14 de nov. de 2011

Em defesa da obra às obras: Carta/comentário sobre "Em defesa da obra" - Revista Piauí #62, por Bernardo Carvalho.



Em defesa da obra às obras
Carta/comentário sobre o artigo Em defesa da obra publicado na Revista Piauí de novembro de 2011 por Bernardo Carvalho.

Prezado Bernardo,

            Seu artigo na Piauí Em defesa da obra é importante. Trata-se de uma organização de ideias que vemos espalhadas aqui e acolá, mas defendidas com menos brilhantismo que o seu.
            Partindo dos mesmos problemas, gostaria de pensar alguns pontos. Teu artigo parte do princípio que os autores existem, que eles fazem obras, vivem vidas e que essas obras e vidas são hoje disputadas pelas grandes corporações da internet que desejam tudo publicizar e obter lucro, ao mesmo tempo em que encontram justificativas para isso na própria lógica de exposição do universo privado e das celebridades que atravessa a internet.

A mediação produtiva
            Se organizarmos esses problemas entre obra, direitos e internet da maneira como tu fazes, estamos partindo do princípio que a internet – redes sociais, blogs, etc – é apenas um meio. Ou seja, algo se produz no privado: as vidas, as obras e todos os processos subjetivos em que os sujeitos estão engajados e, depois, em um segundo momento, isso é exposto, se transforma em opinião ou se entrega à lógica das celebridades. Pois, essa separação entre o lugar em que a vida se faz e o lugar em que a vida se publiciza atravessa teu artigo e produz desdobramentos inevitavelmente duvidosos.
            Quando nos deparamos com problemas subjetivos, econômicos e políticos em relação à internet, me esforçaria em pensar o mundo que ela possibilita, os processos subjetivos e políticos que ela engendra e não vê-la como um meio para transmissão daquilo que existe.
            As vidas alterdirigidas, como as denomina a Paula Sibília no Show do Eu, não são apenas participantes da lógica das celebridades. Felizmente acho que esse quadro não é tão simples. Diria que essa dimensão pública da vida é freqüentemente atravessada por novas formas de produção de comunidade, de engajamentos, de produção comum, de organização de trabalho, de invenção coletiva, de problematização das centralidades de mediação, de acesso e compartilhamento. Se retirarmos essa dimensão produtiva em que as vidas estão engajadas com as obras, com os outros e com computadores em rede, continuaremos pensando a internet como um meio em que o que acontece ali não é produção e onde as empresas – Google, Facebook - operariam dentro da mesma lógica de centralidade, hierarquia e exploração que os meios de comunicação tradicionais.
            Note, por exemplo, o caso das revoluções árabes, ou dos recentes movimentos políticos em diversos lugares do mundo. Uma coisa seria dizer: Toda a revolta estava dada, toda reflexão estava feita e, pela internet, os grupos se organizaram. Pois, acho que não é apenas isso. A internet não organiza o que está dado na rua, há uma relação muito mais complexa, sem dentro e fora da internet, nesses casos. Com a internet se possibilitou ali um modo de ser na política, também. Não sei se me acompanhas, mas é nesse sentido que eu diria que a questão do público e do privado precisa ser vista. Não apenas tornando público o que estava no privado, mas produzindo-se formas de ser que transitam entre dimensões públicas e privadas da vida, trazendo rearranjos para ambas. Uma certa espetacularização da vida, de maneira alguma, significa que toda a vida está espetacularizada, que ela foi consumida pela exposição. Tendo a achar que o mistério não se desvenda de maneira tão banal. Entretanto, tens razão, estamos diante de novas formas de colocar a vida em público, no século XX essas formas variaram enormemente e em muitos casos foram decisivas para grandes conquistas políticas, os movimentos das feministas e dos gays viveram essa tensão. Talvez uma parte da inquietante presença das vidas nas redes sociais, que você chamou de narcisismo, passe por uma profunda problematização das formas tradicionais de representação, das formas de inscrições dos sujeitos na cidade, interrogando esteticamente lugares de fala e possibilidades sensíveis. Definitivamente, não eliminaria essas possibilidades para pensar o que acontece hoje nessa tensão entre o público e o privado e, conseqüentemente, em relação à produção e a fruição estética.

A nostalgia das centralidades e das hierarquias
            Outra dicotomia com a qual guardo significativa distância é expressa na sua frase: “Hoje temos acesso a tudo, mas sabemos cada vez menos distinguir uma coisa da outra”. Nosso problema seria então ter perdido as formas conhecidas de mediação, de hierarquização. Digo perdido porque seria absurdo acharmos que na internet não se inventa formas de julgar o que é bom, o que deve ser lido e visto e o que não deve, o que não significa que essa mediação é melhor que outras. De um modo geral, um grande esforço das grandes corporações da mídia é manter na internet a mesma partilha e a mesma mediação de outros meios. Por isso, as Tvs disponibilizam seus programas no Youtube, investem em sites e proíbem que em uma novela para adolescentes se diga Facebook. Mas o que é perturbador -  para eles - é que as redes sociais tem pautado os mediadores tradicionais. [1]
            Uma das separações/hierarquizações que propões é a separação escola/internet e esta, meu caro, é falaciosa. Há uma inevitável complementaridade, tanto para alunos como para professores. Como professor, não imaginas como é prazeroso citar o Bill Viola, a Marcela Levi ou Leminski em uma aula na Baixada Fluminense e, na semana seguinte, descobrir que as imagens e sons foram baixados, vistos e discutidos pelos alunos.  Da mesma maneira, vejo meus filhos utilizando a internet para as maiores bobagens do mundo, ao mesmo tempo em que trocam partituras, compartilham reflexões, escrevem sobre futebol. Certamente não são conteúdos dos mais relevantes, mas definitivamente estão longe de ter com a internet uma relação passiva em que ela apenas entrega o que já conhecem. Se colocas que a escola é transmissão, regra e trabalho, enquanto que a internet é prazer, futilidade e repetição, perdemos o melhor dos dois mundos, uma vez que a educação e a cultura não estão nem em um nem em outro, mas em redes que estamos sempre nos esforçando para formarmos para nós, nossos filhos ou alunos. Redes que passam justamente pelas potências do outro, da diferença, de o que já inventamos em tantas áreas do saber, e essas redes, decisivas para os processos subjetivos e para uma comunidade mais rica, estão na escola, na rua ou na internet. Tendo ainda a acreditar que a democratização da internet não passa então apenas por um pluralismo discursivo: cada um em um canto falando e se expressando livremente.  A rede aqui é constitutiva de uma força nas maneiras de ser e sentir que formam comunidades e práticas que não são muito rapidamente transformadas em discursos. Separar a escola da internet, como se houvesse uma oposição, parece, antes, configurar uma nostalgia de uma centralidade ou de uma hierarquia pré-constituída, independente de qualquer práxis. A escola se torna assim uma metáfora para uma nostálgica de uma era em que os mediadores e artistas tinham seus lugares garantidos pelo estado, pelo mercado ou, na pior das hipóteses, pela mídia que atendia ao estado e ao mercado.
            A escola como metáfora é uma negação da literatura, justamente. Como nos apontou Rancière, a literatura se inventa como uma revolução poética em que se quebra a separação entre aqueles que faziam parte da história e os outros  - as pessoas comuns – que não tinham a vida reconhecida como dignas de serem contadas. [2] A escola como fato não traz em si nenhuma garantia, pelo contrário, ela é freqüentemente a forma de não se fazer política, de garantir que aqueles que não devem fazer parte da vida pública do país continuem não fazendo. As formas de modelização dos processos subjetivos são as mais diversas, na escola, na universidade, no consumo, na mídia e na auto-exposição, em todos esses lugares, os embates são cotidianos. Vou novamente lembrar do Rancière que, graças às tuas referencias, nos acompanha aqui:  A política se faz quando aqueles que são expulsos pela porta entram pela janela. “Isso é a política: encontrar uma maneira de fazer o que não era esperado que fizéssemos, estar lá onde nós não deveríamos estar. Sem isso, não há política.” [3]
            A defesa da exceção, como bem sabes, não pode se dar no sentido de se negar a possibilidade de um sujeito qualquer se proclamar artista. Essa é uma cara invenção do século XX, lá do seu início, e da qual ainda não tiramos todas as conseqüências. Pelo contrário, recentemente o presidente da França, Nicolas Sarkozy, declarou a necessidade de “redirecionar as ajudas em direção à excelência artística”, buscando formas mais claras de avaliar a diferença entre o bom e o mau artista, em uma evidente nostalgia da grande arte e dos critérios estáveis em que as formas de fazer estavam separadas das formas de ser. [4] Em nome da ordem e de critérios que hierarquizem quem deve ou não ser lido, a melhor opção não é optar pela abolição da democracia que, como bem nos explica, ainda, o Rancière, é necessariamente escandalosa, pois o sujeito sem nenhum título, que não é nem o mais rico, nem o mais inteligente, nem o mais premiado, ainda assim, continua fazendo diferença na comunidade.

Capitalismo de excessos
            Mas, voltemos às megacorporações, estas são efetivamente uma questão importante para pensarmos as formas de produção de valor hoje. Argumentas que elas são as principais interessadas na fragilização das leis dos direitos autorais e para isso marcas uma oposição do capitalismo do século XIX, que formula a noção de direitos autorais, e o capitalismo contemporâneo. A bem da verdade, antes de tudo o capitalismo. Pois, eu não faria uma oposição tão dura entre dois mundos: aquele em que os direitos autorais eram “bem vindos” e esse mundo do capitalismo informatizado. Vale lembrar um artigo brilhante da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em que ela discute a propriedade intelectual indígena e diz o seguinte:  “Na verdade, desde seu surgimento na Grã-Bretanha no início do século XVIII, os direitos autorais - os primeiros direitos de propriedade intelectual surgidos no ocidente - não foram instituídos para proteger os autores, e sim o monopólio de editores londrinos, ameaçados por edições piratas feitas por escoceses”[5]. Também esses - os editores ingleses - não eram produtores. Seria um equívoco cairmos na oposição que coloca interesses corporativos do capitalismo contemporâneo de um lado e autores de outro. As disputas corporativas não são nada recentes e se os autores são a parte frágil, como colocas, isso definitivamente não começou hoje.
O caso dos roteiristas brasileiros, que citas, é efetivamente exemplar. Eles exigem direitos autorais não para as cópias de um roteiro eventualmente vendido na internet ou nas livrarias, mas um direito que deve ser pago em cada sessão de cinema. Ora, vai aí uma compreensão muito equivocada do que é o cinema. Um roteiro em um filme não existe sem atores, montagem, fotografia, música, som, direção de arte, etc. A demanda dos roteiristas é descabida por que se tal lógica for levada a sério a prática cinematográfica se inviabilizaria, uma vez que todos esses profissionais teriam, também, que receber direitos autorais, todos eles trabalham com suas competências técnicas e artísticas e, na maioria dos casos, são pagos por isso.
            Ficamos com a questão, como defender a obra sem que se faça uma defesa do autor no sentido do proprietário alienado do mundo, sem deveres e apenas com direitos, como coloca o Godard. Como defender a exceção da obra sem trazer junto a exceção da fruição? O autor não pode defender o seu direito de ganho, com sua obra que vem sendo compartilhada indiscriminadamente, usando como justificativa os poderes mais danosos; a indústria médica que segura as patentes mesmo depois de ter efetivado seus ganhos ou o próprio Google que mantém seus códigos fechados.
            O risco, ainda, é usarmos a lógica das grandes corporações industriais para pensar Google ou Facebook, isso me parece um equívoco. O embate pela democracia e pela diferença que fazemos com essas corporações é muito diferente daqueles que tantos continuam fazendo com a Ford ou com O Globo. Isso não quer dizer que estamos em um mundo melhor ou que o capitalismo pós-industrial é menos nocivo que o capitalismo do século XIX - obviamente ainda muito forte. Mas, certamente não são as mesmas armas. Assim, diria que outra distinção carece de ênfase em teu artigo. A internet não é o Google e o Facebook. Se os filmes não são disponibilizados pelo Youtube, eles são disponibilizados por outras redes. Se os livros não são digitalizados pelo Google, eles são trocados por estudantes que acham importante não se submeterem a todas as regras das editoras. O Rancière, por exemplo, você deve ter lido em francês. Como ter acesso a esses textos no Brasil? Como defender a lógica que faz com que livros esgotados de autores mortos não possam ser reeditados por que a família não autoriza ou por que a editora que detém os direitos não tem interesse em reeditar? O Rancière mesmo protagonizou uma situação bastante ilustrativa da situação. Uma revista acadêmica brasileira, distribuída gratuitamente, pediu e obteve sua autorização para a tradução e publicação de um artigo. Quando cientes do caso, os editores franceses do livro onde esse artigo aparece, avisaram a universidade brasileira que o artigo não poderia ser publicado, depois de muito trabalho acabaram liberando apenas para a versão impressa, mas não para a internet. Nada mais anacrônico. O que fazer nesse caso? Respeitamos o autor, os editores da revista acadêmica e o público brasileiro e colocamos o artigo na internet ou obedecemos Berna e a OMC e mantemos o artigo restrito aos poucos leitores que terão acesso à revista em papel?
            Mesmo se a internet não é o Facebook, ele está aí com toda sua força, vendendo nossas formas de vida, vendendo nossa produção subjetiva – muito mais que nossa privacidade! Essa é a lógica do capitalismo hoje. Mas, se o que o capitalismo hoje tem para vender são nossas formas de inventar a vida, seria excessivamente redutor acreditarmos que tudo que inventamos é capitalizável, que nada escapa e que tudo se transforma em mercadoria. Se essas megacorporações fazem parte das formas contemporâneas de modular as forças vitais, eu tenderia a achar que há modos de engajamento e criação que se forjam com essas redes e que em muito as transcendem. O que estamos constantemente vendo é o contrário de sua apocalíptica conclusão. Somos estimulados – é verdade – à produção, o mundo parece por vezes hiperacessível, com poucas barreiras entre nós e os mais diversos poderes, o que é deveras cansativo, mas essa vida que se dá com as redes não é o privado nem algo recôndito até então trancado a sete chaves, mas formas de estar no mundo que podem ser mais democráticas, estéticas e políticas – sem garantias, é verdade.

A obra é uma fase, não é o fim

            As obras não estão em risco. O cinema é um exemplo disso, seja nos filmes fortemente interessados no outro, como os dois que acompanham a edição para assinantes desse mês da Piauí – Avenida Brasília Teimosa e O Céu sobre os ombros -, seja em obras onde o autor efetivamente está no centro, como no filme da Flavia Castro, Diário de uma busca, em cartaz nesse momento. Assim meu caro, compartilho contigo a preocupação com as obras, com o que elas trazem de desordem às formas como as estéticas e as possibilidades sensíveis dos sujeitos e das comunidades estão organizadas. É com essa perspectiva que a obra ou o autor não são o fim, mas parte de processos que os ultrapassam, parte da própria transformação da comunidade. Nosso problema é o que constrange a existência das obras e da presença que elas podem ter na comunidade, nesse sentido acho que nosso problema é menos o Google que a falta de acesso universal à banda larga, nosso problema é menos o Facebook que a política restritiva dos direitos autorias baseadas no acordo de Berna, nosso problema é menos a especularização do universo privado do que as estratégias que tentam estancar e empobrecer os processos de subjetivação coletiva; processos esses que se fazem com a escola, com a internet e com obras que já se desdobram em outras obras.

Meu abraço
Cezar Migliorin   






[1] Sobre essa questão vale ver o artigo de Ivana Bentes: Adeus aos Críticos? Jornalismo cultural e crise dos mediadores

www.trezentos.blog.br/?p=6468
[2] Rancière : Et Tant pis pour les gens fatigues. p. 578.
[3] Rancière :  Moments Politique, p. 215.
[4] Esse caso é narrado por Maurízio Lazzarato em Expérimentations Politiques, p. 157
[5] Manuela Carneiro da Cunha, Cultura com aspas p. 368

4 comentários:

Lilian disse...

clap, clap, clap

Ramayana Lira disse...

Ironicamente, para acessar o artigo do BC no site da Piaui, só sendo assinante.
Estou levando o artigo dele e o teu texto para discutir amanhã na minha disciplina de Estudos Culturais.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Olá, visitamos seu blog e se puder, conheça o blog que acabamos de criar, ocamaleaoaposentado.blogspot.com e nos siga também para que possamos trocar ideias. Pensando nos servidores aposentados das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior), e mais particularmente nas FCs (Funções Comissionadas), criamos o blog Camaleão Aposentado, para ser um espaço de discussão com a intenção e o compromisso de construir conteúdos responsáveis e elucidativos. Abraços!