12 de mar. de 2011

Direitos autorais e democracia



            Diria que o texto do Cacá Diegues, publicado hoje no O Globo, contribui para que certas posições sejam explicitadas. O Luiz Carlos Barreto havia dito: o cinema vai entrar na briga! Bem o cinema já está na briga há muito tempo. O que eu acho é que nunca se imaginou que a mobilização crítica ao que o MInC tem feito ganhasse tamanha proporção. Pois, se essa parte do cinema não estava na briga agora está. O duro é vermos os maiores críticos da gestão Gil/Juca felizes com os rumos do governo que ajudamos a eleger. Mas, como sempre, estamos apenas começando.

O autor é uma invenção 

Antes de ir à questão do direito autoral, ou dos direitos intelectuais, é importante relembrarmos o que é um autor. O autor é algo relativamente recente, é um fato histórico, não é algo dado. Cacá argumenta que o artista – tratado como autor – encontrou no mercado uma liberdade, livrando-se de reis e papas. Entretanto, o argumento do cineasta, que passa pela Capela Sistina, é bastante problemático, por um fato simples: naquele momento não existia a figura do autor.
            A noção de moderna de autor é do século XVIII. Nesse momento, ele ainda era basicamente entendido de duas maneiras, como aquele que tem uma inspiração divida, logo ele é um meio para algo que não lhe pertence, ou ele é um artesão, tendo o domínio de uma certa quantidade de regras e técnicas. Em nenhum dos casos, o autor é entendido como responsável por sua obra. Assim, estamos longe da ideia do gênio, do criador que cria do nada.
          Ora, mas se o autor “não existia”, porque então surge a noção de direito autoral?  A brilhante antropóloga " Manuela Carneiro da Cunha diz o seguinte:  “Na verdade, desde seu surgimento na Grã-Bretanha no início do século XVIII, os direitos autorais - os primeiros direitos de propriedade intelectual surgidos no ocidente - não foram instituídos para proteger os autores, e sim o monopólio de editores londrinos, ameaçados por edições piratas feitas por escoceses”.
            Esse processo é parte de uma virada na compreensão do autor, segundo a Martha Woodmansee, que estudou a invenção da ideia do gênio e a propriedade intelectual no século XVIII, por múltiplas razões, certamente iluministas, o elemento artesanal é praticamente retirado da concepção do autor e a fonte inspiradora é internalizada. Nem musa nem Deus, mas o self.
            Dai para a concepção que hoje ainda é usada para fazer do artista um criador autônomo e isolado é um pulo. O autor é o que cria (do Lat. Auctor: fundador, criador) e nós, reles humanos, só vivemos, sem criar. Como eu costumo dizer, na atual lei do direito proprietário, as netas do Vinícius recebem direitos autorias e as garotas de Ipanema nem um centavo.
(com alguma ironia desenvolvi isso nesse post:)

Não há consenso possível
            Essa semana a Ministra Ana de Hollanda dizia: "Não posso endossar um projeto que está sendo questionado", se referindo à decisão de trocar a equipe que encaminhara a reforma da Lei dos Direitos Autorias e fazer o projeto voltar a ser debatido depois de 70 reuniões com setores interessados na proposta, 80 encontros setoriais e nove seminários realizados no Fórum Nacional de Direitos Autorais de 2007 a 2009 (informações do MinC). Pois, não sei se fica claro, mas essa brevíssima história do autor e da propriedade intelectual nunca foi desprovida de crítica.  Entre 1777 e 1793, na França, por exemplo, a pesquisadora Carla Hesse mostra que a noção de autor era criticada por ser um instrumento repressivo da monarquia e “um instrumento legal para regular o conhecimento”. Como dizia Foucault, o autor é  uma das formas de estancar a proliferação do sentido. Rancière, em um breve texto chamado "Un communisme Imateriel?" nos lembra, por exemplo, que Flaubert, Mallarmé e Proust, representantes máximos do culto ao autor, sempre afirmaram a impessoalidade da escrita. O que me faz lembrar essa bela passagem do Benjamin: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os “(BENJAMIN, Passagens)
            Não sei se fica claro, mas a internet, as trocas digitais, etc, são decisivas para o debate que se faz hoje, mas não é dela que surge o debate. Quando Caetano diz, a internet que se dane, ou algo assim, o que ele nega é o pensamento e não a internet. Agora e sempre, para tocar um processo como esse, que passa por disputas com multinacionais, leis internacionais, televisões, artistas e a própria sociedade, a Ministra terá que enfrentar questionamentos. A outra opção é mais tranquila: coloca-se uma advogada ligada ao Ecad no ministério, retoma-se os debates do projeto e espera-se o próximo governo.
O capitalismo hoje
            Pois, se noção de autor é uma invenção e é sempre parte de um contexto, precisamos então considerar o contexto contemporâneo e isso passa pelo capitalismo mesmo. Como desenvolvi no artigo, Por um cinema Pós-Industrial, (citado por Cacá Diegues, sem que eu cobrasse nada, porque assim funcionam as ideias, que bom!) desenvolvo o que seria uma era pós-industrial. Pois o que importa aqui é que o criador contemporâneo, desejado pelo capitalismo, é aquele que inventa mundos com suas próprias vidas. Inventar mundos é o desafio do capitalismo e, para isso, precisa das vidas fora das regras e linhas de montagem. Como diz o Peter Pal Pelbart, “O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida”. É claro que em algum momento essa invenção precisa ser capitalizada. E ai, novamente, a ideia do autor vem a calhar. Entretanto, mesmo para o mercado e para o capitalismo, a atual lei dos direitos autorais é retrógrada. Ela faz de tudo para dificultar a circulação da criação e do saber. Os que defendem essa lógica se baseiam assim em um autor do século XVIII para defender um capitalismo industrial do século XX. Eis a esquizofrenia.
            Toda a defesa do mercado feita por Cacá Diegues em seu artigo é pautada pela lógica da escassez industrial. Ou seja, uma lógica em que os produtos eram materiais: se eu desse o meu para alguém eu ficaria sem ele. Pois estamos em outro contexto e desconsiderá-lo pode nos custar muito caro. Sem contar, obviamente, que a proposta de lei dos direitos autorais não prejudica os artistas, mas, provavelmente, os intermediários. (Ver texto:http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/lei-961098-consolidada/). Pensar a sociedade pautada pelo mercado, como se nele houvesse a respostas para nossos problemas, conflitos, criações e liberdades, certamente não é a melhor maneira se inventar um país, mas é uma boa maneira de se excluir do debate todos aqueles que operam fora do mercado, ou seja, a vida mesmo.
            Nesse sentido, há frases um tanto estranhas no texto do Cacá Diegues, como essa: “o mercado estabeleceu o direito de o artista dizer o que pensa sobre o estado do mundo, independentemente do que pensam os que mandam nele”, certamente que essa luta foi, e é, é, feita por outros atores também muito importantes. Mas a que me parece mais grave nesse momento corre o risco de passar despercebida: Para defender os autores ele diz que quem fabrica a “alma de um povo” são os homens que a criam. Pois, diferentemente do que o Cacá afirma, quem inventa “a alma de um povo” é o povo. Retirar de todo e qualquer homem esse papel é promover a aristocracia ou a oligarquia, como queira. Mas, definitivamente estaremos nos distanciando da democracia. 

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Links para o debate:

Enviados pela Patrícia Cornils:
 

5 comentários:

mauricio disse...

alguns problemas neste texto.
1. se uma fonte diz algo isto é verdade? há quem discorde.
2. o autor é uma invenção? e se for? e daí? tudo em cultura e civilização avança pelas invenções. estranho alguém se julgar avançado e criticar invenção pela invenção. como se invenção fosse fraude.
3. tb lamentável é criticar o mercado mas não propor alternativa a este. acabe-se o direito autoral mas acabe-se tb o mercado e o capitalismo, então. 4.engraçado alguém parecer tão articulado, criticar o autor e ser tão pouco radical deixando incólumes as corporacões com interesses em gerar tráfego de conteúdo alheio sem pagar nada.
a mesma ladainha de sempre.

Flavio disse...

Cézar, querido, gostei muito do seu texto, embora discorde de vários pontos (ou, vá lá, discorde da ideia inteira).

Se o Vinicius não tivesse escrito a letra de Garota de ipanema essa "imagem", garota de ipanema andando pro mar tal como a conhecemos (e o mundo inteiro) não existiria. E ponto final. O Vinicius não "organizou algo que não lhe pertence". Ele criou!!!!! Ele criou algo que LHE pertence.

Se os herdeiros devem ainda estar lucrando com isso façamos uma analogia: se ao invés de uma letra de música ele tivesse criado uma fábrica de sandálias Garota de ipanema. Com a morte dele a fábrica de sandálias viraria "domínio público"?? porque com a criação artística é diferente?

Abraços

Flávio "Adriana Borges" Mendes

Migliorin disse...

Flavio meu caro.

Talvez o meu problema seja a enorme dificuldade de ver o artista como esse criador que não deve nada ao mundo, como se dele saísse o novo.
Você tem toda razão, se o Vinícius não tivesse feito a música, essa imagem não existiria, mas sem as garotas, sem a invenção que passa pela forma como a cidade se organiza, pela forma de estar na praia e na vida, a música também não. Há um encontro de criações ali de grande felicidade. O que não quer dizer, é claro, que o Vinícius não deve ter direitos autorais em relação à sua invenção.
Assim, minha analogia seria outra. Uma comunidade indígena que inventou uma forma de utilizar uma determinada planta para o tratamento do reumatismo, quando esse uso vai para a indústria farmacêutica, potencializado, disponível em todo o mundo, de fácil acesso, etc. Como devemos remunerar a comunidade?
Esses casos são mais difíceis, uma vez que eu não estou tirando dos índios a possibilidade de eles usarem as plantas, assim como o Vinícius não está roubando da garotas as suas formas de ser.
As formas de vida são imateriais e estão em constante produção, diferentemente de uma sandália. Se os herdeiros da fábrica pararem de trabalhar a sandália acaba, já a música... Agora, se a havaina deixar de fabricar essa sandália, eu acho que outras pessoas devem ter o direito de se apropriar do conhecimento imaterial que há ali – formas, cores, marketing, etc – e recolocar as Havainas no mercado, afinal, precisamos delas para apreciar as garotas de Ipanema.

Meu abraço grande,
Cezar

Migliorin disse...

Maurício,

Obrigado pelos comentários.
Sim o autor é invenção. O que ele era no séc. XVIII não pode servir de retórica para o XXI

Minha crítica não é ao mercado, mas ao discurso que vê no mercado a solução para todos os conflitos e desigualdades.

Proponha a solução para as corporações que trabalham com banners, também gostaria de ouvir Só não me peça para voltar para o séc. XX, restringindo o acesso.

Igor Barradas disse...

Vejo da seguinte maneira, assim como é prioridade agir pra sanar a fome do mundo, que não dá pra começar uma estratégia politica sem levar em conta que tem gente que não tem o que comer. Não dá pra pra começar uma discussão estando a informação, nas mãos dos que cobram pedágio. O direito a informação deve ser livre. Não deve ser encarada como uma roupa bonita, ou uma jóia. Dou o meu papo a partir deste principio. Tá com fome, coma!

O que me irrita um pouco neste rico debate que o setor cultural passa, é que nem um dos lados negam que o autor tenha que ter direito de sobreviver a partir de suas obras.

Pra mim, o que esta em jogo é, com pedágio, ou sem pedágio? Estamos numa era em que o atravessador ainda persiste, não larga o osso.

A internet é um atravessador? é, mas se ela me possibilita um papo reto co quem quer comprar minha obra... ! É capitalista? É, somo todos um pouco, se não, como comprar o leite da criança. mas a vejo com uma possibilidade, uma ferramenta muito mais sedutora, direta, democrática e pragmática do que a espera e a fé pelo bom funcionamento do ECAD.

Outro ponto que parece que esta em discussão é a idéia de quem é "autor". Tem duas coisas que me incomodam nesta nova politica do MINC.

1- diz que veio pra defender ao autor. Ora, eu me considero autor, e me identifico muito mais com a antiga gestão.

2 - Essa postura, no meu ver, coloca o autor em um pedestal, sendo que o grande lance é que qualquer um pode ser autor. O grande barato do antigo ministério era esse. Trabalha a autoestima, a força criadora. A economia? Bem, a economia a gente inventa.

Acho que a luta do ECAD é válida. Mas ela não deve ser soberana, não deve ser a LUTA. Não quero estar nessa estrutura estremamente verticalizada.

Acho que é possível que as duas maneiras de se ver o direito autoral sobrevivam no mesmo mundo. E que o MINC não tem que escolher uma.

Uma outro impressão, no mais perfeito dos mundos, a demanda do Cinema industrial é uma, a do cinema curta-metragista, de arte, independente é outra. Elas não deveriam estar em conflito e sim em consonância. Também parece que a idéia de "Cinema" esta em discussão. E como no highlinder, apenas uma sobreviverá. Penso que há como sobreviver no governo federal as várias idéias do que é cinema e do que autor.

é noise,

igor barradas
cineclube mate com angu