Os editais para cinema e audiovisual lançados no final de dezembro vieram em
boa hora. Depois de um ano de transição, começar o ano de 2012 com novas
perspectivas é alvissareiro. Entretanto, gostaria de apontar duas questões que
não comprometem de forma definitiva os editais, mas explicitam os problemas do
MinC e da SAV atualmente.
Antes de expor essas críticas, é importante lembrar que no processo de
elaboração dos editais o conselho da SAV não foi consultado e a consulta
pública não deixou memória nenhuma. Ao pedir para a SAV o texto apresentado
para a consulta e a memória das contribuições recebi a seguinte resposta:
“Os textos dos editais disponibilizados na
página da SAv para o recebimento de sugestões, eram semelhantes ao material que
seria posteriormente publicado no Diário Oficial da União. As contribuições
enviadas foram analisadas e atendidas dentro das possibilidades legais.
Após
o término do prazo para o recebimento das sugestões (28 de setembro), os
conteúdos foram retirados do site.”
Ou
seja, aparentemente pouca coisa mudou e, bem mais grave, não há memória do
processo.
Em relação ao edital, a primeira surpresa foi com o edital para longas-metragens
que restringe os filmes a 70 minutos, que, como sabemos, não faz um longa. O
que parecia ser um erro na escritura do edital era, na verdade, uma manobra, ou
como disse a secretaria: “Essa foi a saída legal para darmos continuidade ao
Programa de Editais com os BOs.”
Essa gambiarra jurídica, para poder conseguir verba com o FNC e com Incentivo
Fiscal, apenas explicita a fragilidade institucional e de gestão de um
ministério que, depois de um ano, não conseguiu verba para fazer a política
mais simples e tradicional que se faz todo ano. Assim, é louvável que o edital
tenha acontecido, mas como aceitar um edital de longas que não contempla longas-metragens?
O problema se torna mais flagrante com essa cláusula do edital: “O apoio aos
selecionados está condicionado à existência de disponibilidade orçamentária e
financeira, constituindo sua aprovação no presente edital mera expectativa de
direito.” Ora, trata-se então de um edital que não necessariamente será pago?
Por melhores que sejam as intenções da SAV, trata-se de uma afronta aos
profissionais que trabalharão para que seus projetos sejam aprovados sem
garantias de que, uma vez selecionados, terão direito às verbas.
O mais sério de todos os problemas, entretanto, diz respeito às opções
políticas e estéticas presentes nos editais. As opções são centralizadoras,
elitistas e desconhecem, ou desconsideram, as formas contemporâneas de produção
e os modos que boa parte do cinema e do audiovisual brasileiro se organizou nos
últimos anos, em sintonia com um momento singular do mundo no que diz respeito
às possibilidades econômicas, políticas e tecnológicas.
1 – Só o desejo de privilegiar os maiores produtores justifica que o primeiro
aporte de verba do MinC para documentários seja um edital para 5 projetos de
500 mil reais, mais 100 mil em contrapartidas. Tal opção ignora os resultados
das quatro edições do Doctv, projeto que realizou em cada edição pelo menos um
filme por estado em parceria com a TV Brasil (1) e com resultados estéticos e
econômicos impactantes. Menos do que reivindicar o DocTv, ou um futuro FicTv,
para filmes de ficção, esse edital despreza um histórico de sucesso e um
contexto que demanda descentralização e democratização. Seria importante que o
MinC justificasse essa opção.
2 – Os editais para longas e curtas definem os formatos que as imagens devem
ser captadas, ignorando que a atenção deve ser dada ao formato de exibição.
Esse sim definirá tecnicamente as possibilidades de circulação dos filmes. Um
filme captado em celular ou com imagens retiradas do Youtube, como o recente Fragmentos de uma Revolução ganhador do
FórumDOC 2011 ou como o filme de Harun Farocki, como o mesmo nome, não seriam
permitidos pelo edital. Novamente, trata-se de privilegiar um modelo de
produção em que o “padrão de qualidade” é mais importante que a qualidade, a
criação, o filme. Essa opção, novamente, tende a centralizar a produção e
elitizar os proponentes e em nada contribui para o cinema nem estética nem
economicamente.
3 – O edital para longas traz uma distinção importante entre estreantes e
veteranos, entretanto erra ao definir o que seria um estreante. Segundo o
edital, apenas diretores que já tenham “assinado a direção de pelo menos 3
(três) obras audiovisuais, dentre curtas-metragens de ficção finalizados em 16
mm, 35 mm ou fita HDCAM, séries e/ou documentários para televisão” estariam
aptos a concorrer. Isso significa que aqueles que fizeram curtas em outros
formatos digitais ou um ator que atuou em 10 longas, não seriam habilitados
como proponentes. Trata-se de, por um lado, uma opção pela centralidade
dos grandes formatos, por outro um desconhecimento da própria formação de um
diretor que, muitas vezes, acontece na prática com outras artes ou na prática
de outras funções, no próprio cinema. Para defender certos diretores o edital
acaba prejudicando o cinema.
4 - Parece
importante ainda que a SAV justifique o edital para roteiristas dentro de uma
política para o cinema brasileiro. Se o objetivo são os filmes, por que não
ampliar para projetos de filmes em geral, o que frequentemente parte de
produtoras e coletivos. Esses projetos não necessariamente partem do roteiro.
Tal como está, o edital para roteiros é importante, mas define excessivamente
um formato de obra.
O mesmo
acontece com relação ao roteiro no edital de “longa”, em que são pedidos
roteiros de no mínimo 70 páginas. Tal opção é injustificável. Seguindo que
padrões a SAV entende que um roteiro de longa precisa ter no mínimo 70 páginas?
Poderíamos refazer a história do cinema com filmes decisivos que não chegavam
perto disso. Novamente, o incentivo à produção torna-se um incentivo a um
formato decidido pela SAV e baseado em um sistema de produção que pouco fala
sobre grande parte do que acontece no país hoje.
É preciso ressaltar que trago aqui minha preocupação em relação aos editais,
mas, sobretudo, em relação ao que o MinC e a SAV tem feito. Acreditamos na
necessidade de uma secretaria forte e que seja efetivamente propositora de uma
política para o cinema e para o audiovisual no Brasil, pautada pelo crescimento
do mercado, pela qualidade das obras e pela democratização da produção e do
acesso. O que estamos apontando aqui é que os editais, por mais importantes que
sejam, estão repletos de opções que não contemplam esses princípios.
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(1)
Importante,
por Max Eluard: O programa teve 4 edições no Brasil e apenas na última que a tv
brasil entrou como parceira. Na verdade a emissora parceira do doctv desde sua
gênese foi a tv cultura, pode parecer um detalhe apenas, mas é
importante salientar que o minc (do pt) logrou uma importante articulação com a
tv pública de sp (do psdb) em prol da produção independente nacional e mais, se
associava às tvs públicas de todos os estados brasileiros, independentemente do
partido. Isso aponta para uma política pública voltada ao estado e não para o
governo.
Ps. Essas notas forma feitas com o auxílio de várias pessoas que nas
redes sociais discutiram o assunto.
Agradeço ao Mauro Reis pela leitura e sinalizações.
6 comentários:
Grato pelo lembrete, Cezar. E o mais importante é o que você está fazendo: não deixar essa importante discussão morrer.
Cezar, só pra apontar outra coisa incoerente: como podem pedir um roteiro de no MÍNIMO 70 páginas se o filme tem que ter no MÁXIMO 70 minutos?
Digo, concordo que o mínimo é ridículo, pois vários projetos não precisam de roteiros tão grandes. Mas supondo que se trate de um filme clássico-narrativo, onde a média tradicional é de 1 página por minuto de filme, como é possível colocar qualquer coisa nesse edital? O filme teria que ter EXATAMENTE 70 minutos, é isso?
Outra coisa muito estranha é a clásula que torna obrigatório que o roteiro (!) ou argumento de documentários esteja registrado na biblioteca nacional...como lidar?
Ótima discussão!
Vou me deter em comentários sobre os editais de documentários, por ter mais familiaridade com eles.
Acho os editais do Brasil engessados, não permitindo uma busca por experimentações na linguagem e/ou na estética. E os que queiram experimentar uma mistura de documentário e animação, por exemplo? Há uma produção considerável deste gênero(?) e festivais que abrem as portas para isso.
As regras dos editais me parecem mais uma fórmula matemática burocrática, que não condizem com quem quer fazer documentários que se desdobrem espontaneamente nos atos de filmar e editar, de acordo com a tônica do que se quer contar.
Se preferem ter ideias tão amarradinhas assim, deveriam lançar um edital que contemple a pesquisa, fato que ocorre em outros países.
E concordo em gênero, número e grau sobre a questão primordial ser no formato de exibição e não no de captação.
Enfim... são apenas as minhas sinceras divagações.
Abraço,
Ariane M.
Concordo ocm tudo isso postado. Toda hora mando e-mail pra eles para tirar duvidas. Estão de parabens!
Ninguém entendeu por que a experiência do DOC TV foi jogada de lado? Basta olhar a agenda de reuniões da ministra Ana de Amsterdam:
Agenda Ministra Ana de Hollanda
http://www.cultura.gov.br/site/2012/01/31/quarta-feira/
Quarta-feira 01 de Fevereiro
RIO DE JANEIRO
(...)
15h00 – Reunião com Sr. Cacá Diegues e Sr. Luiz Carlos Barreto / Cineastas.
Acompanha: Secretária Ana Paula Santana/SAV.
Local: Palácio Gustavo Capanema – Rua da Imprensa, nº 16, 2º andar – Centro.
Com esta, salvo memória ruim, já foram QUATRO reuniões com Don Barretone - grande defensor de que os recursos públicos só devam ir para "o cinema 'profissional' brasileiro (isto é, grandes produtores como ele) - sozinho ou acompanhado. Nâo achei nenhuma reunião da ministra ou da Secretária do Audiovisual com as entidades associativas e/ou com o conjunto dos realizadores de audiovisual do país - para o atual MinC e para o SAv. parece que eles não existem.
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