Festival Brasileiro de Cinema Universitário 2010
Caixa Cultural - 30/08/2010
O evangelho Segundo Teotônio, 1984 de Vladimir Carvalho
A dificuldade em comentar esse filme está em grande parte na força do personagem.
A atenção precisa estar no detalhe, nas opções que podem parecer apenas "naturais" uma vez que se tenta documentar alguém, contando sua vida. Trata-se de atentar para óbvio, nenhuma vida está pronta para ser narrada, ou melhor, uma vida é uma narração com o real.
Guardo uma admiração pela obra engajada de Vladimir Carvalho. Uma obra que se engaja no que acredita, normalmente as boas causas - no meu ponto de vista, é claro -, uma obra disposta ao embate, um embate que Vladimir faz com as armas que tem mão, a câmera, a montagem. Nesse engajamento, Vladimir sempre se dedicou ao homem comum, aos pequenos gestos, ao trabalho, à forma de ocupar o tempo, mas claro, pautado por um aguçado sentido de liberdade, de resistência às opressões.
O evangelho Segundo Teotônio, é preciso destacar, se trata de um filme maduro, de um cineasta com mais de 20 anos de carreira e que se permite abordar um personagem difícil, sendo muito generoso com o filme e com o personagem. A marca de Vladimir aparece na maneira com que de identifica com Teotônio, pelo desejo de luta, um desejo amparado pelo desejo e curiosidade pelo povo. Também por uma liberdade desgarrada, freqüentemente quixotesca.
Como escreveu o Carlos Alberto Mattos: “O uso maciço da poesia e da música é outra característica destacada na obra do documentarista, que rejeita o purismo dos não-intervencionistas. Com isso, erigiu-se numa espécie de rapsodo, movido ora pela indignação, ora pela admiração, mas nunca pela curiosidade indiferente. Seus filmes operam no registro da empatia, deixando o autor transparecer em cada decisão de corte, em cada escolha sonora, em cada tijolo da edificação”. (Carlinhos)
Os filmes de Vladimir são atravessados por essa admiração pelo homem simples, e, em Teotônio, essa é a chave para entendermos o personagem.
Desde o primeiro plano do filme a opção é clara. O plano geral se fecha em zoom deixando fora de quadro o realizador e se concentrando no personagem, em Teotônio Vilela.
Certo, trata-se de um personagem ambíguo e é isso que o filme destacará, sobretudo nas entrevistas com políticos que o conheceram de perto.
Mas, mais do que isso, o filme me parece possui uma tese e essa é talvez o ponto mais importante da minha fala. A tese, talvez óbvia, diz mais ou menos o seguinte:
Teotônio era um homem de esquerda, na política entra para a direita para depois assumir posições nacionalistas e libertárias, mas essa passagem de um campo a outro, estava dada na sua história, na maneira como cresceu, na forma como lidou com o campo, com a natureza e com a gente simples.
Nesse sentido, talvez o filme, que começa com a música: Menestrel das alagoas, em que o refrão diz: quem é esse?
Talvez tenha chegado ao fim do filme sabendo quem era esse e com a montagem tentará explicitar para o espectador.
O filme é nitidamente dividido em duas partes.
1 - Na primeira, construída cronologicamente, acompanhamos a Gênese do Senador. O trabalho, o campo, o pai e a mãe, as memórias.
Nessa primeira parte, Vladimir faz uma costura entre dois tons: a informação e a digressão.
Por exemplo, ao falar do pai, descobrimos alguns dados biográficos do pai para logo nos concentrarmos em seu radical agnosticismo, essa digressão logo ganha um tom poético:
“Você me cutucou para o passado”: entra música - filme compartilha e corrobora a reflexão de Teotônio que nesses momentos é muito menos fundada na informação do que em uma certa experiência com o cotidiano, uma experiência que no limite é estética, da relação com os animais, com o aboio, atenta aos detalhes.
O milho arrebenta a terra, diz Teotônio, e o filme está lá para corroborar sua visão. A câmera entorta e a música simula o som do milho arrebentando.
É essa relação estética com o mundo, com a natureza, com os sons e com as pessoas é o que nos leva para a bela seqüência em um bar em que são contados causos, amigos são encontrados. O filme ali é um promotor de encontros afetivos, constrói o personagem junto ao povo, rindo, alegre.
- Os operários eram meus irmãos, diz Teotônio num certo momento, e nada no filme desmente essa percepção que o personagem tem de si.
Nessa primeira parte então a política não entra, apenas informações que são mediadas por uma relação afetiva com a vida e com as coisas e pessoas simples.
Parte 2
Com mais de 35 minutos de filme, depois de ter construído esse personagem empreendedor, ligado a natureza, disposto ao trabalho duro e afeito ao povo em sua dimensão poética, o narrador volta para nos dizer que por motivos externos - a quebra do preço da açúcar,
- Teotônio é obrigado a abraçar a política!
Essa frase é muito curiosa. Ela é dita pelo narrador (a). Trata-se de uma conclusão tirara pelo filme. A política não era uma opção, um destino - isso que Teotônio não gosta - mas uma obrigação. A política aqui é uma fatalidade.
Tal frase tem ecos platônicos, se quisermos. Segundo Platão, a pior pessoa para exercer o poder é aquela que deseja o poder. Tal percepção levaria à escolha daqueles que devem estar no poder a uma escolha feita por sorteio.
Talvez esse fosse o princípio democrático por excelência: Por dois motivos. Primeiro que o poder seria exercido por aqueles que não o desejam, segundo que o escolhido será aquele, ou aqueles, que não tem nenhuma legitimidade outra, além de ser do povo, para estar no poder, não é nem a aristocracia (poder dos melhores) nem a plutocracia (poder dos mais ricos) nem a Theocracia, (poder dos religiosos), nem a gerontocracia (Do grego geron, o mais velho - governo dos mais velhos).
Teotônio assume a política por questões pessoais e tem plena legitimidade democrática para estar ali: sai do povo e não tem legitimidade especial, nem faz da política um lugar para representar algo ao qual já pertence
Nesse sentido, Teotônio está no lugar de torna-se um sujeito político, ou seja, não ser aquele que representa, mas aquele que rompe relações estagnadas de classe e de identidades.
É justamente esse lugar que o filme dará ao político.
Essa segunda parte será pautada pela macro-política: questões de terra, de prisioneiros políticos, de greves no ABC, de eleições, presidência do PMDB, disputas palacianas etc.
Nesse momento o filme se abre para um novo registro, construído com entrevistas com pessoas que conheceram Teotônio e tem algo para falar sobre ele. Esse conhecedores, no informam, sobretudo, que Teotônio era um inclassificável.
Os adjetivos vão todos nessa direção: inclassificável, paradoxal, autocrítico, complexo, nem de direita e nem de esquerda.
Teotônio é obrigado a entrar na política e, de certa maneira, está acima dela.
- Ele é o Teotônio, como diz uma dos entrevistados. Tão solitário quanto naquelas noites e dias em que levava o gado. Teotônio é engajado mas não filiado, preso a idéias estanques.
Seu engajamento com causas populares e nacionalistas tem uma linha de continuidade com o homem que conhecemos no interior das Alagoas. E é assim que o filme constrói “um herói da anistia”
- Praticamente um socialista..., diz alguém.
Neste desgarramento engajado, Teotônio participa no início dos anos 80 - da redemocratização e em 80, faz a medição do confronto entre estado e trabalhadores
Com perspicácia, o filme dá especial atenção ao ABC, intuindo que ali se jogava o futuro do pais, certamente influencia o fato de termos nesse momento depoimentos fortes de Teotônio no calor da hora, em plena movimentação.
É nesse momento que o filme traz um plano emblemático, de grande importância na sua materialidade histórica. Em um plano, sem cortes, o filme passa de Teotônio para Lula, na rua, em plena mobilização do ABC.
Lula não pode falar, “fala com os advogados, é melhor.”
A força do documentário: A tensão está ali, em meio a uma situação que está se jogando ali, naquele instante.
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Na parte final do filme, temos mais uma espelhamento entre uma dimensão pessoal e os reflexos na política. A doença o torna um radical.
- O Delfin é jumento,
- O Langoni, descomposto
- O Tuma é embaixador do arbítrio
Como presidente do PMDB, novamente ele está no centro, na tensão dos acontecimentos. No silêncio de Fernando Henrique ao lado de Teotônio. Henrique Cardoso vestido com velhas roupas de inverno, trazidas ainda da época do exílio, tenho a sensação que o filme ainda não sabe a significação histórica daquelas imagens. Henrique Cardoso está longe de se tornar presidente, Lula então.... Essa falta de contexto para aquelas imagens faz com que o filme se alongue, como que nos deixando claro que aquelas cenas ainda não se articulam.
Teotônio, no calor dos acontecimentos, defende a classe operária, “pode sentar com o presidente”, mal sabia ele que estava ali, cercado pelo classe operária que assumiria a presidência e não que sentaria com o presidente.
O filme percebe que ali - nas greves, nas diretas, naqueles personagens - Henrique Cardoso, Lula, Covas, Ulisses - há algo acontecendo e, sem pressa, espera os discursos, deixa o narrador minimante presente, retira as músicas, o realizador não aparece mais.
O discurso de Teotônio, de esquerda e contra o imperialismo, assume o filme e o silêncio do próprio filme é uma maneira de compartilhar e aderir ao discurso de “esquerda nacionalista” que ali se ensaia.
No final do filme, temos uma síntese das duas partes do filme que se juntam pela música dos créditos, a morte, a radicalidade revolucionária, a infância com o som do milho se rompendo. Somos apresentados assim à trajetória circular da vida de Teotônio, um desfecho ideológico e política em perfeita harmonia com o homem simples engajado com as coisas simples e essências.