Família tem duas vezes e meia mais chances de chegar aos mais pobres que um real de aumento no salário mínimo.

Baseado em números e cálculos difíceis de acompanhar ou rejeitar o economista resume os resultados dizendo que estamos vivendo a uma década que é marcada pela diminuição da desigualdade.

16 de set. de 2007

"Aboio" de Marília Rocha

Dois grandes momentos do filme Aboio, de Marília Rocha:
Em sequências distintas dois vaqueiros se colocam a cantar o aboio para a câmera com toda a constelação sonora que envolve a boiada; sinos, cachorros, gritos e o gado.

São momentos de grande expressividade. Por não estarem justamente tocando a boiada e sim mostrando para o filme, os vaqueiros são obrigados a suprir todas as pistas sonoras e acabam por inventar uma deliciosa performace entre a poesia, a música e esta singular forma de comunicação entre homens e animais.

Acho que poucas vezes vi a influência/homenagem a Glauber tomar os caminhos sutis e delicados como nesse filme.

14 de set. de 2007

Saens Peña, de Vinícius Reis


Bate-papo com Vinícius Reis publicado na Revista Cinética.
Ele fala sobre seu primeiro longa de ficção. Produção Limite.

13 de set. de 2007

Das nossas ferramentas - Cinema

"E não direi nada contra as minhas ferramentas, mas eu as quero utilizáveis." - Godard.
"O cinema é feito para descobrir, a tv para cobrir" - Godard.
"Montagem: O cinema é uma arte pacífica, ela é feita para aproximar" :) - Godard
"Não é a minha vontade, o meu mundo que está no filme. Foi o cinema que me escolheu, sou eu e ele. Picasso: "pintarei até que a pintura me regeitará". É Picasso e a pintura, é o outro. E o outro é o mundo no cinema" - Godard

12 de set. de 2007

Retrato Celular 2 e dispositivo

A semana passada Ilana Feldman e eu escrevemos nossas primeiras impressões sobre o programa Retrato Celular, do Multishow.
Ontem, no segundo programa de uma série de 8, pouca coisa mudou.
Queria destacar entretanto uma coisa.
Comentamos as insistentes "entrevistas" nas quais toda narrativa era baseada. Um modelo confessionário do Big Brother. Comentamos também a ausência da som direto dos celulares.
Pois, no programa de ontem as imagens dos celulares com som direto estavam bem mais presentes. Mas isso não basta.
Os anônimos personagens do programa quando estão sozinhos com o celular câmera estão o tempo todo fazendo cabeças. Cabeça é aquele momento em que o repórter olha para a câmera e "passa o recado". Em Retrato Celular, quando as pessoas não estão no confessionário elas estão fazendo cabeças.
Falando para câmera o que estão fazendo, sempre se dirigindo ao espectador.
Cinema Direto, que saudade!
O celular não é para filmar a vida, para estar na vida, é para deixar recado. Nesse sentido ele não deixa de ser celular, mesmo tendo uma câmera.
O destino de celular se impõe!

Diversos programas se apresentam agora como "feitos com celular" ou com micro câmeras digitais , ou filmados por amadores, etc. De um modo geral há uma percepção equivocada do que é inventar um dispositivo para a criação audiovisual.
Fala-se nestes dispositivos como se eles tivesse em si a potência de inventar uma escritura, como se eles trouxessem uma novidade para a imagem.

Pois não é assim.
O dispositivo é parte de uma escritura, mas não garantia.

Para fechar, uma breve passagem do Deleuze que torna ainda mais complexa a questão do dispositivo em Retrato Celular. "o objetivo da escritura é de levar a vida ao estado de uma potência não pessoal."

7 de set. de 2007

Homem diminui dedo para usar iphone


Matéria do North Denver News, reproduzida no Estadão.

" SÃOPAULO - O americano Thomas Martel, de 28 anos, é um homem grande. Por isso, tem dificuldades em usar pequenos aparelhos eletrônicos como seu novo iPhone, celular da Apple. Não tem mais. Ele diminuiu seu dedo com uma cirurgia, informou o jornal North Denver News."



Estamos entrando em um devir nano para podermos acompanhar a tecnologia.

--

Eu havia acabado de postar este link para a matéria do Estado de São Paulo quando resolvi ir até o jornal americano que deu a notícia que foi reproduzida em muitos sites e blogs.

Quando coloquei no Google o nome do jornal de Denver - EUA, acabei caindo na matéria do Guardian que esclarece que foi tudo uma história cheia de ironia do jornal de Denver. Estranho jornal esse. O editor americano colocou no pé da matéria um artigo em que diz que o humor do texto, reproduzido como notícia, é evidente.

O estadão eu não sei o que fez.
Eu acho que o devir-nano é uma realidade.

Vejo também que o Blog do Alex Primo já havia comentado esse "pequeno escorregão" do Estado de São Paulo, que recentemente fez uma campanha contra os blogs.

"Retrato Celular" no Multishow

Na Cinética, texto sobre o programa Retrato Celular que estreou no Multishow na última terça. Direção de Andrucha Wadington e produção da Conspiração. Este é o primeiro texto que escrevo com Ilana Feldman.

6 de set. de 2007

Videogramas de uma Revolução, de Farocki e Ujica


Ainda saindo do e-mule.
O brilhante Videogramas de uma Revolução: a queda de Ceausescu (2001)- de Harun Farocki e Andrei Ujica (107').
O documentário sobre a queda de Ceausescu, em 1989, na Romenia é uma história da presença das imagens e da televisão na revolução.
A segunda imagem do filme é feita por uma câmera amadora em um plano muito aberto. Farocki comenta os acontecimentos e a imagem; sua localização, quadro, primeiro plano, cores etc. À partir dalí é a textura e a localização de cada imagem que vai tendo especial importância na revolução, na fuga de Ceausescu e dos acontecimentos que se sucedem. Ao mesmo tempo em que colocam em perspectiva a face midiática que o evento teve na época.

O procedimento de Farocki consiste narrar com as imagens para simultaneamente esmiuça-las, encontrar suas condições de possibilidade, seus riscos e clichês. Uma montagem analítica. Já conhecia filmes-ensaios de Farocki, sempre muito interessantes, mas este Videogramas de uma Revolução não abandona esta faceta ensaística ao mesmo tempo em que documenta de maneira absolutamente didática a queda do ditador Ceausescu.

Um raro momento do documentário este filme de Farocki. Poucas vezes vi a história das imagens de um acontecimento estarem em lugar tão central como neste filme.

A primeira imagem é impressionante. Uma mulher sendo levada para um cama. Foi ferida pelos homens de Ceaucescu.
-O que aconteceu? Alguém parece perguntar.
- Está gravando som e imagem? pergunta a mulher.
Sofrendo ela inicia uma fala compulsiva sobre a liberdade, sobre o que está acontecendo, sobre a revolução. Não há corte.


Na Documenta de Kassel Farouki apresentava uma instalação - "Deep Play" - com 12 monitores acompanhando a final da copa do mundo da Alemanha, cada monitor com um quadro, incluindo as estatísticas. A questão da imagem que constrói e documenta um evento continua, mas na documenta com muito menos força. O acúmulo ali ficava longe da escritura que era também uma descoberta, neste filme na Romênia.

Ensaio sobre Farocki por Christa Blümlinger, alemã e professora da Universidade Sorbonne Nouvelle, Paris. Em inglês e francês.

Kurt e Courtney, de Nick Broomfield

Assisti essa semana o documentário Kurt and Courtney, de Nick Broomfield sobre a morte de Kurt Cobain, vocalista do Nirvana (emule), produzido pela BBC.

Broomfield vai para Seatlle conhecer pessoas que estiveram envolvidas com Cobain, conhecer e documentar o universo do cantor.

O documentário tem diversos pontos de interesse.

1 - A forma como o filme vai se transformando a partir dos encontros que o realizador vai fazendo e a maneira como o próprio realizador muda sua relação com o tema e com os personagens.

2 O filme documenta Courtney Love e a indústria da música fazendo pressão contra o documentário e contra jornalistas que escrevem sobre Courtney. Até o ponto em que a BBC anuncia a Broomfield que as verbas estão cortadas, fruto da pressão que a tv pública inglesa sofreu do pessoal da MTV - Essa conversa entre o realizador e o produtor é parte do filme.

3 O envolvimento de Broomfield aparece em dois momentos muito fortes. O primeiro é quando ele decide encontrar pela terceira vez o pai de Courtney que a acusa de ter matado Kurt. Desta vez Broomfield abandona qualquer distanciamento e se mostra bastante perturbado com a posição daquele pai que acusa a filha de assassinato. A indignação de Broomfield acaba por revelar um pai muito agressivo, tornando toda história ainda mais tensa e complexa. O segundo é quando o realizador comparece à entrega de prêmios de uma Associação que promove a liberdade de expressão e Courtney Love é homenageada. Prato cheio! De maneira delicada, distante das estratégias de Michael Moore, Broomfield sobe no palco e diz não entender como uma associação dedicada a liberdade de imprensa homenageia Courtney Love, depois dela ter pressionado, agredido e ameaçado de morte diversos jornalista. Broomfield é retirado do palco.

O mais interessante do filme são estas transformações e mudanças de rumo que o filme vai tendo diante dos fatos, além é claro da ótima história em torno deste ícone dos anos 90 que foi Cobain.

1 de set. de 2007

Renda Mínima Universal (RMU) e Capitalismo Cognitivo





O cientista político Giuseppe Cocco defende na entrevista com Ana Paula Conde a necessidade de uma renda universal.

Abaixo algumas observações sobre a questão, várias delas presentes no excelente livro de André Gorz, L'immateriel

O capitalismo está ligado à miséria também e por isso é necessário ações anti-capitalistas

Destruir o capitalismo é ação inoperante e frequentemente violenta e pior sem ele.

O anti-capitalismo é uma ação da sociedade - frequentemente encabeçada pelo estado - no interior do capitalismo.

A falta de garantia de uma renda suficiente é o poder do capital.

A renda universal garante a liberdade para um trabalho imaterial - cuidados com o outro, produção artística, de softwares livres, doméstico, de ensino, de política, etc - terá uma gratificação material separada do capitalismo e do trabalho dependente.

A renda universal marca a importância das atividades não assalariadas nem dependentes. Desemprego não é igual a inatividade ou inutilidade. Para o capitalismo ele é garantia da possibilidade de explorar muito. A RMU garante um poder mínimo de negociação no campo do trabalho assalariado.

O trabalho imaterial, a riqueza social do líder comunitário, da mãe de família, da professora da creche da comunidade, do programador de softwares etc, não é mensurável e pode ser igualmente paga, criando um novo paradigma para o trabalho e para a inserção social.

A mão de obra não é mais necessária para a produção de valor, mas a produção de valor, feita por poucos tem total condições de sustentar a produção de valores simbólicos, afetivos e não transformáveis em dinheiro.

"A renda universal nos libera de uma falsa idéia de um pleno emprego para a realidade do pleno emprego da vida" Laurent Guilloteau.

A renda mínima garantida visa liberar as vidas para atividades mais ricas e de maior valor social do que as que hoje o capitalismo propõe a uma boa parte da população.

Porque nas ruas do Brasil ou do México há o mesmo número de pessoas vendendo produtos chineses e produtos com açucar que pessoas indo de um lugar a outro.

A RMU só é possível porque o capitalismo se transformou. Se no fordismo a principais matérias primas eram raras - metais, força física, energias - no capitalismo cognitivo, a principal matéria prima é abundante e o seu consumo não há extingue, ao contrário, aumenta sua quantidade e potência - informação, criação, invenções subjetivas, de maneira ampla; o conhecimento.

Inventar a vida não pode ser a mesma coisa que inventar uma empregabilidade, como vemos hoje nos jovens de 18/20 anos.

Porque fora do mercado se produz valores mais importantes para a vida que dentro dele.

A RMU é um revolução dentro do capitalismo porque hoje o capitalismo é assim. Ela deve ser incondicional. Não há poder que tenha condição de avaliar o que é produção de valor social o que não é.

É importante ensinar a pescar, dizem. Uma bela imagem para um mundo sem rios e sem pesca. Ensinar a pescar hoje não pode ser ensinar a servir o capital, mas a inventar uma vida de valor comum.

A RMU é a maneira de levar a fundo as transformações do capitalismo contemporâneo não permitido que ele se apodere da informação e do conhecimento universalisado. O discurso contra a pirataria e a favor do direito autoral é paradigmático desta tentativa capitalismo se apropriar do que não mais lhe pertence, do que é comum.

O fundamental da RMU não é desvalorizar o trabalho, mas valorizar o trabalho que não cabe dentro das estruturas capitalistas e liberar o indivíduo da obrigação de aceitar qualquer trabalho para sobreviver.

Renda Universal, por Philippe Van Parijs - com exemplos, histórico e experiências




Dispositivo e encontro com Ricardo Basbaum no Parque Lage

Diversos posts sobre o trabalho "Você quer participar de uma experiência artística?" apresentado na Documental de Kassel por Ricardo Basbaum acabaram se tornando um artigo mais longo que publicamos na Cinética.

Essa semana, Basbaum fez uma apresentação de seu trabalho no Parque Lage e falou algo que merece um novo comentário e faz parte também de uma reconfiguração que tenho feito da noção de dispositivo, de obra-dispositivo ou filme-dispositivo.

Ricardo diz assim: "Esse trabalho pode existir daqui a 150 anos, quando eu não estiver mais aqui e o objetos continuarem a circular e a documentação sobre essa circulação continuar a ser feita."

Esta percepção parte da idéia de que o dispositivo inicial absorve a totalidade do trabalho. Ou seja, trata-se de um trabalho processual em que a ação - proposição do artista - está no estabelecimento das regras e formas que disparam o processo e que depois ele pode se ausentar.

Pois é exatamente isso que Ricardo Basbaum não faz, felizmente. A palestra no parque Lage - ou em Kassel - é parte importante do trabalho. Nos últimos anos esse projeto ganhou elementos e acontecimentos que não subvertem o o dispositivo inicial mas que o mantém vivo, com o movimento necessário para que ele continue potente.

A montagem de kassel é um exemplo disso. Ali o artista inventou uma arquitetura para apresentar o projeto, fabricou 20 novos objetos, instalou duas câmeras de segurança no interior desta arquitetura em que os espectadores podia se ver, etc. Pequenos elementos transformam constantemente o projeto, impossibilitando a ausência do artista.

O dispositivo lida com limites - as regras que estabelecem o ponto de partida: a forma do objeto, um mês na casa da pessoa ou grupo, a documentação , etc - e contingência - todo acaso que surge à partir desses limites.

Se nos detemos nas regras que fundam uma determinada obra podemos perceber o dispositivo “iniciando” a possibilidade da obra mas estaremos distantes ainda dos modos desta metaestabilidade aparecer nas intereção, escrituras e operações internas à obra.

O dispositivo, pensado como uma regra para que a obra aconteça, uma "prisão" temporal e espacial, não constitui em si sua dimensão metaestável, não aparece como garantia para um processo de interação perpassada pelo acaso e descontrole por um lado e pela escritura, presença múltipla e subjetiva que constitui a obra, por outro.

Um trabalho como o de Basbaum, felizmente, não está dado uma vez que o dispositivo é inventado, são pequenos movimentos do artista no interior do dispositivo que ele e a obra habitam que permite a continuidade de sua força.


--