O debate em torno dos direitos autorias explicita a disputa em jogo em torno da criação. O direito autoral, na forma como é praticado hoje, coloca o artista na ponta da cadeia criativa, como se tudo que o antecede tivesse sido orquestrado por ele. Na lógica do direito patrimonialista, o artista se torna aquele que estanca o movimento criativo e coletivo e transforma o processo de criação, necessariamente transindividual, em produto privado. Isso significaria dizer que entre Vinicius de Morais e as moças que andam por Ipanema não há diferença de criação, que todos merecem o mesmo mérito? Talvez não. Cada vez que ouvirmos a canção de Vinícius, estaremos dando crédito ao poeta, pois ele organizou, de uma certa maneira, algo que não lhe pertence, as garotas e os acordes do violão. Assim, Vinícius merece o crédito e todo reconhecimento por essa determinada ordem, bela e poética, mas porque a criação deve parar ali? Porque este reconhecimento é necessariamente uma mercadoria? A lógica atual dos direitos autorias, sobretudo no que tange o direito de herança, estabelece que a cultura não é prioridade e sim a propriedade. Não seria a música do Vinícius mais um elemento no mundo, tão belo quanto o balançado das meninas que o compositor levou para a música?
O que está em jogo no debate em torno do direito autoral é a importância social de certas obras em que o artista não se torne um paralisador de um processo, como na indústria, e sim um agente em uma cultura em movimento. Haveria outro papel para o artista? Hoje, por exemplo, um filme não pode ser exibido em sala de aula sem pagar direito autoral e uma família tem o direito de privar a sociedade de um obra de um compositor durante 70 anos após sua morte. O anacronismo e a irresponsabilidade social de tais leis se tornam ainda mais graves quando os meios digitais permitem uma circulação infinita e gratuita dessas obras.
No campo da música, por exemplo, a possibilidade de se ganhar dinheiro fazendo cópias de discos durou um século, bem menos do que os milhares de anos de existência da música. Como vemos, a defesa dos direitos autorais atua pedindo escassez onde há abundância, barreiras onde pode haver acesso, interrupção criativa onde pode haver multiplicação, privatização no lugar de coletivização. Para refazer a lógica industrial no interior de uma era pós-industrial, sobretudo no campo da circulação de bens imateriais, a retórica de defesa do artista se tornou central. Essa centralidade é hoje frequentemente acompanhada da defesa do direito autoral, mas, mais do que isso, da defesa de um modelo hierarquizado e privatista, uma forma de administrar, e eventualmente destruir, uma potência de invenção e criação que está dada e que é comum.
3 comentários:
Retórica bonita pra botar a mão na cumbuca alheia...
Talvez o anônimo sinta-se mais representado pelo pensamento expresso no blog da cantora Joyce: "O Creative Commons é uma excelente ferramenta de marketing, que atrai muitos simpatizantes entre artistas que ainda não alcançaram o sucesso - e por isso mesmo não têm nada a perder". http://outras-bossas.blogspot.com/
eu no entanto, continuo a repetir em 140 caracteres: RT @fernandabruno A cultura, ou ela é comum ou ela não é. A criação, há quem prefira privatizá-la, mas cabe ao poder público torná-la comum.
Grato pela indicação de texto. De fato, me sinto mais representado por ele.
Abs.
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