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Prezado Luciano,
Um dos prazeres da TV é o zapping. Ser levado de
uma palavra a outra, operar por montagem, colagens de fragmentos sem nenhuma
continuidade no tempo ou no espaço, à exceção dos fragmentos estarem sendo
exibidos no mesmo momento. Em um desses cortes entre canais, sou levado ao seu
programa Lar doce Lar. A existência
do programa não me era estranha, os programas de massa nos chegam mesmo que não
os busquemos, o que não é de todo mau.
Se hoje reservo uma parte de meu tempo para te
escrever é porque o que vi me fez pensar intensamente em meu trabalho e,
também, me motivou a te convidar para que venhas conhecer um pouco do que
fazemos na universidade.
Quando uso a primeira pessoa do plural, não é
apenas por modéstia, mas por entender que há hoje uma importante reflexão no
Brasil sobre o cinema e o audiovisual e a relação com o outro, sobretudo com o outro
de classe, com os pobres. É sobre essa relação que gostaria de fazer alguns comentários.
Na verdade, essa é uma forte tradição da reflexão e da prática audiovisual.
Podemos dizer que uma considerável parte do cinema de não-ficção feita depois
dos anos 50 foi atravessada pelo questionamento que os realizadores se
colocavam sobre as possibilidades, sentidos e éticas produzidos na relação com
o outro, com o povo – como chamou Bernardet no livro de 86, Cineastas e imagens do povo.
Podemos dizer que essa é então uma carta-convite
para que te aproximes de um certo universo da prática e da reflexão acerca da
produção de imagens sobre homens e mulheres comuns. Pessoas que não fazem parte
do universo do espetáculo, que não compartilham o tom da linguagem dos grandes
meios ou que, simplesmente, não têm tempo para outra coisa que não a reprodução
de suas condições de vida.
Mas, deves perguntar, o que no programa Lar Doce Lar motivaria esse convite?
Como disse, o que vi me mobilizou em relação ao meu próprio trabalho.
A universidade é constantemente criticada pelo seu
isolamento, pela forma como os doutores falam apenas para eles mesmos, como se
a “a-vida-real” não existisse. Tal crítica não é infundada, porém, por vezes
esse isolamento é necessário, uma vez que para se fazer algum progresso nas
ciências, a dedicação a questões microscópicas, de pouco interesse midiático ou
instantâneo, é necessário. Felizmente alguns estudam as “negativas nos textos
de Platão” ou as oxitocinas.
Entretanto, tal isolamento por vezes é apenas uma forma de defesa, de não
colocar à prova o próprio pensamento. No caso dos pesquisadores de cinema e das
mídias contemporâneas, me parece que esse risco é menor, uma vez que os
trabalhos se dão imediatamente sobre objetos que marcam nossas formas de ser e de pensar hoje.
Quando assisti o teu programa gravado
em Parapuã, o isolamento da universidade me tocou. Me perguntava com sincera
curiosidade: o que aconteceu com o que se escreve há 50 anos sobre o
audiovisual que se relaciona com pessoas comuns, com o povo? Será que tantos
pesquisadores brilhantes escreveram só para si e para os colegas? Essas
perguntas se fizeram urgentes na medida em que minha impressão era de uma absoluta
distância entre o que se pratica no campo do cinema, sobretudo aquele ligado ao
documentário, e o programa que eu assisti. Claro que você também poderia se
perguntar: o que acontece com a universidade que ainda não incorporou a nossa
estética e a nossa bem-sucedida forma de fazer um audiovisual popular e rico?
Se me permites, vou pensar o Lar Doce
Lar a partir do
registro do documentário, uma vez que ali estamos diante de pessoas reais que têm
vidas antes do programa e continuarão a pagar as contas do final do mês e a ir
ao dentista depois que os caminhões e geradores a diesel da Globo deixarem a
cidade. Estamos no registro documental, uma vez que as pessoas vibram e sofrem
de verdade, ou seja, estão implicadas no programa como sujeitos.
Há um momento em Lar Doce Lar que me parece emblemático do isolamento do nosso
trabalho em relação ao que se faz no teu programa. Antes, porém, uma sinopse para
os que não conhecem o programa e lerão esta carta aberta.
Corrija-me se estiver errado, mas o programa
funciona da seguinte maneira: qualquer pessoa do Brasil pode escrever uma carta
para a Globo contando a sua história pessoal e fazendo a conexão dessa história
com a sua própria casa. No programa que assisti, uma dona de casa chamada
Marlene, ex-boia fria e ex-maratonista, tendo estado inclusive nas Olimpíadas
de Atenas, não conseguia concluir sua casa, em obra havia dez anos. Selecionada
pela produção, a casa de Marlene foi reformada pela emissora. O programa de mais
de 20 minutos que assisti no sábado acompanhava a entrega da casa, nova em
folha, à família de Marlene.
Destruir e modelar
Voltemos então a um momento que me parece dos mais
relevantes. Depois da casa ser entregue e acompanharmos a emoção da família e
as opções estéticas do programa para organizar e decorar a casa, chegamos ao
fundo do terreno onde, antes da reforma, havia apenas um quartinho.
O diálogo que acontece nesse momento é
especialmente revelador. O que surpreende é que ele possa acontecer de maneira
tão explícita e ser mantido na edição. Depois de Marlene e o seu marido
narrarem que foram eles que construíram uma parte da casa e que Marlene,
grávida de sua filha, “batia massa” para o marido, você se desculpa por ter
destruído tudo: "Eu peço desculpas por ter derrubado o trabalho de vocês". Na
continuação da sequencia, o diálogo explicita o que há mais duro na ação do
programa. Transcrevo na íntegra o diálogo que acontece depois que tu mostras
para o casal o banheiro nos fundos da casa:
Luciano - Gostou dessa parte
Marlene?
Marlene - Adorei.
Marido de Marlene - Você
acha que é simples, né? Simples, mas melhor do que o nosso.
Luciano - Não, mas é diferente.
O de vocês, vocês construíram os dois, com o dinheiro que vocês tinham; vocês
subiram os tijolos, não tem explicação, ali tinha uma vida inteira, tinha uma
poesia. A gente é um programa de televisão, a gente é a TV Globo, a gente vem e
faz. A gente tenta realizar o sonho da família, mas aquela casa que tinha aqui
tinha a história de vocês.
Talvez tua equipe tenha optado por deixar esse
diálogo na edição para explicitar, de maneira reflexiva, a violência da
presença da Globo naquele lugar. A tua consciência sobre o que a Globo faz é
certamente tão pertinente quanto o que diria qualquer crítico do programa. Tuas
palavras têm a precisão de constatar a violência e tornar obsoleta qualquer
crítica. Mas, mesmo assim, esse teu texto, me desculpe a agudeza da crítica –
que insiste, apesar de tudo - , não pode ser dito e editado sem uma alta carga
de cinismo. É como se a crítica que o programa poderia receber já tivesse sido
incorporada por ti e pela Globo, para que possas dizer: é isso mesmo;
destruímos a história, destruímos o trabalho dos outros, destruímos a poesia
porque somos a Globo e a gente faz.
Mas a nova casa é muito melhor que a anterior,
poderias dizer. É verdade, mas para que a nova ordem na vida dessas pessoas possa
se impor, o programa depende da enorme carência de seus personagens. Só na
grande carência os moradores da nova casa perdem o direito de manter uma
cadeira velha ou um almofada que destoe da decoração pensada pela Globo. Em cada lugar que teu programa encontrou
marcas pessoais e subjetivas, a produção conseguiu eliminá-las. Não se trata de
levar mais conforto para os mesmos sujeitos, poderíamos dizer, mas criar
sujeitos novos, com novas circulações, novos hábitos, como se explicita na
horta criada pelo programa, na churrasqueira e na hidromassagem, elementos que, além de trazerem conforto, colocam aqueles sujeitos em outro lugar nas práticas
de consumo.
Sabemos, com pensadores como Gilles Deleuze e
Lyotard, que é próprio ao capitalismo um fragilização dos códigos que organizam
as formas de vida, permitindo um movimento libidinal que impulsiona novas
formas de consumo. Nada menos interessante ao capital que identidades fixas e
imutáveis. Lar doce Lar parece levar ao limite essas desterritorializaçoes
subjetivas na adequação ao consumo.
O que insisto, Luciano, é que, para reformar a casa,
a Globo destrói um lar, modela espaço e destrói o território. No lugar do lar
se cria um espaço espetacularizado à imagem da emissora. Se esse movimento é
bom para a família, pelo menos inicialmente, ele não deixa de ser um gesto
violento, uma vez que desconsidera que um lar é uma construção de quem nele
mora e não uma imposição de quem vem de fora. Seria melhor nada fazer? Não, mas
é apenas a partir da carência do outro que a emissora pode ser violenta.
Excluir e isolar
Outra forma de filmar a entrega da casa me
chamou atenção. O programa utiliza pontos de vista da casa em que jamais
podemos ver o entorno. As outras casas do bairro não foram reformadas e, além
disso, foram obliteradas.
Não há contexto, não há comunidade, apenas
hiperconcentração no indivíduo.
O contexto que vemos é uma massa em forma de
auditório, impossibilitada por grades de entrar na cena e compartilhar a
alegria da Marlene, ou estabelecer alguma relação crítica. Para o programa só
existem dois sujeitos: aqueles que pertencem à família que conseguiu entrar no
espetáculo e “se salvou” e os outros que, infelizmente, não têm uma boa
história para contar e garantir uma ascensão social.
No primeiro programa sobre a Marlene, que assisti
no site da Globo, há uma edição com a fala de vários conhecidos em que se
enfatiza que Marlene merece o que está acontecendo com ela, que ela faz jus à
casa nova, por seu esforço e trabalho. Mas o que isso quer dizer? Que as outras
pessoas da comunidade não merecem? Não, o programa não diz isso. Entretanto, a
pergunta que deveríamos fazer é: quem não merece? Qual o ser humano que não
merece? Nesse sentido, a singularização de uma personagem como aquela que deve
ser contemplada e marcada com uma diferença faz o contrário da política. Se a
política pode ser pensada como esforços e tensões para o bem comum, aqui o bem
é privado, exclusivo. Nesse sentido, saem os cidadãos e entram os consumidores.
Elimina-se a comunidade e privilegia-se a diferença pela privatização dos bens.
Se politicamente houvesse alguma relevância no seu programa, a ação não seria individualizada, mas coletiva.
Talvez eu exija demais de uma emissão de TV, mas
uma vez que o programa se propõe a uma intervenção direta no real, esses
aspectos não podem ser deixados de lado. Quanto mais o programa faz por uma
pessoa, mais atrelado à lógica do consumo e da eliminação da política ele se
torna.
Se, por um lado, a
concentração em um problema individual desfaz a política e enfatiza o consumo,
por outro, essa concentração na história pessoal é feita de modo a tomar a
história pessoal e eliminar os sujeitos. Essa supressão do sujeito está
presente na maneira como a reforma é toda feita sem nenhuma ingerência das
pessoas que vão morar na casa. A Marlene e a sua família irão receber uma casa
infinitamente melhor que a casa inacabada que deixaram para trás, mas o gesto
do teu programa é baseado na eliminação das necessidades, gostos e expectativas
dos moradores da casa em relação ao seus lares.
Impressiona que a reforma não
seja apenas de ordem estrutural, mas estética, subjetiva. Trata-se de melhorar,
de acordo com a lógica do programa, o lugar em que se mora, mas também as
escolhas de como se mora. Para isso, o programa pinta paredes, coloca desenhos,
escolhe brinquedos para as crianças, entrega um iPad para um menino que ainda
não deve saber escrever. A nova casa não
é propriamente uma intervenção no lugar de moradia, mas a imposição de um mundo
sensível e simbólico.
Novamente, trata-se apenas de uma emissão
televisiva, mas que é atravessada por um discurso de justiça. “Todo atleta merece respeito”, ou “Temos
que tratar bem os atletas no Brasil”, tu disseste na abertura do programa. Deveríamos
insistir na pergunta. Quem não merece respeito? Quem não merece ser bem tratado
no Brasil? Percebe meu ponto, meu caro Luciano? O programa, por um lado se
coloca como uma emissão que faz o bem e, ao mesmo tempo em que reclama por
justiça, na sua prática e estética elimina aquilo mesmo que pode gerar alguma
transformação, seja para os atletas, seja para qualquer sujeito: a política,
substituída aqui pelo consumo individual.
Entrar na casa
Se historicamente o documentário traz como uma de
suas marcas a audácia de entrar na casa das pessoas, de Nanook a Edifício
Master, passando por clássicos fundadores do cinema moderno como Salesman, de Robert
Drew e Crônica de um Verão, de Rouch e Morin, -
caso não conheças esses filmes, fica aqui um novo convite, todos eles
disponíveis no Departamento de Cinema da UFF. No teu programa, são os moradores
que deixam as casas para depois serem recebidos pela produção, que já está na
casa quando os moradores chegam. Para poder filmar o rosto dos personagens, há
uma câmera que aguarda a entrada da família dentro de cada cômodo, explicitando
a quem, efetivamente, pertence o lar.
Caro, esses breves pontos são apenas algumas
observações de quem, por um lado, admira a possibilidade de uma emissão
televisiva falar para milhões e milhões de pessoas, pois é preciso talento e
competência para isso, mas que por outro, percebe múltiplos níveis de agressão
com as possibilidades de vida e com as possibilidades sensíveis das pessoas
retratadas. Uma agressão que é menos individual do que coletiva, uma vez que
faz de todo e qualquer mundo estético e sensível, uma reprodução de algo pronto
e pensado no Rio de Janeiro. A Globo
faz, é verdade, mas que pena que para isso os sujeitos precisem desaparecer, transformados
em narrativas espetaculares ou simplesmente deixados atrás das grades que os
separam da cena.
Podemos mais.
Vamos aos convites: no momento, temos um grupo de
estudos todas as quintas, no Laboratório
Kumã de pesquisa e experimentação da imagem e do som, no IACS (Instituto de
Artes e Comunicação) em Niterói em que, justamente, estudamos os gestos do
documentarista na abordagem e na relação com a diferença e com o outro de
classe, por exemplo. Nesse grupo vemos e debatemos filmes e trabalhamos com
textos sobre arte, cinema, antropologia e filosofia. Próximo encontro:
Dia 23 de Maio – conversa
sobre o livro de George Didi Huberman
– A sobrevivência dos vagalumes.
Seja bem vindo.
Meu cordial abraço
Cezar Migliorin
Chefe do dep. de Cinema e
Vídeo da Universidade Federal Fluminense
9 comentários:
Qual o horário do grupo de estudos?
Cezar, passei por aqui. Parabéns pelo vigoroso texto!
ufa, um suspiro de sanidade, valeu
Que conforto ler sua carta. Sempre achei violento e insano essa coisa de fazer sucesso em cima da miséria alheia. E a humilhação que essas pessoas sofrem pagando micos para conseguir de verdade a tal "reforma dos sonhos" ?... O que fazer com uma banheira de hidromassagem, em um lugar onde água é luxo, falta ou nem se tem?
O que mais me espanta são as pessoas acharem que esse programa realmente faz o bem, sabe?
Claro que ajuda um gato pingado, mas ele ajuda mesmo é a Globo ter sua audiência e ainda se sair de boazinha.
Prática de aquietar os possíveis inquietos e ainda garantir fidelidade...
Parabéns e obrigada mais uma vez.
Espero que ele pelo menos leia.
Abraço!
Excelente e urgente reflexão. E torcendo para que tenha repercussão!
Olá, Cezar.
Parabéns pela reflexão, pela pesquisa e pela (porque não?) audácia!
Acrescentando uma informação ao seu magnífico texto, se me permitir.
Como outros quadros do programa do Luciano Hulk na TV Globo, o 'Lar doce lar' funciona no esquema de temporadas.
Há algum tempo, ainda nas primeiras, havia uma diferença: a família saía de cena para a reforma da casa, porém um membro ficava para ser o "dono da obra", aquele que tomaria as decisões e exigiria as preferências da família.
Pois bem, vale refletirmos sobre os possíveis motivos que levaram a produção do programa a interromper tal prática para as temporadas seguintes. Será que um belo dia encontraram um "dono da obra" mais exigente e firme nas suas decisões, se tornando este o "terror" do canteiro de obras e da produção do programa?
Talvez esse membro fosse uma forma da Globo dizer que respeita a vontade do beneficiário do programa, mesmo que este fosse usado como mero personagem nos entreatos das 'historinhas' contadas. Será que um dia não saiu como planejado?
Hum... fica a divagação...
Primeiro, parabéns pelo texto. O arquiteto Marcelo Rosenbaum se incomodava com a interferência daquele integrante que ficava para supervisionar a obra. Tem um episódio em que isso é emblemático, em que essa pessoa não quer que seja pintada uma faixa que está prevista no projeto (era uma casa verde com uma faixa amarela, ou o contrário). Procurei e não achei, mas me lembro que houve uma tensão entre o arquiteto e o cliente por causa das interferências, e com certeza os contratos mudaram depois disso.
Seria legal sabermos qual é o limite da interferência do arquiteto e do cliente. Será que o contrato prevê atualmente total liberdade para fazer o que quiser na casa? Será que o contemplado tem direito a guardar suas tranqueiras em algum canto? Manter algum móvel com que tenha alguma relação emotiva?
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