O que
é uma ocupação?
Por Cezar Migliorin
Carta lida no dia 7 de setembro de 2016 aos
estudantes da UFF que ocuparam o novo Instituto de Artes e Comunicação.
Só
posso começar agradecendo o convite para estar aqui nesse prédio e poder dar
uma aula no espaço que nos é prometido desde 2008, ano em que entrei na UFF.
Estar aqui hoje, com a ocupação de vocês, dá sentido ao esforço de muitos em
fazer esse prédio, da sentido às verbas destinadas para a expansão da
universidade. Ao mesmo tempo, quando vejo esse prédio sem janelas ou portas com
aparelhos de ar condicionado nas paredes, me dou conta como o absurdo está na
nossa porta.
Nesse
momento pavoroso do país, a invenção de um espaço político é das ações mais
importantes que podem ser feitas. Chegar aqui, ler o que vocês escrevem, é
perceber que há uma imaginação política inconteste. Uma energia e uma estética
que expressam a inquietação macropolítica – e ai estão os embates com a
instituição, com o estado, com o golpe – e expressam também as dissidências com
os modos de vida majoritários.
Nos
dias que antecederam minha vinda para cá, me lembrava das ocupações que
conheci, lia sobre vocês, pensava na universidade e me perguntava. O que é uma
ocupação? É claro que não darei uma resposta, mas o texto que segue é um
esforço nesse sentido.
Subitamente,
pessoas que não têm – ou não desejam - a necessária legalidade institucional ou
econômica para estar em um lugar, se organizam e dizem: este lugar nos
pertence. Não no sentido que gostaria capital -
com seus títulos de propriedade – mas apontando para o fato de que os
títulos que garantem o pertencimento deste espaço à este ou àquele, na verdade,
nada mais fazem que usurpar um teatro, uma universidade, um prédio, do bem
comum.
A
ocupação é assim, antes de tudo um duplo questionamento: 1) questionamento das
formas de legitimar a circulação e as divisões dos espaços em uma sociedade, 2)
questionamento dos títulos de pertencimento e, no limite, da própria noção de
propriedade.
Em
um movimento de ocupação o que parece estar em questão nunca é exclusivamente o
espaço ocupado. Não se trata de tornar-se proprietário do espaço ocupado, mas
de permitir uma circulação e um uso que os espaços proprietários não permitem.
No limite, trata-se de fazer do espaço um agente na imaginação política. Espaço
em que se imagina e se age fora de uma ordem que não para de definir os
possíveis para os indivíduos, cada vez mais separados de destinos coletivos.
A
ocupação tem o espaço ocupado como um epicentro necessariamente conectado com o
lado de fora. Uma ocupação é uma invenção de traços de conexão com pessoas,
instituições, poderes. Uma ocupação é o epicentro conectivo. Como força
disjuntiva, o espaço ocupado possui muros que estão ali para abrigar e não
separar.
Quando
um espaço é desocupado por pedido, violência ou cansaço, dois outros podem ser
ocupados mantendo a ocupação como uma perturbação do esquadrinhamento espacial
feito pelos poderes. Ocupar e fazer como as abelhas que distribuem os pólens
entre as flores quase sem querer. A insubordinação da ocupação não pode se
tornar uma subordinação ao território. Quem ocupa vive a ocupação para além dos
muros ou territórios. Ocupar é muito maior que o espaço ocupado.
Não
são paredes, tetos e portas que definem os espaços, mas as possibilidades
subjetivas que ele enseja.
Mas
não abandonemos os territórios. Eles são porosos ao que está fora, se fazem na
comunicação e vitalização de corpos e cérebros em contato. Território-corpo que
se inventa em espaços fugidios.
No
interior da ocupação – interior atravessado por tudo o que não é aquele espaço
– uma ordem está em constante transformação. O espaço demanda uma organização,
mas não é uma associação direta entre indivíduos e ações. A limpeza, a comida,
a comunicação não é feita por indivíduos especializados – ou terceirizados como
vemos nas universidades e escritórios – mas por sujeitos que não param de ser
uma coisa em dia, outra em outro. Uma
ocupação aponta para sujeitos que escorregam entre identidades, desorganizam a
ordem do especialista ou a verticalidade dos que mandam e dos mandados. Uma
invenção política passa pela intensidade que se esparrama com os novos arranjos
colaborativos.
O
espaço ocupado desorganiza a associação entre corpos e afazeres e cria laços de
cooperação em que festa, trabalho e amor não param de se entrelaçar e produzir
novas associações produtivas e políticas.
Quem
ocupa não é ocupante, ou se é, ser ocupante significa não ter identidade, mas
pertencer a um coletivo que antes de dizer o que é, se coloca sob o risco da
invenção/Ocupação.
Toda
ocupação inventam um espaço ao mesmo tempo em que inventa formas de vida. Uma
forma de vida que não pede autorização para agir, e mais que isso, diz que a
ação é possível. Um agir que configura novas formas de interação entre
sujeitos, instituições, imaginação e colaboração.
A
ocupação perturba: ela não tem uma finalidade limitada. Não se resolve uma
ocupação na negociação. Ela é o ponto fora do acordo. O ponto fora do consenso.
Por ser epicentro conectivo e ponto fora do acordo, uma ocupação não é jamais
uma luta por território. Antes de se lutar por um espaço específico, se luta
pela forma de ver, viver e dizer sobre o território. Se a luta fosse pelo
território, tal como se apresenta, uma ocupação se confundiria com a prática
proprietária e abriria mão do gesto intrínseco à resistência: a criação.
Não
seu ocupa para manter o mesmo, o já existente, o que o espaço é e os sujeitos
são, mas para fazer da ocupação um processo de criação. Processo em que a
invenção acontece quando sujeitos e espaços estão colocados juntos, no desafio
de viver e desfazer as coordenadas e funcionalidades do espaço quando ele
preexistia à ocupação. Sem criação não
há ocupação, sem desapego ao território a
ocupação é engolida pela lógica proprietária.
Tudo
o que os poderes desejam é que a ocupação diga: qual sua reivindicação? Claro,
esta é a forma ideal de controlar o desejo e a circulação de modos de vida e
potências que se criam com a própria ocupação. A ação política da ocupação é de
outra natureza - para ela ainda não há
lei, ordem, poderes que a representem. Levar a ocupação para a ordem da
representação é retirar dela seu acontecimento, é colocar a ocupação como
apenas mais um ator nas lógicas de poder em curso. É preciso se alimentar sem
perder a loucura.
Ocupar
é desregrar o visível e o experimentável em um espaço dado. Ocupar é
estabelecer com o nosso tempo uma relação menos constrangedora do que aquilo ao
qual fomos preparados. Não se ocupa com promessas de futuro, mas porque o
presente é ele mesmo intolerável.
Quando
tudo parece dominado, quando a ação parece impossível, é chegada a hora de
ocupar, uma vez que a ocupação é uma ação sem fim definido. Ocupa-se para
respirar, ocupa-se quando a ação está a beira do desmoronamento, quando o
individualismo que organiza o mundo perde o sentido e a ocupação vem retraçar possibilidades
coletivas com “eus” cindidos, rachados. Ocupantes não tem nome ou papéis. São
antes corpos coletivos, variáveis e intercambiáveis. A cada dia um líder, a
cada liderança um novo gesto.
Ao
mesmo tempo em que a ocupação institui um fora das ordens vigentes e dos
consensos reguladores, ela institui um dentro, uma força comum e coletiva. Todo
o risco de uma ocupação está na possibilidade de ela acreditar nesse dentro da
ocupação como dicotomia com o fora. Isso é o que desejam os grandes operadores
do poder: a dicotomia dentro/fora, lei ou desordem. A ocupação precisa estar
além dessa dicotomia, fazer da fronteira entre dentro e fora a sua casa. Fazer
escorregar a lei na justiça.
Ocupar
é imitar os que ocupam e transbordar nossa ocupação ao que é ocupável. É
apostar na dispersão de uma ação sem posse e multiplicação do que é comum. Ocupa-se por contagio e para contagiar.
Ocupa-se
porque os valores em curso estandartizam as potências individuais e de grupo.
Ocupar é desfazer a ordem dos valores. Um desfazer que antes de dizer quais são
os novos valores, introduz uma incomensurabilidade no que se produz – ajudas
aparecem de todos os lados, forças descentralizadas maiores que qualquer ordem.
Toda ocupação é um sem medida do que podem sujeitos e espaços no cotidiano de
suas invenções. É com o sem medida que se concretiza a transformação do
presente.
Vida
longa a todos que ousam.
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