Em defesa da obra às obras
Carta/comentário sobre o artigo Em defesa da obra publicado na Revista
Piauí de novembro de 2011 por Bernardo Carvalho.
Prezado Bernardo,
Seu
artigo na Piauí Em defesa da obra é
importante. Trata-se de uma organização de ideias que vemos espalhadas aqui e
acolá, mas defendidas com menos brilhantismo que o seu.
Partindo
dos mesmos problemas, gostaria de pensar alguns pontos. Teu artigo parte do
princípio que os autores existem, que eles fazem obras, vivem vidas e que essas
obras e vidas são hoje disputadas pelas grandes corporações da internet que
desejam tudo publicizar e obter lucro, ao mesmo tempo em que encontram
justificativas para isso na própria lógica de exposição do universo privado e
das celebridades que atravessa a internet.
A mediação produtiva
Se
organizarmos esses problemas entre obra, direitos e internet da maneira como tu
fazes, estamos partindo do princípio que a internet – redes sociais, blogs, etc
– é apenas um meio. Ou seja, algo se produz no privado: as vidas, as obras e
todos os processos subjetivos em que os sujeitos estão engajados e, depois, em
um segundo momento, isso é exposto, se transforma em opinião ou se entrega à
lógica das celebridades. Pois, essa separação entre o lugar em que a vida se
faz e o lugar em que a vida se publiciza atravessa teu artigo e produz
desdobramentos inevitavelmente duvidosos.
Quando
nos deparamos com problemas subjetivos, econômicos e políticos em relação à
internet, me esforçaria em pensar o mundo que ela possibilita, os processos
subjetivos e políticos que ela engendra e não vê-la como um meio para
transmissão daquilo que existe.
As
vidas alterdirigidas, como as denomina a Paula Sibília no Show do Eu, não são apenas participantes da lógica das
celebridades. Felizmente acho que esse quadro não é tão simples. Diria que essa
dimensão pública da vida é freqüentemente atravessada por novas formas de
produção de comunidade, de engajamentos, de produção comum, de organização de
trabalho, de invenção coletiva, de problematização das centralidades de mediação,
de acesso e compartilhamento. Se retirarmos essa dimensão produtiva em que as
vidas estão engajadas com as obras, com os outros e com computadores em rede,
continuaremos pensando a internet como um meio em que o que acontece ali não é
produção e onde as empresas – Google, Facebook - operariam dentro da mesma
lógica de centralidade, hierarquia e exploração que os meios de comunicação
tradicionais.
Note,
por exemplo, o caso das revoluções árabes, ou dos recentes movimentos políticos
em diversos lugares do mundo. Uma coisa seria dizer: Toda a revolta estava
dada, toda reflexão estava feita e, pela internet, os grupos se organizaram.
Pois, acho que não é apenas isso. A internet não organiza o que está dado na
rua, há uma relação muito mais complexa, sem dentro e fora da internet, nesses
casos. Com a internet se possibilitou ali um modo de ser na política, também.
Não sei se me acompanhas, mas é nesse sentido que eu diria que a questão do
público e do privado precisa ser vista. Não apenas tornando público o que
estava no privado, mas produzindo-se formas de ser que transitam entre
dimensões públicas e privadas da vida, trazendo rearranjos para ambas. Uma certa
espetacularização da vida, de maneira alguma, significa que toda a vida está
espetacularizada, que ela foi consumida pela exposição. Tendo a achar que o
mistério não se desvenda de maneira tão banal. Entretanto, tens razão, estamos
diante de novas formas de colocar a vida em público, no século XX essas formas
variaram enormemente e em muitos casos foram decisivas para grandes conquistas
políticas, os movimentos das feministas e dos gays viveram essa tensão. Talvez uma parte da
inquietante presença das vidas nas redes sociais, que você chamou de
narcisismo, passe por uma profunda problematização das formas tradicionais de
representação, das formas de inscrições dos sujeitos na cidade, interrogando
esteticamente lugares de fala e possibilidades sensíveis. Definitivamente, não
eliminaria essas possibilidades para pensar o que acontece hoje nessa tensão entre
o público e o privado e, conseqüentemente, em relação à produção e a fruição
estética.
A nostalgia das centralidades e das hierarquias
Outra
dicotomia com a qual guardo significativa distância é expressa na sua frase:
“Hoje temos acesso a tudo, mas sabemos cada vez menos distinguir uma coisa da
outra”. Nosso problema seria então ter perdido as formas conhecidas de
mediação, de hierarquização. Digo perdido porque seria absurdo acharmos que na
internet não se inventa formas de julgar o que é bom, o que deve ser lido e
visto e o que não deve, o que não significa que essa mediação é melhor que
outras. De um modo geral, um grande esforço das grandes corporações da mídia é
manter na internet a mesma partilha e a mesma mediação de outros meios. Por
isso, as Tvs disponibilizam seus programas no Youtube, investem em sites e
proíbem que em uma novela para adolescentes se diga Facebook. Mas o que é
perturbador - para eles - é que as redes
sociais tem pautado os mediadores tradicionais.
Uma
das separações/hierarquizações que propões é a separação escola/internet e
esta, meu caro, é falaciosa. Há uma inevitável complementaridade, tanto para
alunos como para professores. Como professor, não imaginas como é prazeroso
citar o Bill Viola, a Marcela Levi ou Leminski em uma aula na Baixada
Fluminense e, na semana seguinte, descobrir que as imagens e sons foram baixados,
vistos e discutidos pelos alunos. Da
mesma maneira, vejo meus filhos utilizando a internet para as maiores bobagens
do mundo, ao mesmo tempo em que trocam partituras, compartilham reflexões,
escrevem sobre futebol. Certamente não são conteúdos dos mais relevantes, mas
definitivamente estão longe de ter com a internet uma relação passiva em que
ela apenas entrega o que já conhecem. Se colocas que a escola é transmissão,
regra e trabalho, enquanto que a internet é prazer, futilidade e repetição,
perdemos o melhor dos dois mundos, uma vez que a educação e a cultura não estão
nem em um nem em outro, mas em redes que estamos sempre nos esforçando para formarmos
para nós, nossos filhos ou alunos. Redes que passam justamente pelas potências
do outro, da diferença, de o que já inventamos em tantas áreas do saber, e
essas redes, decisivas para os processos subjetivos e para uma comunidade mais
rica, estão na escola, na rua ou na internet. Tendo ainda a acreditar que a
democratização da internet não passa então apenas por um pluralismo discursivo:
cada um em um canto falando e se expressando livremente. A rede aqui é constitutiva de uma força nas
maneiras de ser e sentir que formam comunidades e práticas que não são muito
rapidamente transformadas em discursos. Separar a escola da internet, como se
houvesse uma oposição, parece, antes, configurar uma nostalgia de uma
centralidade ou de uma hierarquia pré-constituída, independente de qualquer
práxis. A escola se torna assim uma metáfora para uma nostálgica de uma era em
que os mediadores e artistas tinham seus lugares garantidos pelo estado, pelo
mercado ou, na pior das hipóteses, pela mídia que atendia ao estado e ao
mercado.
A
escola como metáfora é uma negação da literatura, justamente. Como nos apontou
Rancière, a literatura se inventa como uma revolução poética em que se quebra a
separação entre aqueles que faziam parte da história e os outros - as pessoas comuns – que não tinham a vida
reconhecida como dignas de serem contadas. A
escola como fato não traz em si nenhuma garantia, pelo contrário, ela é freqüentemente
a forma de não se fazer política, de garantir que aqueles que não devem fazer
parte da vida pública do país continuem não fazendo. As formas de modelização
dos processos subjetivos são as mais diversas, na escola, na universidade, no
consumo, na mídia e na auto-exposição, em todos esses lugares, os embates são
cotidianos. Vou novamente lembrar do Rancière que, graças às tuas referencias,
nos acompanha aqui: A política se faz
quando aqueles que são expulsos pela porta entram pela janela. “Isso é a
política: encontrar uma maneira de fazer o que não era esperado que fizéssemos,
estar lá onde nós não deveríamos estar. Sem isso, não há política.”
A
defesa da exceção, como bem sabes, não pode se dar no sentido de se negar a
possibilidade de um sujeito qualquer se proclamar artista. Essa é uma cara
invenção do século XX, lá do seu início, e da qual ainda não tiramos todas as conseqüências.
Pelo contrário, recentemente o presidente da França, Nicolas Sarkozy, declarou
a necessidade de “redirecionar as ajudas em direção à excelência
artística”, buscando formas mais claras de avaliar a diferença entre o bom e o
mau artista, em uma evidente nostalgia da grande arte e dos critérios estáveis
em que as formas de fazer estavam separadas das formas de ser. Em
nome da ordem e de critérios que hierarquizem quem deve ou não ser lido, a
melhor opção não é optar pela abolição da democracia que, como bem nos explica,
ainda, o Rancière, é necessariamente escandalosa, pois o sujeito sem nenhum
título, que não é nem o mais rico, nem o mais inteligente, nem o mais premiado,
ainda assim, continua fazendo diferença na comunidade.
Capitalismo de excessos
Mas,
voltemos às megacorporações, estas são efetivamente uma questão importante para
pensarmos as formas de produção de valor hoje. Argumentas que elas são as
principais interessadas na fragilização das leis dos direitos autorais e para
isso marcas uma oposição do capitalismo do século XIX, que formula a noção de
direitos autorais, e o capitalismo contemporâneo. A bem da verdade, antes de
tudo o capitalismo. Pois, eu não faria uma oposição tão dura entre dois mundos:
aquele em que os direitos autorais eram “bem vindos” e esse mundo do
capitalismo informatizado. Vale lembrar um artigo brilhante da antropóloga Manuela
Carneiro da Cunha em que ela discute a propriedade intelectual indígena e diz o
seguinte: “Na verdade, desde seu surgimento na Grã-Bretanha no início do
século XVIII, os direitos autorais - os primeiros direitos de propriedade
intelectual surgidos no ocidente - não foram instituídos para proteger os
autores, e sim o monopólio de editores londrinos, ameaçados por edições piratas
feitas por escoceses”.
Também esses - os editores ingleses - não eram produtores. Seria um equívoco cairmos na oposição que coloca interesses
corporativos do capitalismo contemporâneo de um lado e autores de outro. As
disputas corporativas não são nada recentes e se os autores são a parte frágil,
como colocas, isso definitivamente não começou hoje.
O caso
dos roteiristas brasileiros, que citas, é efetivamente exemplar. Eles exigem
direitos autorais não para as cópias de um roteiro eventualmente vendido na
internet ou nas livrarias, mas um direito que deve ser pago em cada sessão de
cinema. Ora, vai aí uma compreensão muito equivocada do que é o cinema. Um
roteiro em um filme não existe sem atores, montagem, fotografia, música, som,
direção de arte, etc. A demanda dos roteiristas é descabida por que se tal
lógica for levada a sério a prática cinematográfica se inviabilizaria, uma vez
que todos esses profissionais teriam, também, que receber direitos autorais,
todos eles trabalham com suas competências técnicas e artísticas e, na maioria
dos casos, são pagos por isso.
Ficamos
com a questão, como defender a obra sem que se faça uma defesa do autor no
sentido do proprietário alienado do mundo, sem deveres e apenas com direitos,
como coloca o Godard. Como defender a exceção da obra sem trazer junto a
exceção da fruição? O autor não pode defender o seu direito de ganho, com sua
obra que vem sendo compartilhada indiscriminadamente, usando como justificativa
os poderes mais danosos; a indústria médica que segura as patentes mesmo depois
de ter efetivado seus ganhos ou o próprio Google que mantém seus códigos
fechados.
O
risco, ainda, é usarmos a lógica das grandes corporações industriais para
pensar Google ou Facebook, isso me parece um equívoco. O embate pela democracia
e pela diferença que fazemos com essas corporações é muito diferente daqueles
que tantos continuam fazendo com a Ford ou com O Globo. Isso não quer dizer que
estamos em um mundo melhor ou que o capitalismo pós-industrial é menos nocivo
que o capitalismo do século XIX - obviamente ainda muito forte. Mas, certamente
não são as mesmas armas. Assim, diria que outra distinção carece de ênfase em
teu artigo. A internet não é o Google e o Facebook. Se os filmes não são
disponibilizados pelo Youtube, eles são disponibilizados por outras redes. Se
os livros não são digitalizados pelo Google, eles são trocados por estudantes
que acham importante não se submeterem a todas as regras das editoras. O
Rancière, por exemplo, você deve ter lido em francês. Como ter acesso a esses
textos no Brasil? Como defender a lógica que faz com que livros esgotados de
autores mortos não possam ser reeditados por que a família não autoriza ou por
que a editora que detém os direitos não tem interesse em reeditar? O Rancière
mesmo protagonizou uma situação bastante ilustrativa da situação. Uma revista
acadêmica brasileira, distribuída gratuitamente, pediu e obteve sua autorização
para a tradução e publicação de um artigo. Quando cientes do caso, os editores
franceses do livro onde esse artigo aparece, avisaram a universidade brasileira
que o artigo não poderia ser publicado, depois de muito trabalho acabaram
liberando apenas para a versão impressa, mas não para a internet. Nada mais
anacrônico. O que fazer nesse caso? Respeitamos o autor, os editores da revista
acadêmica e o público brasileiro e colocamos o artigo na internet ou obedecemos
Berna e a OMC e mantemos o artigo restrito aos poucos leitores que terão acesso
à revista em papel?
Mesmo
se a internet não é o Facebook, ele está aí com toda sua força, vendendo nossas
formas de vida, vendendo nossa produção subjetiva – muito mais que nossa
privacidade! Essa é a lógica do capitalismo hoje. Mas, se o que o capitalismo
hoje tem para vender são nossas formas de inventar a vida, seria excessivamente
redutor acreditarmos que tudo que inventamos é capitalizável, que nada escapa
e que tudo se transforma em mercadoria. Se essas megacorporações fazem parte
das formas contemporâneas de modular as forças vitais, eu tenderia a achar que
há modos de engajamento e criação que se forjam com essas redes e que em muito
as transcendem. O que estamos constantemente vendo é o contrário de sua
apocalíptica conclusão. Somos estimulados – é verdade – à produção, o mundo
parece por vezes hiperacessível, com poucas barreiras entre nós e os mais
diversos poderes, o que é deveras cansativo, mas essa vida que se dá com as
redes não é o privado nem algo recôndito até então trancado a sete chaves, mas
formas de estar no mundo que podem ser mais democráticas, estéticas e políticas
– sem garantias, é verdade.
A obra é uma fase, não é o fim
As
obras não estão em risco. O cinema é um exemplo disso, seja nos filmes
fortemente interessados no outro, como os dois que acompanham a edição para
assinantes desse mês da Piauí – Avenida Brasília
Teimosa e O Céu sobre os ombros -,
seja em obras onde o autor efetivamente está no centro, como no filme da Flavia
Castro, Diário de uma busca, em
cartaz nesse momento. Assim meu caro, compartilho contigo a preocupação com as
obras, com o que elas trazem de desordem às formas como as estéticas e as
possibilidades sensíveis dos sujeitos e das comunidades estão organizadas. É
com essa perspectiva que a obra ou o autor não são o fim, mas parte de
processos que os ultrapassam, parte da própria transformação da comunidade.
Nosso problema é o que constrange a existência das obras e da presença que elas
podem ter na comunidade, nesse sentido acho que nosso problema é menos o Google
que a falta de acesso universal à banda larga, nosso problema é menos o
Facebook que a política restritiva dos direitos autorias baseadas no acordo de Berna,
nosso problema é menos a especularização do universo privado do que as
estratégias que tentam estancar e empobrecer os processos de subjetivação coletiva;
processos esses que se fazem com a escola, com a internet e com obras que já se
desdobram em outras obras.
Meu abraço
Cezar Migliorin
Sobre essa questão vale ver o artigo de Ivana
Bentes: Adeus aos
Críticos? Jornalismo cultural e crise dos mediadores