30 de set. de 2012

Modulação da vida, possíveis da arte

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Modulação da vida, possíveis da arte
Por Cezar Migliorin

(artigo publicado no Catálogo da Exposição Era Uma vez. Patrocinada pela OI com curadoria de Elianne Ivo e Pascalle Pronnier)

            Costumamos nos perguntar que cidade desejamos, que cidades os homens produzem, que ordens, que organizações, que partilhas? De um lado algo móvel, modelável – a cidade - de outro os homens, a cultura, o capitalismo, o poder público, as grandes obras, a desordem, a banca de jornal e a arte urbana. A cidade aparece assim como algo a ser escrito por múltiplas forças – leis, estéticas, circulação de dinheiro e pessoas. Entretanto, poderíamos fazer um exercício e inverter a questão central. No lugar de perguntar que cidades produzimos ou que cidades desejamos, poderíamos formular assim: como somos produzimos pela cidade? Quem são os humanos que as cidades desejam?
            Tal deslocamento já reconfiguraria a reflexão sobre a relação sujeito/cidade. Entretanto, esse deslocamento não esvazia a sua base metodológica que coloca a cidade de um lado e o sujeito de outro, como se um fosse massa modelável e o outro modelador. Pois, para levarmos adiante nossas considerações sobre a cidade e a arte precisamos partir de um interesse bastante específico, ou seja, as passagens entre a cidade e os humanos. Reside ai, no ir e vir entre um e outro, a verdade da cidade.

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            Como laboratório, as cidades atravessaram um século de utopias. Desde as nossas; modernas, ordenadoras, até aquelas pautadas pela experiências de encontros e perturbações das ordens subjetivas, como na teoria da deriva, de Guy Debord, em que os pessoas e grupos são incitadas a largar seus trabalhos e lazeres para produzirem outras circulações, forjando novas experiências de território. O que mais tarde seria encapado pela arte relacional estava esboçado pelo projeto de cidade pensado pelos situacionistas. Na deriva, o acaso é importante, mas o gesto de entrada e saída de zonas psicogeográficas  - como chamava Debord - é o movimento decisivo. Para isso, a circulação efetivava um mapeamento das possíveis trajetórias entre diferentes meio ambientes em uma cidade. A utopia situacionista dos anos 50 tratava antes de uma desfuncionalização e de uma desmodelização das cidades e tal gesto só era possível à partir de uma circulação entre sujeitos e grupos. Tratava-se de um ideal de cidade que por conta de suas transformações constantes, de seus amplos e grandes espaços de convivência seria, em si, a possibilidade de intensas situações, mudanças e comunicações acentradas. Artes e técnicas teriam papel central na “na construção integral de um meio em conexão dinâmica com as experiências de comportamento” (Debord) Em grande parte, é a utopia situacionista que ainda sustenta boa parte de nosso sonho de cidade. Esse ir e vir entre formas de habitar e formas de vida mediadas por uma criação constante.
            Entretanto, esta oposição entre uma cidade disciplinada e fruto de um projeto racional com espaços funcionalizados e uma cidade aberta ao descontrole das ruas parece ter sido bastante alterada no atual estágio da relação cidade/vida/capital, trazendo outros desafios para as artes e interferências urbanas e para todos que pautam a invenção da cidade pela relação criativa com os indivíduos. Em outros termos, diria que a especificidade da disputa urbana hoje passa, em grande medida, pelo banal, pela vida ordinária, pelas invenções que aparecem no descontrole cotidiano, sem que a potência dos encontros não programados se configure como garantia de um habitar mais democrático em que todos os modos de vida participem e produzam a cidade.

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           As armas do capital são claras, trata-se de tornar os modos de vida consumíveis e os espaços públicos cenários. Da mulher brasileira aos novos museus em portos renovados, o habitante é divido em duas categorias; aqueles que decoram a cidade – vendedores nas praias, torcedores nos estádios, capoeiristas no centro -  e a massa que consome e é espectadora do povo e da cidade que se escreve com ele.
            Estranho paradoxo. Por um lado são as pessoas e suas formas de vida que alimentam o imaginário da cidade, ao mesmo tempo são elas mesmas que são consumíveis. Trata-se de uma tensão, entre liberdade e controle, entre criação e captura que dialetiza a própria vida tornando-a o que há de mais valioso e de mais incômodo aos poderes que vêm a cidade como espaço de realização de ganhos (monetários, simbólicos, eleitorais).
            Recentemente, com a proximidade dos megaeventos, a Prefeitura da Cidade produziu um vídeo (http://www.videolog.tv/RioFilme/videos/603112) em que a cidade é o produto a ser vendido. Nos discursos a ênfase na riqueza da cidade recai sobre “os personagens”. “As pessoas que vivem no Rio de Janeiro é que fazem o Rio de Janeiro”, em diversos depoimentos a cidade é definida pela sua criatividade “fresh”, pela riqueza “por natureza heterogênea” que possibilita “tipologias e maneiras de se comportar diferentes” e faz com que “o que para outros lugares seja absurdo, para o Rio seja normal”. Esses elementos permitem que “a imprevisibilidade da perspectiva carioca seja inspiradora sempre”.
            Em meio a esse mar de opiniões pautadas pelo lógica de que o povo brasileiro é um criador nato, o vídeo tem uma ideia muito clara: a cidade é um produto e esse produto está intimamente ligado às formas de vida, aos modos de ser. O povo é arte que inspira. O vídeo é exemplar de como transformar formas de vida em mercadoria. É curioso, por exemplo, que entre todos os depoimentos, haja um de uma moradora de uma favela, a cineasta Luciana Bezerra que em sua fala é única a dizer onde mora. “Eu moro no Vidigal” Essa é sua frase de abertura. Nenhum outro entrevista diz “Eu moro em Ipanema”, ou “Eu moro no Leblon”, mas isso é apenas um detalhe que reflete minha atenção excessiva com o que é dito.
            Se esse vídeo é perturbador é porque ele aponta para o futuro do Rio de Janeiro, esse laboratório do capitalismo cognitivo. Outro exemplo. Logo depois do Choque de Ordem, uma ação da prefeitura que ordenava e as ruas e calçadas uniformizando as práticas de camelos e guarda-sóis das praias. Enquanto os vendedores de cerveja ambulantes eram expulsos, a Brahma entrou com carrinhos de rua, também ambulantes, para vender chopp ao lado dos antigos da Nestlé que vendem picolé. Liberar e controlar, assim funciona a modulação urbana.
            Enquanto a favela tornou-se nossa obra-prima o pobre é nosso performer. Há ali a força de invenção que pode ser, quando interessar, ordenada. Ambos inventam as formas que resistem às ordens globais, uniformizantes, homogêneas.
            Resistir na forma, claro; assim vemos o povo na cidade. Resistir na forma, princípio primeiro para a arte, apresentar-se como um objeto problemático e possibilitar uma atenção qualificada em relação à cidade. Ao mesmo tempo, ter nas formas de vida a medida possível para o sem medida das relações na cidade. Como parece evidente, essas duas dimensões são inseparáveis das maneiras como o capitalismo mesmo se relaciona com o espaço urbano. Enquanto a publicidade organiza o mobiliário urbano e as grandes empreiteiras investem em transporte público, determinando os fluxos, a organização do espaço, o tempo de trabalho e lazer, outros poderes se apropriam do que há de mais banal e cotidiano das formas de vida. O nome da operadora de telefonia que patrocina esse catálogo é uma evidência: o que há de mais banal e corriqueiro que OI?

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          Assim, o esforço para pensar o que é cidade hoje se faz em relações com esses múltiplos poderes - entre eles a arte. Se faz com aquilo que ainda não ordenou o humano e naquilo que ainda não desenhou a cidade. A arte como intervenção pública é parte dessa escritura e da própria instabilidade da cidade que é inseparável de um duplo destino: por um lado, o aparecimento da arte deve explicitar uma separação em relação à forma da cidade, operar um dissenso em relação à ordem dos poderes que a constituem, uma distanciamento em relação às organizações que definem os lugares dos sujeitos, dos grupos e identidades (ver Rancière). Por outro, se a arte na cidade se bastasse na resistência formal ao que é a cidade – produzindo descontrole onde há controle, colocando retas onde há curvas, sons onde há silêncio - , incorreríamos facilmente na abstração ou na relação dialética com a cidade e com os poderes que a organizam temporal e espacialmente. Resta à arte então não perder o vínculo com as formas de vida, com o que podem as vidas que habitam as cidades.
            A arte na cidade resiste em sua forma mas ela não antecipa a organização da urbe. A arte explicita, talvez, os espaços híbridos, aqueles em que as formas de vida ainda não se inscrevem as formas da cidade mas que já se fazem presentes, aqueles em que as formas da cidade já produzem formas de vida não inscritas em seus planejamentos.
            Sem esse duplo destino, a arte torna-se apenas uma continuidade com o que a cidade já é – bela, horrível, violenta, doce - uma continuidade em relação à possibilidade de uma experiência estética individual que pode vir de qualquer lugar – de uma publicidade mesmo; ou uma descontinuidade absoluta, separada das formas de vida que a produzem, logo, irrelevante para aqueles que a habitam. Duplo destino da arte politica – a única que interessa quando a cidade está em jogo - , ter continuidade e descontinuidade com o que é a cidade, em um só gesto. Resistir na forma sem que as formas de vida sejam excluídas.  
            Assim, para nós, interessados na arte, parece relevante uma abordagem em que as formas dos homens e dos objetos  - nem sempre tão distinguíveis – estarem no mundo não estejam isoladas das formas de ser e das possibilidades sensíveis das obras. O esforço em fazer da arte um campo isolado da politica – da cidade – é fundado na necessidade de funcionalizá-la, seja para efetivar seus ganhos simbólicos em centros culturais, em cadernos de cultura, seja para efetivar seus ganhos financeiros, em galerias e feiras. Isso significa dizer que esses mediadores deveriam desaparecer? Não. Se a arte resiste na forma, e esse era um de meus pressupostos, tal resistência é o que garante a sua inscrição na polis, apesar de tudo. Uma inscrição que enquanto resiste na forma insiste nos possíveis das formas de vida.

Bibliografia.

BRASIL, André. Formas de vida na imagem: da indeterminação à inconstância. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, Vol. 17, No 3. 2010.


DEBORD, Guy. (org) Internationale Situationniste #1. juin 1958. Disponível em : http://i-situationniste.blogspot.com/2007/04/internationale-situationniste-numero-1.html
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

Viveiros de Castro, Eduardo. Uma figura de humano pode estar ocultando uma afecção-jaguar. In. Multitudes 24  print. 2006.

http://multitudes.samizdat.net/Uma-figura-de-humano-pode-estar



Abaixo coloco uma brevíssima lista de artistas e obras que me inspiraram na escrita desse artigo. Com eles pude pensar e entender o que acredito ser o possível na relação arte e cidade.

Avenida Brasília Formosa, (2010) – longa-metragem de Gabriel Mascaro - Recife
O céu sobre os ombros, (2011) – longa-metragem de Sérgio Borges – Belo Horizonte
Weng Fen – Fotógrafo Chinês
Marepe – Artista plástico nascido na Bahia
Cidadão Instigado – Banda do Ceará








[1] http://www.videolog.tv/RioFilme/videos/603112

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