Apresentado no Festival de Tiradentes.
1
Derrubar um muro. Assim começa o filme.
Derrubar um muro que no início é só parede, só tijolo, marreta, força física.
Muro derrubado, é preciso um encontro para
voltar ao mesmo lugar. Agora, não mais parede, mas um túmulo. Não mais um lugar
qualquer, mas um cemitério revelado nos planos abertos da última sequência. Não
apenas a força corporal, mas um corpo afetado, sensibilizado pelo encontro, por
um afeto, pela amizade, pela morte.
2
Nesse trajeto – da
força física que derruba a parede ao corpo afetado - o filme segue duas linhas.
Uma que nos dá elementos para o gesto final do personagem; outra que não deixa
que nenhuma dessas linhas tenha pregnância suficiente para justificar o gesto
final: a entrada do personagem no túmulo.
A morte do amigo é a gota d’água, mas o
filme opera como se o copo cheio fosse o mundo todo.
Não sabemos a história desse homem que chega
de um lugar desconhecido, que pouco fala, que mantém os braços cruzados e que
com o olhar se esquiva de ameaças que desconhecemos. Mas, desde o princípio,
sabemos que é pobre – o que é uma ameaça suficiente para o temor. Ele cata
latas e tenta trocá-las por um café. Café que, aliás, atravessa todo o filme. É
o café que ele busca, é o café que é primeiramente compartilhado com o amigo Zé
Grande, é com um café na mão que ele descobre a morte do amigo.
Andarilho, aquele que faz do caminho o fim,
acaba por ser acolhido com um amigo, com café e uma casa de tijolos com o
buraco no lugar da porta. Ele encontra uma mulher sem que saibamos até onde vai
o envolvimento, vaga em bares ou se revolta contra a expropriação do campo de futebol,
sem que esses elementos realmente efetivem a gota d’água.
Algo se passa com esse homem, com o encontro
e com sua vida, mas nada no filme parece querer fazer passagem entre o que se
passa com ele e o que poderia ter causado esse “novo lugar”, material e
simbólico, da última sequência. O encontro com o treinador de futebol de várzea
é afetivo, protetor – de ambos os lados – mas para esse homem sem história – pelo
menos sem uma história que conheçamos – para esse homem sem território, sem
pertencimento e sem lugar, algo desmorona.
A gota d’água, o limite, o transbordamento
parece estar em qualquer lugar.
O mundo narrado no filme passa a ser o mundo
do desabamento iminente. Para construir isso, a opção do filme é silenciosa,
corporal e não histórica. A família de Zé Grande - encarnada no filho - o
engravatado ou a mulher que ele conhece no bar, nenhum desses polos narrativos não chegam a produzir um conflito que mobilize
o espectador.
No quadro e no extraquadro, algo está por
estourar, como o filme não nos diz exatamente o que, tudo parece compor esse
mundo no limite.
A presença do filho merece um parênteses
pelas opções fílmicas.
Na primeira sequencia em que escutamos a
conversa entre Zé Grande e o filho, a câmera é frontal a Edson, que está sentado.
Vemos seu rosto mas não vemos o rosto dos dois outros, o que enfatiza a escuta
mais que o conflito. Na segunda sequência com o filho, trata-se de um belo e
duro plano, narrativamente. Zé Grande está no hospital, com uma elipse dentro
do quarto descobrimos que Edson passou a noite com ele. Corte para o corredor,
o filho vem do fundo, entra no foco e logo entra no quarto; sem corte Edson
sai; sem corte ele espera do lado de fora até que o filho de Zé grande saia. O
plano-sequência nos dá a dureza da brevidade do encontro entre pai e filho,
depois da noite de Edson cuidando do amigo.
Corte
Aqui entro com outra perspectiva
Mais contextual, mais próximo das questões
política contemporâneas e também dos debates que vivemos.
Diria que essa cena do desmoronamento iminente
– pessoal e coletivo – se confronta com o contexto do país.
Das mais interessantes discussões que essa
mostra e o contexto tem nos trazido é a pergunta: quanto podemos confiar no
espectador no atual contexto? Como podemos suspender a ação e o discurso se
temos uma questão política? Quanto devemos organizar as imagens de modo que
elas enunciem o que desejamos? Quanto podemos manter o inimigo – ou tudo que
faz uma vida desmoronar – no fora de quadro?
Essa perguntas rondam, nos assombram e talvez
minha resposta – provisória e instável – é que à uma poética não se pode exigir
nada. Talvez apenas uma coisa, que parta da capacidade do espectador,
capacidade intelectual e sensível. Sem isso, partimos de uma desigualdade que
não sabemos quando a recuperaremos. (ver o Espectador Emancipado) A fala autoritária, seja ela de esquerda,
direita, feminista ou libertária é, antes de tudo, autoritária, ela se une aos
piores poderes, aqueles negam o outro para impor vontades, ordens, morais.
Mas os inimigos existem. Estão ai devorando
nosso pensamento. Estão ai matando.
Esses dias – com o filme - foram então
ocupados por essas perguntas, no limite uma dúvida sobre o filme e sobre minhas
próprias apostas.
Até que ponto o inimigo pode estar no fora
de quadro, ou ser apenas levemente evocado? Até que ponto a não-historicização
nos mobiliza em relação à esse universo frágil, de pessoas pobres, entre
opressões? Até que ponto o silêncio e uma dimensão simbólica podem manter a
força de termos na imagem essas fragilidades existências que estão no limite?
Até que ponto podemos manter essa aposta radical no espectador? Minha resposta,
ainda que provisória é: que sem essa aposta na sensibilidade e na inteligência
do outro, é o cinema que não vale a pena
Diria, para encerrar, que o filme acaba por harmonizar
o que narra com sua forma. A amizade dos personagens é mais que uma amizade
entre pessoas, mas um princípio de confiança e atenção ao outro. É isso que os personagens
vivem. E é com esse princípio de confiança e atenção que o filme se dirige ao
espectador.