A maior invenção do filme da Anna Muylaerte é o personagem da filha de Val, interpretado pela Camila Mardila.
Lembrar dos recentes “O som ao redor”, “Casa grande” e “Doméstica”, do Mascaro, parece pertinente na medida em que esses filmes colocam no centro da narrativa os embates de classe e os sistemas de opressão das elites que passam por relações de afeto.
Mas, a singularidade do personagem de Jéssica é comparável ao magistral personagem do “Invasor”, de Beto Brant. Esses personagens não querem o dinheiro dos ricos, mas pedaços dos modos de vida. A piscina, o quarto com cama confortável, o ar condicionado, o sorvete. O Invasor seduz a filha do rico e uma relação se dá entre eles. Jéssica também seduz – quase a revelia, é verdade. A jovem perturba a ordem da casa em diversas esferas.
O que ela traz para a casa é um subversivo princípio de igualdade. “Não sou melhor, mas também não sou pior”. O princípio de igualdade sensível é expresso na cena da piscina e na forma como Jéssica “invade” o quarto de hóspede e pula na cama macia, rompendo a barreira que separa quem tem direito ao frescor do ar condicionado e quem não tem – sua mãe. Jéssica não espera o convite, enfia o pé na porta e usufrui de tudo que por direito não deveria ser exclusivo de uns e não de outros. Só um invasor rompe a barreira que organiza as sensibilidades em uma sociedade onde a opressão de classe pouco choca.
A personagem de Jéssica inaugura então uma narrativa da emancipação de Val. Depois de desmontar a ordem do que é alto e baixo – as notas, a vivacidade, o preço do sorvete, a curiosidade – a personagem se revolta em perceber a mãe submissa aos esquadrinhamento da casa. Jéssica é movida pelo esforço individual, pela necessidade de sucesso pessoal, diferentemente do jovem de sua idade, Fabinho, envolto nos excessos do mundo familiar. Quando Jessica se revolta e vai embora, depois da decisão da dona de casa de isola-la no canto das domésticas, todas as rupturas que ela produziu não são suficientes para afetar a família rica que celebra o fracasso do filho com um intercâmbio na Austrália – a escolha deste país é mais uma das ótimas opções de roteiro. Mas, pior, a invasão de Jéssica e seu compartilhamento fugaz do mundo dos ricos também não é suficiente para mobilizar Val. A exuberante personagem interpretado pela Regina Casé precisa ainda do elemento melodramático para efetivar a ruptura. Ela precisa cuidar da família, fazer o papel de mãe que não pôde fazer com a própria filha.
Enquanto Jéssica era a invasora e perturbava a distribuição dos direitos da casa grande, a política estava sendo feita. No momento em que Val deixa a casa para assumir o neto afetada pela possibilidade de reinventar a vida da filha, as coisas voltam aos eixos. Os pobres morando no lugar dos pobres, correndo contra o tempo, como pobres, e os ricos com suas vidas de viagens, motoristas e prazeres, como ricos. Os pobres fixos em seus territórios - com a esperança de um sucesso pessoal – e os ricos desterritorializados, com a vida ganha por princípio. Essa virada narrativa tende a esvaziar a força política do filme.
A virada melodramática esvazia a invasão como gesto político e, apesar do final feliz – a família junta, o sucesso de Jéssica e a ruptura da circuito que coloca filhos separados de mães – a divisão de classe não sofre qualquer abalo. O embate é esvaziado pela forma como o melodrama se sobrepõe ao enfrentamento. Val provavelmente arrumará um novo emprego, como diarista talvez, enquanto a família de Fabinho terá o trabalho de conseguir uma nova empregada doméstica que continuará sem ar condicionado. Assim, a luta de classe se dissolve na forma como o opressor não é afetado.
Se não é no interior da narrativa que a transformação política se faz, sobretudo porque não podemos dizer que Val - ou a família rica - está agora tocada pelo princípio de igualdade efetivado por Jéssica, como o filme se coloca então como discurso político?
Resposta óbvia, tendo o espectador como objeto. O que o filme pede então os espectadores? Pensado como um filme político, que forma de engajamento do espectador o filme pode esperar? Primeiramente que reconheçamos que há um mundo sensível na vida dos pobres e que esse mundo não é segundo em relação à sensibilidade dos ricos. Para construir isso o filme precisou de uma família muito rica, com uma mãe para quem as palavras de Val não existem, para contrastar com uma doméstica carinhosa, criativa e sensível, mas que não sai de seu lugar de submissão, a não ser pela virada melodramática. O filme pede ainda que o espectador não compactue com a alienação e preconceito dos ricos, uma vez que essas são as formas de fazer menor quem é igual – Jéssica. Não é pouco, é verdade, mas esses modos de engajamento do espectador são tênues diante da manutenção da tragédia da divisão de classe que o final feliz privado encobre.
Enquanto Jéssica invadia ela se colocava como portadora de um direito e de uma sensibilidade lá onde uma igualdade não se efetivava. No final feliz do filme a igualdade continua não se efetivando, mas o sucesso pessoal aparece como saída. Jéssica e seu filho talvez escapem, o mundo não.
Um comentário:
Muito interessante sua análise política do filme. Quanto à semelhança entre Jéssica e o invasor do Brant, prefiro ficar com as diferenças. O Anísio do Brant faz a invasão "bandida", baseada na chantagem. Ele quer usufruir mais da sensação de poder dos engenheiros do que propriamente dos seus bens. Tem o propósito de inverter a pirâmide social como ato de confronto e insolência. É um indivíduo aproveitando uma brecha para se dar bem. Já a Jéssica, por ter outro tipo de caráter, e principalmente por ser fruto de outro Brasil - o da era Lula -, não age propriamente como invasora, mas como alguém que não reconhece a diferença, ou pelo menos as razões da diferença. Para Jéssica, moça culta e às portas da universidade, a submissão da mãe simplesmente não faz sentido. Ela tem, claro, um quê de oportunismo, mas se coloca ali não como num golpe, mas como numa ocupação natural, espontânea. Anísio e Jéssica são emblemas de uma mudança de mentalidade que floresceu no Brasil entre 2002 (ano de O Invasor) e 2014.
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