19 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 53

Por vezes, andando de máscara pela rua, tomo o susto.
Que mundo é esse mesmo?
Me assusto com a velocidade de nossa adaptação.
Um mundo que escorre entre os dedos.
Tentamos segurar, mas foi.
Mas, que duro esse governo. Talvez o mesmo susto.
O que nos aconteceu que os mais toscos, tristes e violentos chegaram ao poder.

O vizinho que se calou, a tia que votou em um idiota, a miséria das vidas que se vê refletida nos poderes.
Não seria isso?
Não seria essa, também, nossa política possível? 
Onde houver miséria nos modos de vida, ela deve ser enfrentada como se derrubássemos Bolsonaro.
Mandar o tio pra pqp.
Quebrar as câmeras que nos vigiam.
Se f*der as falas subservientes à burocracia.
Lembrar o vizinho que ele é cúmplice.
Que os militares sujam mais uma vez as mãos.
Onde houver miséria – nesses toscos jornalismos ridiculamente delicados com o capital.
Onde houver miséria derrubar o fascismo.
O susto enfrentado com um revide calculado.
Não me convoque para a sua miséria de vida, sua miséria sensível, sua miséria cotidiana.
Amanhã de manhã seremos convocados em algum telefone, memória ou na dor dos que morrem.
Vai dar trabalho, mas a vida é outra coisa.
-- Diário do entre-mundos 52 --

Casa Jangada - dia da Luta Antimanicomial

Casa Jangada
Hoje, 18 de maio de 2020 celebramos o dia da Luta Antimanicomial de forma inédita.
Não estivemos juntos na rua com usuários que sobreviveram aos anos de aprisionamento, com trabalhadores que sustentam o cuidado em dispositivos abertos e integrados à cidade como CAPs e RTs, intencionalmente precarizados pelo poder público, com personagens que lutam a anos para que esse trabalho que realizamos hoje seja possível e todos que essa rede clínico-politico-afetiva contagia e agrega.
Fiquemos com a imagem do êxtase do cortejo do Loucura Suburbana, pouco antes de nos confinarmos, pra exaltar essa data.
Ir contra a idéia de isolar para tratar, sempre foi uma direção ético-política fundamental.
Construir um espaço comum de convivência como multiplicador das possibilidades de existir sempre dependeu, justamente, de um projeto anti-isolamento.
O trabalho que fazemos com relações de cuidado em saúde mental está diretamente relacionado com uma porta aberta da Casa. Uma forma de cuidado em que clínicos/artistas, com frequência, são mediadores atentos às passagens entre indivíduos e as coisas do mundo.
Na rua, nos espaços culturais da cidade, ao recebermos artistas para trocar sobre seus processos criativos, ou em todas as circunstâncias que inventamos dentro da Casa para evitar empalidecer os corpos de rotinas esvaziadas e enclausuradas, em todos esses momentos estamos ligando nossas formas de estarmos juntos à possibilidade de novos sentidos. Novas formas de percepção de si e do outro em um contínuo esgarçamento das formas de ser. E isso é clínico porque desloca e altera modos de sentir.
Nos últimos dois meses, sem podermos seguir com nosso cotidiano de casa cheia e de saídas em grupo, estamos vivendo o desafio da lógica de isolar para cuidar.
Isso tem sido complexo para nós trabalhadores e usuários de espaços de saúde mental que se pretendem antimanicomiais. Essa complexidade de entendimento sobre saúde mental/sanitária não deixa de nos explicitar ainda mais a importância desse dia de luta antimanicomial.
A importância de termos um mundo em comum.
O momento é muito exigente, mas a direção de mantermos as portas abertas para a vida que insiste sempre estará no nosso horizonte.

Diário do entre-mundos 52

Como brasileiro e como espécie meu pessimismo é bem grande.
Não vou dizer que sempre piorou, mas o desastre como espécie, desastre do mundo e do país, são coisas evidentes demais.
Pode ser um desvio momentâneo de postura, mas é o que o corpo pode agora.
Entretanto sou desses privilegiados que trabalham com pessoas. Na UFF, na Casa Jangada, no consultório, nos livros, sempre pessoas com nomes e histórias. Nas vidas, não interessa meu pessimismo. Aqui ao lado é mais uma pessoa, mais um sujeito que está nesse mundo. No mundo que temos. Aí, o pessimismo não serve de nada. Em algum lugar há uma forma de estar por aqui e fazer de hoje, de amanhã, de mais uma geração, uma maneira mais viva de encarar nossos frequentes desastres individuais e coletivos. Alguma maneira mais alegre de viver com as pessoas esses desastres.
Contra os desastres estão os grandes, aqueles que estão em uma luta de massa, contra grupos inomináveis, inimigos palpáveis. Que beleza desenham esses que colocam os músculos na frente do desastre. Se podem fazer isso é porque também estão ao lado de pessoas, de amores.
Pessimista ou não, há algo de irrelevante nessa classificação. Uma ética da alegria possível, dos encontros excêntricos e das possibilidades de uma vida plena em cada indivíduo é o que podemos, é o que desvia o desastre. Exigência dobrada em tempos de desastres múltiplos..
-- Diário do entre-mundos 52 

Diário do entre-mundos 50

Talvez estejamos vivendo uma estranha relação com nosso rosto, com nossas imagens.
Por um lado, são horas de encontros virtuais por dia. Nesses encontros estamos constantemente nos olhando. Se não tiramos nosso rosto da imagem ficamos duas, três, quatro horas na frente do “espelho”.
Por outro lado, nossa imagem é normalmente feita com respostas do mundo. Respostas físicas mesmo. Variações entre visibilidade e invisibilidade em cada espaço que percorremos, variações de proximidades. No momento, nos falta esse rosto.
Ser ouvido, ser visto é ter o rosto guiado, ganhar uma fisionomia.
Uma imagem me impressionou recentemente. Bolsonaro sentado ao lado de José Antônio Dias Toffoli no supremo.
Enquanto Toffoli falava, Bolsonaro olhava fixo para frente, não deixava para Toffoli nada de seu pensamento, não devolvia nada. Em um dado momento, olhou o relógio. 


Conheci pessoas assim. Pessoas de esquerda, com eventuais discursos progressistas, mas que diante do outro o eliminam pela absoluta desafetação.

Nesses casos, trata-se de um rosto que já vem pronto, que, separado do mundo, não se deixa afetar. De suas bocas pode sair qualquer coisa, mas nada é crível além do desprezo por tudo que não seja o próprio “eu” do rosto impassível. 

Ao não sofrer o mundo, o rosto desses homens não se associa a nada. Não traçam nenhuma linha de continuidade com outra humanidade – o colega do lado, o país.


Não estranha que esses homens sejam bem-sucedidos nas burocracias e avaliações numéricas – na universidade ou na bolsa. Como nada acolhem do mundo, surfam na lógica da naturalização da indiferença e desigualdades. Para esse homem desafetado, tudo se equivale.
O distanciamento social é parte dessa desafetação. Não apenas porque temos que ficar distantes uns dos outros, mas porque a distância entre todos se homogeneíza.
A mãe, o entregador, o vizinho, todos são condenados à mesma distância, à mesma máscara. Estamos assim sendo exigidos na forma como devolvemos ao outro os nossos mundos.

Na casa, com horas de espelho e ausência dos retornos físicos dos encontros. Como o rosto se de-forma, como o rosto é afetado? Como as marcas não cessam?
-- Diário do entre-mundos 50 --

14 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 49

E mais uma reunião, um encontro online e todos estão lá. Todos resistem. Todos aguentam.
Parece que somos destinados a aguentar, a suportar. Destinados a encontrar alguma força para o próximo dia, para a próxima burocracia, para os próximos trocados que garantirão a noite.
E, em algum lugar, essa memória que nos atordoa. Podia ter aproveitado mais aquela época de corpos se tocando, de conversas ao pé do ouvido, de ruas cheias e proximidades para ver uma tela, um palco. Podia ter me jogado nessa multidão-mundo.
Agora isso falta, mas todos aguentam. Aguentam tanto!
Mas algo desaba. Em algum canto, casa, quarto, alguém diz: chega dessa p toda. E aí entra em uma linha de destruição, de limite. Um basta em alguma depressão, alcoolismo, abandono.
O impressionante é que tantos ainda estejam aí. O desastre sempre adiado. Para e pensa: nesse meio tempo o desastre já achou alguma saída. As vezes uma dessas saídas sem volta, saídas de tristeza, de medo, de rejeição de tudo. Ah, mas pelo menos o desastre ficou do lado de fora.
Respeito o que desaba.
-- Diário do entre-mundos 49 --

Diário do entre-mundos 48

“Eu tenho uma biografia a zelar! “
A expressão de Moro causa medo. Se ele não tivesse uma biografia, um passado e uma imagem, se suas decisões dependessem só do presente, o que ele faria? Se fosse responsável pelo agora, como agiria?
Essa expressão diz assim: se eu não tivesse uma imagem - que me permite dar palestras caríssimas e até pensar em ser presidente - eu chutava o balde. Deixava a PF nas mãos da milícia, protegia 01, 02 e a tabuada inteira. Mas, infelizmente eu não posso, tenho uma biografia. O presente não importa, o que importa é essa imagem que tem valor.
A expressão deixa claro o narcisismo sem fim que move suas ações. Não se trabalha por convicção, mas porque se tem uma história pessoal, uma biografia. Antes de qualquer coisa, o eu.
E mais, por que não alterar a biografia, que apreço tosco é esse em algo parado no passado? O presente para que serve? Para ficar realimentando uma história já escrita. Meu pai me ensinou.... Politicamente é irrelevante o que o seu pai te ensinou. Relevante é o que você faz agora.
Esse apego a escrever uma vida coerente ou escrever uma vida como uma carreira, aponta para a subserviência de Moro à normatividade geral – poder do capital, moralismo. Quem realmente enfrenta os poderes não pode temer pela sua biografia, ela será detonada. Como ser relevante na cultura, na sociedade, com tal apreço por uma história pessoal, como se fosse isso que contasse?
O egocentrismo desse personagem é, na verdade, uma obsessão em sempre estar prestando contas aos poderes. O “eu” aqui se confunde com esses poderes. Eu sou o poder, não devo frustrar esse poder. Devo obediência. Devo zelar.
Eu tenho uma biografia a zelar é a frase da obediência, da subserviência, do sujeito subjugado. No fundo a minha biografia não me pertence, ela não é algo que eu escrevo, mas algo que eu devo satisfazer sem falha.
O paradoxo que ele desconhece: por um lado, Moro não pode perder o controle de sua biografia, por outro, a biografia não é controlada por ele. Como poderia haver um melhor personagem que Moro para a política no Brasil? Um fantoche obsessivo que transforma sua subserviência em atividade.
E nós, e se não tivermos nenhuma biografia a zelar depois da pandemia? Seguramos essa onda, essa liberdade?
--Diário do entre-mundos 48 --

12 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 47

Bolsonaro me chama para substituir Regina Duarte e eu aceito. No sonho eu nem me questiono sobre a cumplicidade com o crime.
Chego com vários projetos. Editais amplos para roteiro de cinema e novas dramaturgias para teatro. Uma linha para filmes de montagem a serem realizados durante a pandemia. Edital para solos de dança com móveis de casa. Muita verba para arquivos, bibliotecas, cinematecas. Digitalização ampla e disponibilização de tudo para que as pessoas possam pesquisar, escrever, montar sem sair de casa. Colocação de trapézios, tecidos e trampolins em praças públicas. Editais para novas revistas de poesia e literatura. Linha de filme-ensaio caseiro fortíssima. Verba para leituras de peças online. Edital para novas composições solo e em parcerias transestaduais. Tava tudo lindo! Quase tudo poderia ser feito sem que as pessoas quebrassem o distanciamento físico. Um sonho-ralação.
Mas, eu pego Covid e morro. O Osmar Terra assume. Nesse momento ele já tinha 4 ministérios. Sinto ter abandonado vocês!
-- Diário do entre-mundos 47

Diário do entre-mundos 46

Falava com minha avó essa semana e uma coisa ficou clara. Quem entende de quarentena são eles, os idosos.
Com 94 ela tem limitações para sair de casa: o joelho, os olhos e, certamente, uma falta de paciência para a rua mesmo.
Mas, que estranho mundo esse em que os idosos perderam a palavra. De certa maneira, ser idoso em nosso mundo é lutar, as vezes com agressividade, contra a infantilização que vem de todos os lados. O idoso é visto como aquele que não sabe, que é lento, que se atrapalha, que, em resumo, perdeu não apenas algumas forças como aquele que perdeu o desejo de vida.
Quando está fazendo as coisas, decidindo, eles não agem como esperam os mais novos. Não faz as coisas “como deveriam ser feitas”.
O idoso, a criança e o louco ocupam o extremo de um mundo que normatiza todas as convivências, todas as velocidades e funcionalidades. Eles escapam e com frequência sofrem, por acharem que não podem perder o ritmo e devem se adequar "ao normal".
É como se vivêssemos em um mundo com uma faixa muito estreita de possibilidades de vidas desviantes da norma. Uma norma pautada pelo consumo. Enquanto a criança opera consumindo, é a dona do pedaço. Mas quando requer tempo alargado para realizar tarefas, para não fazer nada, para fantasiar entre o jantar e a hora de dormir, ai dançou. “Vai já pra cama”.
Esse é o lugar do idoso. Distante da rua esburacada, do consumo, e da produção, precisa ser tutelado. Seus gestos como sujeito: aqueles que ainda dizem: eu penso, eu decido, eu resisto, são vistos como dispensáveis, porque estão fora dessa linha estreita do que é “como as coisas deveriam ser feitas”.
Na querentena não sabemos mais “como as coisas deveriam ser feitas”.
Na quarentena, os idosos sabem como fazer!
-- Diário do entre-mundos 46

Diário do entre-mundos 45

Talvez mais um dia de quarentena não precisasse de um diário. Mas virou costume, é preciso algumas palavras para o dia passar, para acolher outras, para abrir o dia e deixar circular essa estranha sensação de um mundo em suspensão, desabamento e transformação. Novo normal, dizem alguns. O desejo por normalidade é tão grande que agora ele é novo. Não, talvez o normal nunca tenha propriamente existido, mas agora não é um novo. Tomamos a rasteira, estamos no ar e não sabemos ainda onde vamos cair ou se conseguiremos fazer o rolamento. O Brasil é um país muito organizado. Normalmente quem cai e se quebra são sempre os mesmos. Puxa, mas agora que ainda estamos no ar, talvez pudesse haver um outro chão. Talvez por isso a tristeza, a revolta com esse governo e suas elites. Um grande esforço para que os que estavam na pior caiam em lugares ainda piores, talvez abaixo da linha do solo. Eles têm o vírus para ajudar. Mas, lá vêm as palavras e com elas é preciso desviar. Esticar o braço ali onde existem acordes lentos, um sol de maio, um texto que felizmente não entendo. Ufa, nada como uma garantia que teremos que continuar tentando. Talvez esse texto que só pode ser sentido, texto de amigo que escreve estranho, que escreve esburacado, seja o necessário normal. Essa espécie de mil e uma noites que não nos garante mais um dia pela narrativa, mas pelo mistério da escrita. Não entendo, mas cada vez que leio sou levado para algum lugar. Ai sim! Na quarentena, ser levado é garantia de que esse lugar não basta, que ainda há outro para ir. Quando ele chegou na casa, me disse: “que alívio chegar aqui”. Ir para um lugar, voltar para um grupo, mesmo que o grupo ainda falte, traz uma conexão possível, um futuro imaginável. Nos bares com música, uma roda de samba, uma música experimental em fita K7 com alguém falando ao piano. Todos esperam. Pode até fazer bem passar a pé onde estávamos há dois meses. O espaço guarda essa memória de uma possibilidade futura. Um normal grávido de um eu em fuga. E mudamos de lugar e vamos para o campo, para o interior, para a montanha, e lá vem o eu atrás de nós. Quando você menos espera, a luta recomeça. Esse eu que não cessa. Montar e se esquivar. Vai lá que a estrada tá cheia de bloqueios e não tem Búzios, Ilha grande ou aeroporto. Agora já sei para que o diário. Para dar um limite no texto sem fim, para marcar um cronos no sem limite do tempo que está em suspenso, para colocar palavras onde tudo está organizado demais como querem os homens de comunicação e de poder. Palavras neles. Sem isso, vamos acabar entendendo tudo. O terror é uma cara limpa. Viva a espinha que insiste e trabalha.
-- Diário do entre-mundos 45 

Diário do entre-mundos 43

O isolamento, a redução das relações de corpo presente, a centralidade da casa nos exigem também possibilidades de montagem.
Como se o momento pedisse conexões que não tínhamos o hábito: relações com pessoas, afetos, obras, que permitam escapar dessa tóxica hiperpresença do eu.
Uns dizem acharam em alguma relação filantrópica essa conexão, outro nas artes, na escrita, nas relações de cuidado com familiares etc.
Montar é um abandono da coisa em si. Quando se monta a casa ou os afetos, com outras coisas, com outros afetos, fazemos esse duplo movimento: por um lado esvaziamos o peso do eu, por outro colocamos esse eu em criação.
Na montagem toda unidade perde seus contornos, perde a estabilidade da unidade. Ao montar, podemos apenas passar de uma coisa a outra, como o neurotípico que ao ver a flor se aproxima para cheirá-la, ou, diferentemente, como no cinema e sua potência esquiza, que uma flor pode montar com uma parede rosa, com outras flores, ser desfocada e perder espaço para o ambiente, com uma revolução.
Alguns de nós não têm problema algum em organizar eventos da vida em unidades temporais, em relações de causa e efeito, em passagens de espaços e elipses necessárias para a boa narração. Entretanto podemos ter dificuldade de trazer para nossas narrativas a presença de outros sons, palavras, afetos que não fazem parte de linhas narrativas já instituídas. Como sermos capazes de montar, de sermos afetados por outras vozes, olhares, escutas.
Creio que nesse entre-mundos, um esforço de montagem é fundamental. Penso a montagem como esse rasgo na unidade. Como a possibilidade de um atravessamento que nos permite uma distância de ordens excessivamente presentes, que tendem a reduzir nossas possibilidades de experiência. Assim é a casa, a violência política e social no Brasil, o medo do vírus, etc.
Como se nesse entre-mundos vivêssemos um duplo movimento - que pode ser bastante difícil. Por um lado, somos atravessado por incertezas, por outro, somos atravessados por afetos totalizantes, na saúde e na política.
A incerteza não deixa de produzir seus efeitos – com frequência bastante angustiantes - mas, para com estar ela, é preciso se abrir à possibilidade de criação: o contrário do que nos toma quando olhamos para a política ou para os riscos do vírus.
Uma montagem que, mais que colocar em ordem, chama novas imagens, afetos, palavras e sons para um processo criativo que a própria desordem do momento exige.
Desafio forte, para segurar a onda da incerteza, como montar para se abrir a novos afetos e experiências incertas?
-- Diário do entre-mundos 43 --

8 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 42

Regina Duarte é a bolsonarista dos sonhos de Bolsonaro.
Regina não é criticável. Ela se instala em um nível de absurdo e de infantilidade senil que impossibilita qualquer crítica. A perfeita bolsonarista impede que qualquer coisa seja dita.
Diante dela ficamos profundamente constrangidos. Aqui o constrangimento é literal: somos forçados a nos calar, contra a nossa vontade temos que silenciar.
Seu delírio é uma forma de censura. Ela exclui a possibilidade de história, de pensamento ou reflexão. Ao ser constrangedora, ela é extremamente eficiente para o fascismo Bolsonarista. No lugar da agressividade ela é uma caricatura do niilismo. Nada importa, não é revelante: opiniões, imagens, vidas. Relaxa! Sempre morreu gente!

A desconexão com seu próprio lugar de secretária de cultura faz de Regina Duarte o ideal do fascismo. Eu estou aqui mas poderia não estar. Eu não entendo nada. As vezes eu decido uma coisa sai publicada outra. O negacionismo fascista depende disso, depende na recusa ao presente, da recusa da história.
Antes de matar ou gozar com a morte, é preciso fazer do poder algo tão absurdo, tão excêntrico à vida mesmo que a própria ideia de alteridade ou diálogo se torna obsoleta.
Emblema de uma forma de poder. Na cadeira da cultura o que se vê é um corpo vaidoso despossuído de fala, mas que mesmo assim age. Age para agradar aqueles que desejam um triplo esvaziamento: da racionalidade, da política e da sensibilidade. Um corpo tão assujeitado a sua vaidade que torna obsoleta a ideia de que o poder estaria ocupado por sujeitos e ideias.
Um ideal para o fascismo: um lugar ocupado por uma imagem sem sujeito, sem nada.
Esse nada que reproduz gestos que não lhe pertencem e clichês autoritários que impossibilitam nossa presença, nos elimina.
Regina Duarte talvez seja a mais eficiente bolsonarista. Não há nenhuma tentativa de simular algo, ela é. Péssima atriz.
Aqui ela não finge que deseja a eliminação do outro, ela faz.
-- Diário do entre-mundos 42 --

7 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 41

A pandemia é um acontecimento. Para pensar um acontecimento não é possível nenhuma justeza e qualquer equilíbrio é precário.
Se o acontecimento é aquilo que irrompe sem que estejamos prontos - física, sensível e intelectualmente -como trazer as palavras sem interromper o que de estranho e inapreensível vem como o acontecimento?
Ou seja, trata-se de acreditar nas palavras e nas possibilidades delas se esquivarem da ordem, da disciplinarização do acontecimento. Tudo que está ai é atravessado por algo desconhecido - o que será das relações sociais, das relações de cuidado, da economia, do senso comum sobre a ciência, do bar da esquina, da ideia de saúde, etc?. Respeitar esse não saber é fazer apostas: gostaríamos que a vida fosse por aqui, ou por alí.
Há um mundo em disputa. Mas, é preciso respeitar o próprio não saber.
Respeitar esse não saber é o que possibilita o surgimento de algo novo. De outra maneira jogamos o acontecimento em nossos moldes já construídos e impedimos nosso próprio movimento intelectual e sensível diante do que nos afeta.
O cinema tratou o acontecimento – uma paixão, uma guerra, o fim – com dois gestos principais: o excesso e a rarefação.
Diante do acontecimento se fala muito, se escreve muito, se convoca mais imagens que podemos ver. O não saber aparece pelo excesso de signos, sem que uma linha de pensamento ou narrativa possa se impor. Uma explosão de conexões entre palavras, imagens e sons como se o acontecimento, nosso despreparo e desconhecimento sobre ele, pudesse estar em todo lugar e fosse apenas alcançável com conexões bizarras, caóticas, excêntricas, marcadas por tênues linhas de continuidade. Godard, Kluge, Glauber, Varda, Miguel Gomes ou mesmo Coutinho.
Mas o cinema também foi para a rarefação. Esvaziou o quadro, disse pouco, não completou as frases, fez intensos silêncios, diminuiu as cores, diminuiu o ritmo, esperou. Diante do acontecimento as palavras ou as imagens teriam que ser tratadas com tanto cuidado que quase desapareciam. Se muito presentes, correriam o risco de estancar o pensamento e o novo diante do estranho. Clouzot, Pedro Costa, Antonioni, Cao Guimarães, Chantal.
As duas formas não são excludentes. O que não é suportável hoje são os discursos claros, aqueles que sabem exatamente para onde iremos ou como o mundo se organizará ou o que seremos.
Respeitar o que nos acontece é um esforço estético.
--Diário do entre-mundos 41--

6 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 40

A vida não para. Moro, mortes, cala boca, e daí? A cada dia Bolsonaro investe em sua forma singular de governar. Onde está ruim ele piora, onde há calmaria se acende um coquetel molotov.
Nos jornais as celebridades estão lá fazendo selfies da quarentena e dando as melhores dicas de como higienizar os produtos entregues pelos motoboys, como higienizar o motoboy, como higienizar.
Esse é o paradoxo Bolsonaro. O projeto higienista depende de tudo sujar, tirar a máscara e limpar a meleca na camisa da seleção do apoiador.
Para todos a vida continua. Os que estão podendo ficar em casa estão se acostumando e começam a fazer planos para esse novo jeito de viver: a quarentena vai ser curta, comecei a estudar chinês. Momento difícil: agora que nos organizamos, daqui a pouco acaba. Meio que nem ter 50 anos.
Isso não é vida, me disse o motorista do taxi me explicando que rua vazia é só aqui na Zona Sul. Na baixada, tá bombando! Isso não é vida. Quem pode parar faz planos, acostuma e até escreve sobre angústias.
40 dias de diário de quarentena. Em tese amanhã deveria acabar. Não é esse o problema? Há algo errado em uma quarentena que dura mais de 40 dias.
E, se o Covid afeta o olfato, não seria melhor usar pequenos potes com cheiros específicos e nós teríamos que descobrir o cheiro, no lugar de tirar a temperatura? “Bom dia, será que a senhora poderia dizer que cheiro está sentindo nesse papelzinho descartável?” Patchouli! Capim limão, suor, café.. E assim os aeroportos e rodoviárias se transformariam em uma espécie de game olfativo, com torcidas e viagens em odores mil. Chiclete de melancia, geladeira do Roberto.
Se a covid afeta paladar. Bem...
Sim, há o que fazer. Quem trabalha com educação, por exemplo, relata: não damos aula mas o governo está exigindo relatórios de trabalho. A opressão é tanto mais humilhante quanto mais ela for patética.
E nas casas, os pais reclamam. Não aguento mais ensinar matéria da quarta série para escolas que não param de mandar boletos como se todos estivessem sentindo o mesmo cheiro de sempre.
Nas últimas semanas alguns movimentos começaram... Tenho uma tia que vive no interior de Minas, vou passar uma semana por lá. Outros reabilitaram a casa dos avós em Araruama – é ótimo para ... Ele disse pra que que era ótimo, só não lembro.
No zoom já tirei a minha imagem! 10 horas na frente do espelho é a coisa mais exaustiva que se pode fazer. No final do dia você quer não ter cara. Uma espécie de Síndrome de Teich.
Antes de dormir, um gelinho – da geladeira do Roberto - no ombro ou no cotovelo. As articulações não aguentam tanto clique. Ah como é difícil ser contemporâneo.
E a quarentena 1 já acabou e ainda não li Joyce. Não li aquele Foucault já empoeirado – espirros. (não estou com o vírus! Sabia que Foucault seria útil!)
Vamos a Quarentena 2. Entre-mundos é isso. Aos pulos. Parado queima e no ar ninguém fica.
-- Diário do entre-mundos 40

Diário do entre-mundos 39

Em outra quarentena me isolaria no início do século XX, cercado de livros do final do XIX, tentando olhar para o futuro, para onde iria esse início de século. De dia faria calor e de noite frio. Se tudo corresse bem, o sol me despertaria e a noite dificultaria a leitura. Pediria que alguém me ligasse uma vez por semana para me contar as novidades e fingiria espanto. “é mesmo?, que coisa!”Escreveria para os amigos e caminharia até os correios para comprar selos. Torceria para ter respostas com novidades antigas. Ouviria os quatro discos que levara, todos do final do século XX. Isso me colocaria entre tempos, no meio do choque e não me deixaria tão sozinho assim. Escreveria esse mesmo diário sem nenhuma perda de tempo com coisas contemporâneas. Não teria nostalgia nenhuma, apenas faria uma quarentena temporal. Essa ideia de que o isolamento é só espacial não cabe. Viveria meu isolamento temporal com leves saídas, sempre de máscara para tempos menos remotos: Pixinguinha, João Gilberto, Radiohead. Acharia um abrigo em um período que eu deseje e que me deseje. Acho que ali nos anos 10, 20, daria para aproveitar bem. Se fosse possível, os filmes do Epstein me levariam um mundo de ventos, mares, árvores, rugas. Teria, assim, toda a natureza em promessa. Me alimentaria de uma espera de 100 anos para voltar para cá. Caminharia muito, com o cuidado de ser gentil com quem cruzasse o caminho, convidaria o bibliotecário do vilarejo para uma cachaça no final do dia e jamais ligaria o gerador. Em outra quarentena me jogaria no tempo. Talvez chegasse cansado nesse século XXI, mas, em calçamento com buracos, as malas de rodinha não servem para nada.
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Diário do entre-mundos 38

Em 2016 o Clint Eastwood dirigiu um filme sobre uma aterrissagem forçada no Rio Hudson em Nova York. Em 2009 um Airbus decola de La Guardia e nos 3 primeiros minutos de voo perde as duas turbinas ao atravessar uma revoada de gansos. Do ponto de vista dos pássaros, um desastre. O comandante tenta voltar ao aeroporto, percebe que não vai conseguir e aterrissa no rio. As 155 pessoas a bordo se salvam com poucos passageiros com ferimentos leves.
O drama na história é o seguinte. A Airbus e Agencia de segurança aérea tentam provar que Sully (Tom Hanks), o comandante que dá nome ao filme, teria tido tempo de voltar para o aeroporto, evitando aterrissar no rio. (contarei a partir daqui o desdobramento da narrativa)
Vários programas de computador e simuladores mostram que Sully poderia ter retornado. De maneira hiper-realista, vemos a aterrissagem segura feita pelos pilotos com simuladores.
Entretanto, a hipótese daqueles que não estavam no avião é desfeita porque entre o choque com os pássaros e a decisão de retorno ao aeroporto, com uma abrupta manobra, se passam quase 30 segundos. Descobrimos que os pilotos que usam o simulador só conseguem voltar para o aeroporto porque já sabem que deverão fazer isso antes da batida com os pássaros.
Nos 30 segundos, a cabine de comando tenta entender o que aconteceu e verifica todos os procedimentos de segurança. No filme, estamos no tempo do cérebro tomando uma decisão. Um tempo intenso e inevitável.
O filme me fez pensar, nesse momento.
A quarentena é como os 30 segundos de Sully.
Não sabemos se teremos que voltar para o aeroporto, não sabemos o que aconteceu com o avião. Se mantivermos o sangue frio talvez dê para aterrissar em algum lugar. Mas, podemos, claro, fingir que não está acontecendo nada e mandar servir uns drinks para os passageiros, agitar umas bandeiras.
Esse momento de decisão é de uma intensidade física gigantesca. Pensar em centenas de variáveis ao mesmo tempo, ter um corpo para suportar a pressão.
“Como você sabia que não teria como chegar no aeroporto?” “Eu só sabia”, diz o comandante. Quando as variáveis são grandes demais, é preciso checar todas possíveis, mas, na hora da decisão é a decisão que coordena.
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3 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 37

A vida é feita de pequenos e grandes nós, circulamos entre esses nós. Imagine uma rede de um pescador, mas sem fim, com nós de tamanhos diferentes e espaços variáveis entre eles.
Uma relação de trabalho, um processo criativo com um grupo, uma terapia, uma relação amorosa, uma revolta com o vizinho, um grupo de estudos, a leitura de um autor, as noites de sonho, as relações familiares, etc. Circulamos entre esses nós colocando mais luz e energia em um, deixando outros nós se desfazerem. Entre os nós há uma circulação, um caminho, passagens que levam ressonâncias de um nó a outro.
O sofrimento está frequentemente ligado à ênfase excessiva que eventualmente colocamos em nó: “não consigo parar de pensar na minha respiração durante a pandemia”, “esse presidente assassino não me deixa pensar em mais nada”, “se não fosse meu irmão, minha vida seria completamente diferente”. Mas, também o grande prazer ligado à intensificação de um desses nós pode se desdobrar em sofrimento: a mãe que com o filho vai perdendo as circulações entre outros nós, colocando toda sua força desejante em apenas um nó e as ramificações que saem dalí: alimentação infantil, literatura e música para crianças etc. O mesmo pode acontecer na paixão.
O enfraquecimento de uma multiplicidade de nós da circulação entre eles, em algum momento cobra um preço. Uma saúde não é separa da possibilidade de uma máxima intensificação em um nó, sem o abandona da circulação entre outros.
É na circulação que deixamos de ser uma coisa e precisamos acessar outras formas de ver, viver, relacionar. É na passagem entre nós que levamos os afetos de um ponto a outro ou nos livramos do que nos intoxica. Nessa circulação há um espalhamento do eu na rede, uma saúde. Essa circulação entre os nós é intelectual, afetiva, sensível, mas também material. Efetivamente se sai de um lugar e se vai para outro.
O que acontece com isso tudo nesse momento? Vivemos uma instabilidade nos modos de manutenção e construção desses nós e das circulações que se dão entre eles. A pandemia traz uma instabilidade nos nós que de alguma formam garantiam um chão necessário para movimentos mais dispersos, mais excêntricos aos grandes nós. Nas relações de trabalho, de grana, de amizade, o que parecia relativamente estável, agora ganha uma suspensão, uma soltura. O nó se fragiliza.
A tendência pode ser um grande apego aos grandes nós: “Fulano nunca comprou tanta coisa como agora na quarentena”, “Beltrano voltou para a casa dos pais e se garrou nisso”, o nó do consumo ou das relações parentais ganham ênfase na tentativa de um chão, por exemplo.
A fragilização das múltiplas estabilidades da rede é um grande desafio para todos. Como se autorizar que nesse momento alguns nós se fragilizem sem a busca desesperada de uma rede com o mesmo tensionamento, com a mesma amarração? Como se autorizar uma rede mole sem buscar hipertrofiar nós?
Ao mesmo tempo, é nessa suspensão dos nós estáveis que se abrem outras possibilidades de circulação. Talvez não se volte para o mesmo lugar quando for possível ir. Dá medo, mas em mar revolto o manejo da rede não é nada fácil.
-- Diário do entre-mundos 37 --

2 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 36

Mais de 40 dias e uma normalidade acaba se organizando. O trabalho, quando possível, as tentativas de exercício, os telefonemas com pessoas que nos avisam que estão bem.
No país, o desastre óbvio de ter um admirador da tortura no comando, as gigantescas filas para retirar os 600 reais emergenciais, a desigualdade e violência social que se intensificam.
Mas, mesmo que uma “normalidade”se estabeleça, necessária para o dia-a-dia, para levantarmos da cama e darmos conta de mais uma jornada, tudo isso - o vírus - é de uma tristeza sem fim. Viver nos Brasil é ver essa tristeza se multiplicar sem limites e a todo momento se dar conta de que poucos têm meios materiais para segurar essa onda.
Às vezes, se agarrar à indignação com os fascistas, com a pessoa do supermercado que não usa máscara, com a estupidez de um comentarista de algum canal de TV, acaba nos ajudando a organizar uma energia, um foco de intensidade. Me pergunto, como manter essa indignação – horrivelmente renovada diariamente - sem abandonar a tristeza? Não que a tristeza seja desejável, não que devamos nos agarrar a esse afeto. Mas, antes, os poderes fascistas querem todas a tristeza para eles. Para isso não param de multiplicar a própria pandemia, se apropriar dela como fonte de mais mortes. Até a tristeza global que essa pandemia traz esses poderes querem domesticar, querem organizar no ódio, para que nada novo possa sair do que nos acontece.
Pessoas mascaradas, ar pesado, ruas vazias, distância dos corpos. O sempre tão belo mês de abril no Rio de Janeiro acabou como se os dias esperassem pessoas e vozes, corpo e festas, como se a leve brisa nas árvores esperasse gargalhadas que as movimentassem de verdade.
Talvez esse esboço de reflexão seja movido pela torta vontade de não entregar as forças que resistem à tristeza desse momento aos poderes de sempre. Se fazemos um grande esforço para mais um dia, como fazer com que esse esforço não se estanque no muro da destruição dos imbecis do poder? Como ter a tristeza por perto, o que parece inevitável, sem dobrá-la, sem colocar nela todas as nossas forças, sem domesticá-la nos afetos que já conhecíamos?
-- Diário do entre-mundos 36 --

1 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 35

Como o F*da-se a vida de outro dia, descobri um pouco mais dessa profissão contemporânea: os influencers. No caso de Pugliese e sua irmã, Marcela Minelli, aquela que em seu casamento várias pessoas foram contaminadas de Covid, uma boa parte de vida é vivida para ser relatada para seus seguidores.
Cada jantar, creme nas pernas, banho de mar, troca de lençol é transformado em um evento associado a uma marca parceira. No Instagram de Marcela Minelli há inclusive uma foto do casamento com várias crianças em que se pode saber as lojas das roupas, clicar nos pimpolhos e cair nos sites. Um modo influencer de trabalho infantil.

Vida e consumo se confundem e, para isso, a câmera selfie tem um uso singular. Na viagem de Marcela para cumprir lua de mel/quarentena nas Ilhas Maldivias, ela e o marido usam os vídeos selfies para se comunicarem com seus seguidores. A todo momento estão juntos conversando com pessoas imaginárias – pessoal, gente, galera, lindos.
A câmera é segurada com o braço esticado, mais alta que a cabeça e de maneira que se possa ver o máximo do corpo sem perder o fundo. Do outro lado dessa câmera-influencer há um público, um espectador, um follower. A câmera é recorrente no cotidiano em que tudo deve ser filmado. É com ela que se garante mais seguidores e mais marcas parceiras, aquelas que pagam para fazer parte do dia-a-dia e faturam se desligando dos influencers se eles degringolam.
No vídeo da viagem do casal o efeito dessa câmera é impressionante. No momento em que eles colocaram a câmera no chão, para gravar uma sessão de yoga ou massagem, não me lembro, a presença daqueles olhares vindos do alto, que tudo acompanham, sedentos por mais banalidade, por mais consumo, não desaparece. A vida do casal é então tomada por uma instância superior ao qual eles devem prestar contas e se exibir sem parar.
O jogo se inverte. A câmera que documentava o cotidiano passa a domesticá-lo. Os seguidores deixam de ser passivos olhares que devoram uma vida idealizada e se tornam organizadores da vida alheia. Talvez não sejam eles os verdadeiros influencers.
Se nas primeiras imagens do casal em um hotel elegante sobre as águas transparentes temos a impressão de observá-los, depois de muitas câmeras-influencers temos a impressão que os controlamos. Os influencers passam assim a se dirigir sempre para nós, olham sempre para algum lugar vago no alto e a curta distância, esteja a câmera lá ou não, falam com frequência com o pessoal, mesmo se estão sozinhos. Você falou comigo? Não amor, tava falando com a galera.
Ali no lugar da câmera se materializa o poder, uma força coercitiva que limpa toda a desordem do cotidiano, que organiza a vida, que molda os corpos, que dá as ordens. Ali no alto, para onde os influencers acenam no bom dia e no boa noite, se instala uma força de domesticação, um super-eu que tem ponto de vista e posição de câmera.
Talvez por isso a fala de Gabriela Pugliese tenham me impressionando. Justamente com essa câmera-influencer ela fala f*da-se a vida e destrói – pelo menos por hora – o poder dessa instância de controlar e submeter, poder de produzir centenas de gestos cotidianos dirigidos aos consumidores-controladores.
É claro que a influencer não está separa de nosso mundo. Ali no alto, para onde eles direcionaram suas vidas, ela encontra milhões de nós prontos a domesticar-consumir nossos influencers.
A nós, resta saber que disponibilidade temos para não domesticar vida alguma.

--Diário do entre-mundos 35 --

30 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 34

Latin wave
Lilja também já tinha testado positivo. Pegou a bolsa, o celular e esperou os outros 9 amigos chegarem na porta do apartamento para irem ao supermercado. Desceram os três lances de escada do prédio onde há três semanas viviam e encontraram a rua cheia. Grupos andavam como em uma entrada de um show. Ao chegarem no supermercado socializaram com as pessoas que se aglomeravam na porta enquanto Lilja e Bjorn faziam as compras. “Estou já cansada, está tudo muito lento, tem sempre alguém falando, a gente precisava de um lugar um pouco maior” disse Lilja enquanto pegava 5 vidros do mais barato picles islandês.
Lars, que está no mesmo apartamento, foi umas das primeiras pessoas a testar positivo. O vírus se alojava principalmente no fígado, produzindo efeitos parecidos com uma ressaca fortíssima. Lars vivia com a esposa e um filho e depois de dois dias de um mal-estar profundo, como se tivesse bebido uma garrafa de vodka, procurou o hospital e só depois de 6 dias, e de ter contaminado todo o hospital, foi diagnosticada a origem viral da “ressaca”. A inquietação dos cientistas foi maior quando se percebeu que no momento que o médico, dois enfermeiros e a esposa de Lars estavam no quarto, seus sintomas diminuíam.
Lilja passou os três carrinhos do supermercado e voltaram para o apartamento de dois quartos em que os nove amigos se protegiam do Sarqs 43. O nome do vírus fazia uma bem-humorada menção ao teor alcoólico da vodka que Lars acreditou ter sido responsável pelos primeiros sintomas.
Desde que o novo Sarqs 43 começou a afetar Reykjavik, as recomedações dos cientístas são claras. Jamais ficar com menos de 10 pessoas em um raio de 7 metros. Pouco se sabia ainda o que acontecia, além de que o novo virus se aloja no corpo humano, mas também se divide entre humanos. Ao circular entre contaminados, o vírus se dissolvia. Se um contaminado se isolasse, se ficasse fora da aglomeração, os sintomas voltavam intensamente e deixavam de ser uma pequena euforia e relaxamento.
Doze casos na Espanha, três em Nova York e centenas em todo norte na Europa. Desde que a infecção viral foi identificada na Islândia, há quatro semanas, o Sarqs já cruzou o oceano e começa a causar pânico nos países que ainda estão tendo que fazer isolamento social por conta do Covid 19. Como conciliar o isolamento com a hipersocialidade que o Sarqs 43 exige?
Em Oslo e Copenhagen, devido ao alto índice de contaminação, os cinemas estão operando 24 horas, os jogos da terceira divisão do campeonato de futebol estão lotados, as casas noturnas e bares abriram espaços de balada-office e todos os encontros a dois como psicanalise, confissão e sexo estão tendo que encontrar alternativas.
“O mundo não suporta mais tantas restrições, e agora isso”, disse o prefeito de Nova York sem poder sair de seu apartamento lotado. No Brasil, uma empresa já começou a cadastrar moradores de rua para viverem com famílias em Higienópolis, Jardim Pernambuco e Pampulha. Ao mesmo tempo que o mercado imobiliário informa que os preços dos apartamentos em Copacabana já começaram a subir.
“Nada será como antes”, diz a pensadora sueca Ingrid Swedenborg. Os suecos pouco se tocavam, mantinham sempre distância uns dos outros, tinha orgulho de suas casas confortáveis afastadas dos grandes centros e em contato com a natureza. Agora estamos vivendo próximos uns dos outros. Isso muda nossa percepção, nossa relação com o olfato, como tato.” Na mídia local, o Sarqs tem também sido chamado de Latin wave, por conta da diferente relação entre os corpos que o virus vem produzindo.
No espetáculo a mudança não é menor. Para alívio de muitos os stand-ups desapareceram. Na música, as grandes formações predominam. Lilja mesmo, suspendeu seu ensaio para um solo de dança que vinha criando e está se dedicando mais intensamente à capoeira.
Cansada, voltou para casa no final das compras, riu muito no caminho com os amigos e exausta deitou de conchinha com mais 4 em sua cama King, infelizmente em falta nos estoques das principais lojas.
-- Diário do entre-mundos 34 --

29 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 33

E daí? Pergunta Bolsonalro quando questionado sobre as quase 500 mortes de ontem.
Dai que para entender do que estamos falando você teria que ter duas sensibilidades.
A primeira de que a vida importa. Mas já sabemos há muitos anos que o que importa é o gozo com a morte.
A segunda é mais complexa. Bolsonaro é um negacionista. Transforma a história em um problema de opinião. Tudo pode ser relativizado, tudo depende de um ponto de vista.
Em 2020, o negacionista olha para a ditadura e se autoriza a dizer e a criar o que quiser. Para que isso seja possível, para que o cinismo se efetive, é preciso olhar a ditadura como um bloco total sem vidas.
Quando nos aproximamos do que se passava com cada família que perdia parentes, como cada pessoa que tinha que deixar o país, com cada perseguição, com cada sessão de cinema proibida, com o medo cotidiano e com cada torturado, não há história que possa se livrar das pessoas. Não há história que se torne apenas um nome a ser defendido em um carro de som em Brasília.
O negacionista só pode existir se nega que o grande evento, o grande marco histórico, é formado por uma infinidade de vidas que não estão nos holofotes.
Ao perguntar "E daí?" Bolsonaro mata uma segunda vez os que sofrem. Depois de mortos pelo Covid e pela incompetência fascista desse governo, são mortos porque devem ser eliminados da história. As formas de vida, de moradia, de saúde, as desigualdades, as formas de trabalho e alimentação, o transporte, tudo isso eliminado para que se possa retirar da história tudo que constitui cada uma das vidas perdidas.
A segunda sensibilidade é simples na verdade. As pessoas existem.
Um mundo sem vida e sem pessoas, e daí?
-- Diário do entre-mundos 33 --

28 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 32

F*da-se a vida. Foi essa frase que Gabriela Pugliese fez circular em vídeo para os seus milhões de seguidores. A frase é emblemática. Gabriela capta um ar dos tempos. Enquanto somos avisados que precisamos nos cuidar, que não devemos ter contato social, Gabriela junta os amigos, faz uma festa, bebe e, em meio a alegria de viver diz, f*da-se a vida. “Fui irresponsável e imatura” disse ela se desculpando. É verdade, foi. Mas, não é isso também que temos ouvido de todos os lados? Bolsonaro, Teich, Trump, saxofonistas de shopping, etc, talvez com menos clareza que Pugliese, mas com força de influencer bem maior.
Pugliese tem uma profissão singular. Ser influencer é viver e consumir para que seus seguidores possam ter um parâmetro de como viver-consumir. Pugliese faz de sua vida o seu trabalho. Viver é estar pronta e disponível para os olhos dos outros. Viver e consumir para entregar ao público normas, regras, produtos.
Subitamente, Gabriela derrapa feio. Erra. Mas como sua vida é para fora, para as redes, ela não tem tempo de avaliar o que fez e quando se dá conta, aquela estripulia adolescente já não lhe pertence. A velocidade entre viver e consumir agora se volta contra Pugliese. Agora, quando ouvimos falar que uma vacina para o Corona pode demorar um ano e meio para ficar pronta, isso nos causa estranhamento. Mas, nesse mundo em que tudo é tão rápido, como assim, um ano? Pugliese não vive outra temporalidade fora da ação-postação.
Bergson, o filosofo francês, dizia que o cérebro é, antes de tudo, um produtor de intervalo entre uma acão recebida e uma reação. Nesse intervalo ele associa memórias, afetos, pensamentos... Na velocidade do F*da -se a vida, esse intervalo se foi. O erro de Pugliese é um problema de velocidade também.
Mas, a beleza trágica da frase de Pugliese é que ao dize-la, sua vida-consumo despenca. Dezenas de patrocinadores-parceiros desfazem seus contratos. Talvez nem tão parceiros assim. Ao desfazerem os contratos, as empresas emitem notas que são reproduzidas em grandes jornais – o Estado de São Paulo, por exemplo, reproduziu mais de dez notas na íntegra – e, mais uma vez, ganham grande publicidade com a vida de Pugliese.
A moça consegue então dar à frase uma dimensão performativa. Assim como um padre transforma em marido e mulher o casal que declara casado, Pugliese detona a vida quando fala a frase fatídica no meio da festa.
Mas que vida é essa que é detonada? Não seria a vida o contrário? Não seria a vida aquilo que aparece quando se perde o controle, quando se erra, quando não se dá conta de performar como o público espera? Não seria a vida aquilo que nos demanda sem as garantias de likes, compartilhamentos e objetos?
Assim, na mesma frase que destrói uma certa vida de Pugliese, uma outra aparece. Depois do vídeo, é a própria vida que lhe cai no colo. Agora os parceiros sumiram, as celebridades fazem notas destrutivas. “Gabriela, não estamos juntos”, avisam. É com esse excesso de vida que a moça foi dormir.
Junte-se ao Brasil Gabriela, sem “parceiros” endinheirados, só temos a vida mesmo para encontrar todos os dias.
--Diário do entre-mundos 32 --

26 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 31

No belo “A noite da espera”, de Milton Haton, há uma frustrada tentativa de uma sessão de cinema. Estávamos em 72, durante a ditadura, e o filme exibido seria “A morte de um burocrata”, do Alea. Antes de começar a sessão os espectadores são contados: 29. Há algo errado, percebe o organizador da sessão secreta, o dono da livraria. Apenas 28 pessoas tinham a senha. Havia um intruso, talvez um espião. A sessão é suspensa.
Se a sessão tivesse acontecido, como tantas outras que se esquivavam da censura, imagino o silêncio, a atenção ao filme, a importância cerimonial daquele encontro.
Gosto tanto dos filmes como do cinema.
Ir no cinema é deixar de lado o olfato, o tato, a mobilidade. Hoje, fazer um esforço para não escutar a pipoca do vizinho e desligar o celular de verdade.
Aprecio filmes longos, filmes que me colocam em larga suspensão do tempo. Quando saio da sala o dia caiu, choveu e parou de chover e não vimos nada. Mas essa experiência parece, bem antes da pandemia, já fora de seu tempo, fora da forma como as salas se organizaram, com baldes de pipoca e cadeiras com apoio para copos.
As salas de cinema, mesmo as poucas de rua, já tinham deixado uma certa experiência do cinema um pouco de lado. A ideia de que seremos muitos em silêncio e no escuro diante de um filme já estava bastante desfigurada por luzes com sinais nas paredes, fitas de led no chão e luzes acesas na primeira palavra dos créditos.
Com frequência tive mais prazer em alguma sala de cinema improvisada em uma escola. Ali, onde nada era adequado para a exibição de um filme se faz um enorme esforço para que isso aconteça. Por vezes os defeitos são mais interessantes que as qualidades. Nas escolas a dimensão coletiva e efusiva domina. Estamos do longe do espectador ilhado em seu pequeno consumo privado.
Na bagunça de uma sessão com crianças ou no extremo silêncio de uma cinemateca há o belo ponto em comum da sala de cinema: a experiência coletiva.
Ao enfraquecer a experiência, é um lugar que nos é furtado, proibido. É esse lugar do espectador de cinema que se dissolve. Em todos os lugares as telas gigantes ocupam a cidade no mesmo movimento em que o lugar do espectador de cinema se esfacela.
Agora, há mais de 40 dias, as salas estão fechadas e talvez muitos nem sintam tanta falta assim. De alguma maneira os cinemas vinham nos preparando para esse momento: “vou dar uma enfraquecida nessa experiência aqui pra quando vier uma pandemia vocês nem sentirem tanta falta assim”.
Mas, não seria isso que esse momento de isolamento está nos mostrando? Que certas experiências importam mesmo. Que certas construções sociais e coletivas são insubstituíveis. Que o empobrecimento da experiência produz um mundo pior. Quando essas experiências faltam só sobram as luzes acesas e a claridade das telas que nunca se apagam. Somos condenados a um só lugar. Não é isso que a pandemia produz?
Delirar uma pós-pandemia em que o silêncio é silêncio, que o escuro possa existir e que estejamos todos juntos em uma experiência coletiva, uma algazarra, talvez. Mas, sobretudo, um mundo em que as possibilidades de uma experiência sensível sejam cuidadas.

--Diário do entre-mundos 31 --

Diário do entre-mundos 30

Se você estava cansado da obsolescência programada de suas impressoras, celulares, computadores, etc, chegamos na fase da obsolescência não-programada.
Até o final do ano me mudo para Botafogo. Bairro com cinemas, livrarias, muitos bares, enfim, tudo que perdeu o sentido de ser. Botafogo se tornou vintage, uma espécie de Ouro Preto da era pré-Covid.
No supermercado, ocupado em quase sua totalidade por jovens entregadores que nunca pensaram em comprar salmão defumado, é toda uma forma de funcionamento que se torna obsoleta. A arquitetura dos supermercados é feita de maneira que, antes de achar o que você procura, você possa cruzar com 10 supérfluos. Pois, esse supermercado está obsoleto. O negócio é facilitar a vida dos entregadores e que eles possam achar o que precisam e deixar o supermercado o mais rápido possível para novos mascarados entrarem.
As empresas se adaptarão rápido às novas camadas de opressão.
No mundo em que as lives substituíram os shows, que a sala de aula parece uma antiga memória dos restos do mundo disciplinar, talvez sejamos nós mesmos que tenhamos nos tornado obsoletos.
Que isso aconteceria, era uma certeza, mas veio rápido. Talvez as angústias e ansiedades que atravessam esses tempos sejam também por percebermos que as arquiteturas e organizações subjetivas que construímos até aqui subitamente se tornaram obsoletas.
Não é um mundo sem saída, mas o esforço para não sermos apenas um resto a ser cuidado pelo patrimônio histórico e cultural não será pequeno.

--Diário do entre-mundos 30 --

25 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 29

A fala do presidente com os ministros é desses momentos tristes e inesquecíveis de um país.
Todos em pé durante longos minutos, lutando contra o sono e cansaço, obrigados a sair de casa para compor uma cena em apoio ao presidente e se arriscarem ao contagio. Todos ali sem direito à fala, sem direito a se expressarem, torturados por um discurso egoico, paranoico, auto-
incriminante e profundamente constrangedor.
Antes de ouvirmos qualquer coisa, fica explicita a lógica do torturador: é preciso humilhar para mostrar poder. É essa a lógica de Bolsonaro. “Se vocês estão achando que eu não mando, mando sim: olha aqui, trouxe todos eles para serem humilhados na frente de vocês”.
O ministro da saúde, depois de receber a notícia de mais de 400 mortes por dia trata o fato como se fosse uma infiltração: “temos que ver isso ai!. Vamos ver se vai crescer”. Paulo Guedes, se é que era ele, já botou outra fantasia e, no governo em que a repetição de ideias falidas não faz mais sentido, ele já anuncia que não veste o mesmo uniforme que a tropa. Araújo, ao lado do torturador deve ter explicado que a solução é levar os comunistas até beira do planeta Terra e empurra-los de lá.
A cena era também uma forma de torturar o país. Durante a pandemia, Bolsonaro para tudo para fazer da sua pequeneza, da sua mediocridade, o espetáculo maior. A cena de ontem mostrava que o Planalto, com piscina fria, foi transformado em um bunker em que apenas os torturadores e delirantes terão espaço.
O delírio em si não é problemático. Já o torturador precisa ser impedido muito rapidamente.
-- Diário do entre-mundos 29 --

23 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 27

Essa semana uma querida amiga na França me escreve contando que a mãe passou três semanas hospitalizada com Covid 19. Momentos duríssimos. “Pela primeira vez fui atravessada pela possibilidade de meus pais morrerem”. Recebo essa mensagem no dia em que havia decidido que deveria escrever sobre saudades na quarentena. Creio que esse momento produz um estranho esgarçamento do tempo. A incerteza do futuro, a angústia dessa incerteza, encontra reverberações em passados mais distantes, em futuros que ainda não tínhamos imaginado. Assim, nas últimas semanas lembro de momentos de meu pai, morto há mais de duas décadas, como raramente faço. Como se essas ondas para o passado trouxessem essas memórias, as saudades. Momentos de instabilidade subjetiva parecem produzir essas buscas por linhas organizadoras, por afetos significantes e intensos, por vezes envoltos em nuvens de esquecimento e distância. Talvez estejamos também experimentando o que é ser idoso, estar em casa e ter nas memórias todo um campo de exploração. “Na idade em que estou não é hora de começar nada muito novo”. Essa dura formulação joga a vida para o vivido.
Esses fragmentos, não sei se são sobre saudade, mas sobre novas linhas estendidas no tempo que esse momento entre-mundos nos força, ou convida, a criar. Talvez seja com elas as possibilidades de um futuro. 


-- Diário do entre-mundos 27 –
Ps. A mãe da minha amiga se recupera em casa.

22 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 26

Sobre Bolsonaro e seus apoiadores, tudo parece ter sido dito, ao mesmo tempo que as palavras parecem irrelevantes.
Algumas ideias aqui aparecem em diálogo com Torturra e Safatle.
Tornou-se corrente falarmos de dois traços fortes de se governo 1) A impossibilidade de uma relação racional com os lideres ou apoiadores 2) Trata-se de um governo que se sustenta na morte do outro, que se dá o direito de matar, uma necropolitica.
Sobre as dois traços precisamos considerar que é próprio ao capitalismo uma irracionalidade. Nenhum sistema sustentaria tanta destruição e desigualdade mortífera se fosse "racional". Assim, dizer: Ah, esses bolsonaristas são irracionais, é uma bobagem.
A racionalidade deles não tem os mesmos parâmetros que a nossa, ou a irracionalidade deles tem outras pulsões.
Já a necropolítica "tradicional", em seus projetos escravocratas e coloniais, tinha um viés económico e político em que a morte - do outro- fazia-se fundamental para garantir os ganhos e conquistas.
O que vemos com o bolsonarismo hoje é diferente. A morte é o fim em si. Nas recentes manifestações contra a quarentena - ou pró-Covid - a morte do outro é também suicidaria.
Os apoiadores de Bolsonaro estão surfando em uma linha de morte suicida, uma linha que se expressa em possibilidade de gozo com todas as mortes, inclusive a própria.
Vivemos um governo que atua como serial-killer que invade uma escola atirando em todos e pronto a se matar no final.
Qual a possibilidade de política com um grupo que surfar na morte em tempos de covid?
Já vimos que os argumentos pela vida ou económicos são irrelevantes.
Aquele que tem tendência suicida poderia ter consciência de tal tendência e pedir ajuda. Entretanto, esse pedido se torna impossível dado o efeito de massa e a formação coletiva em torno do seria-killer. Se olhar no espelho não é uma possibilidade.
Seria possível então uma ideia de cuidado em relação àquele de deseja se matar?
Ou, como desarmar essa pulsão suicida que deseja tudo levar à morte?
Sem racionalidade pela vida ou económica, apenas a própria vida como força, prazer, invenção e alegria pode desarmar a tristeza do serial-killer.
Talvez uma utopia, ou a morte.
-- Diário do entre-mundos 26 --