Passei os olhos na entrevista da Viviane Mosé no Globo e não dei atenção, raramente seus comentários na CBN me provocam o pensamento – o que certamente pode ser um problema meu, não dela.
Como alguns amigos levaram a sério o que ela disse, resolvi voltar a entrevista e lí os dois primeiros parágrafos com mais atenção.
Logo no início há uma montagem perversa entre múltiplas violências que acontecem no mundo. Para fazer tal montagem é necessário esvaziar todas as cenas, todos os contextos, todas as relações históricas e olhar apenas para a violência, para uma parte, frequentemente mínima, do evento. Como num jogo fetichista, todo o corpo social é excluído e fica-se apenas com um elemento, no caso a violência.
Há nesse início da entrevista uma associação que vem sendo construída pelo Globo e que a entrevistada se dispõe a ligar os pontos: as manifestações são violentas e há uma violência geral nas ruas, logo a violência é dominante, precisamos agir em nome da sociedade – contra manifestantes, contra fortões que espancam bandidos. Feita a associação entre formas explicitamente fascistas de violência e estratégias de resistência à violência do estado, justifica-se assim mais violência do estado – agora contra manifestantes que saem às ruas por melhores transportes ou que arranham a imagem dos patrocinadores da Copa.
Há uma segunda colocação que merece alguns comentários
“Existe uma crise de valores, então todo mundo está violento” Sim, ela tem razão, há uma crise de valores, mas não sei se é por isso que “todo mundo está violento”.
Assim como fazem muitos psicanalistas conservadores, ela se põe a lamentar a crise de valores. Não creio que seja o caso. O que vemos no país com as manifestações é efetivamente uma crise de valores, mas estávamos satisfeitos com nossos valores anteriores à crise?
Um crise de valores é uma transformação nos modos como entendemos a sociedade, nas formas como aceitamos as divisões dos poderes, nas estratégias de regulação de quem tem direito a usufruir da cidade e do tempo; uma crise de valores é a abertura de uma infinidade de possíveis. É sobretudo no campo do desejo mesmo que essa crise atua. A crise é uma fantástica abertura para se imaginar outro mundo, outros valores.
Sim, vivemos, felizmente, uma crise de valores e é lamentável que o estado, o capital, e todos nós não estejamos à altura dessa crise e que não tenhamos a capacidade de materializar formas mais democráticas de participação política, mais justas de acesso às riquezas materiais e simbólicas que produzimos.
A crise está instaurada, agora, que resposta temos para ela?
Bem, a resposta que temos visto é frequente violenta: da grande mídia, do campo jurídico, do capital e infelizmente, do pensamento também. Quando tudo está para ser pensado, são essas falas que dizem; pare de pensar, há uma crise de valores e isso não é bom.
“Como sociedade, não se pode deixar a violência como está”, diz Mosé. É verdade. Mas talvez tenhamos que incluir essas outras violências no hall fetichista da psicanalista.
Em um segundo momento da entrevista há mais uma típica nostalgia conservadora das centralidades discursivas: Ah, como era doce o tempo em que podíamos tudo controlar e essa gente não ia para a rua com suas bandeiras retiradas da internet.
Mosé diz isso da seguinte maneira: “Ele (o manifestante) abraça qualquer uma dessas verdades prontas que aparecem na internet, defendendo aquilo de maneira rasa.” Ou, com outras palavras, o povo não sabe o que está fazendo, diz ela. Pois, a crise de valores é justamente essa, talvez o povo saiba – no próprio corpo, na vida cotidiana - , mas os valores da psicanalista não dão conta de perceber a obviedade: os valores que ela representa não são mais suportáveis; eis a crise.