22 de fev. de 2011

Ana Paula Santana, entrevista no O Globo




Tentando entender a entrevista da Ana Paula Santana, nova secretária do audiovisual (SAV/MINC).
            Na verdade, meu esforço é para não entender rápido demais a entrevista, uma vez que ela é repleta de elementos que indicam que a Secretaria do Audiovisual está abrindo mão de ser um contrapeso ao mercado e à retórica da indústria para se adequar à lógica que domina o audiovisual comercial no cinema e na TV. O discurso da secretária está distante do que tem aparecido de forte e potente no cinema e no audiovisual contemporâneo, uma força que passa pelas periferias, coletivos, festivais, cineclubes, distribuição digital, pontos de cultura, etc. Ou seja, uma produção e um acesso pautados por uma relação pós-industrial de trabalho, criação e também estética. Uma relação que não é um projeto utópico de cinema, mas uma contingência, um estado de coisas no qual estamos inseridos. (escrevi sobre isso em: Por um cinema Pós-Industrial na revista Cinética).
            Vamos a alguns pontos da entrevista:
            A ideia de coletivos criativos pode ser ótima. Como sabemos, grande parte da produção mais inventiva que tem circulado em festivais e mostras no Brasil e no mundo foi gerada em coletivos que em suas equipes e formas de trabalho questionam a tradicional hierarquização que o cinema herdou da indústria. O que Ana Paula parece desconsiderar na entrevista é que muitos coletivos criativos já existem no Rio e em São Paulo, como sempre, mas também em Belo Horizonte, em Fortaleza, Recife ou em Porto Alegre, apenas para citar os grupos mais ativos e bem sucedidos. Explicita-se nesses grupos uma ruptura tipicamente pós-industrial entre centro e periferia. Entretanto, o que a secretária espera desses grupos é que eles façam planos estratégicos, inventem marcas, sejam empreendedores. Espera que eles se adequem ao mercado e à lógica industrial. O que a secretária talvez não tenha tido ainda a possibilidade de ver é que esta produção já passa pelo mercado – ser exibido em Roterdã, por exemplo, é uma forma de estar no mercado -,  mas que ela se faz longe dos moldes da indústria, longe da lógica que faz com que o processo seja uma passagem ideal da ideia ao produto. Temos hoje a felicidade de ver uma produção que está em Berlin e Cannes, ganhado Brasília e Tiradentes, mas que não é feita dentro da lógica da indústria. No meu entender, apostar em processos é perceber o que existe e potencializa-los, o que é completamente diferente de uma modelização para as demandas do mercado ou para os buracos da cadeia produtiva. Na verdade, o próprio mercado não espera uma modelização, ele é feito com uma intensa demanda de invenção. Pensar com o mercado é pensar em formas de incorporar e potencializar o descontrole da criação existente.
            Assim, temo que o que a secretária chama de processo criativo é, na verdade, uma engenharia de produção em que o filme é um produto que deve fazer parte uma cadeia produtiva. Ou seja, os “processos” que não fomentarem a cadeia, não gerarem produtos competitivos, não devem existir. Dentro da lógica interna de sua reflexão, não há problema em pedir que os coletivos façam planos de negócio, criem marcas, e tudo que acompanha tal lógica – publicidade, público alvo etc - mas dentro da lógica do cinema pós-industrial, o mercado não os antecede. Ou seja, o mercado é o que pode se aproveitar dessas invenções, mas domesticá-la é uma forma de matar a criação.
            No momento em que a cultura se torna o paradigma do capitalismo, não podemos, nós da cultura, nos tornarmos nostálgicos da disciplina das indústrias. O exemplo de processo criativo dado na entrevista é paradigmático desse equivoco. O processo que Ana Paula Santana descreve do FICTV é, em certa medida, parecido com o bem sucedido DocTV, com uma diferença fundamental. O Processo do DocTV potencializava a criação descentralizada em que o mercado era um possibilidade, não o fim. Assim, não se estabelecia público alvo ou adequação a essa ou aquela classe. Quando o próprio estado decide fazer a separação entre arte para rico e arte para pobre – classe C, D e E, como falou Ana Paula – ele se torna um legitimador da falta de democracia em que alguns tem direito a certas experiências sensíveis outros não. Não é papel do estado decidir o que pode a sensibilidade do pobre.
            Se a arte ainda tem alguma potência é justamente a de dar a qualquer a possibilidade de uma relação estética com o mundo. Quando a escolha do que cada um deve ver é entregue para o mercado, como insinua Ana Paula, estamos, por um lado mimetizando o que a Globo, o SBT e a Record já fazem, por outro esvaziando toda possibilidade criativa tanto do público como dos produtores. O que a secretária coloca na entrevista é que para ela o gosto do espectador já existe, só precisa ser mapeado e atendido. Entretanto, se o cinema guarda alguma potência é justamente a possibilidade inventar formas de estar e se relacionar com o mundo, para criadores e espectadores,  formas que não são antecipáveis por planilhas, público alvo, marca, ou mercado.
            Se o cinema é uma indústria, minha argumentação não tem sentido algum. Entretanto não só o cinema não é uma indústria, como estamos em uma era pós-industrial e é no mundo atual, com suas possibilidades e limites, que somos demandados a pensar.
            Há ainda um outro ponto. Ana Paula Santana diz na entrevista algo que ouvimos também o cineasta Cacá Diegues dizer em recente palestra em Tiradentes: “que a produção se desenvolva no sentido de achar o público para sua obra”  Tal colocação parte do princípio que toda obra tem as mesmas possibilidades mercadológicas, o mesmo acesso às salas, a mesma publicidade, etc. Assim, privatizamos o fracasso e culpabilizamos os artistas e produtores. Não ser um sucesso torna-se um desacordo entre filme e público e não parte de condições dadas: falta de salas, salas ocupadas de maneira nada democrática, falta de filmes nacionais nas TVs, etc. Dizer que o filme nacional não atinge o público porque os realizadores o desprezam é o que mais interessa aos donos do mercado atualmente. Além, é claro, de colocar de lado o valor histórico e simbólico que uma obra pode ter, para além da imediata aprovação do mercado. Uma semana em Tiradentes com centenas e centenas de pessoas que raramente vão ao cinema assistindo a filmes que circulam na Europa, bastaria para vermos que o problema é menos das obras do que da organização do audiovisual contemporâneo.
            Finalmente, ao comentar a Carta de Tiradentes, ela diz que o circuito alternativo gera público mas não gera renda. Pois essa feliz constatação vai no âmago do problema contemporâneo. Os filmes existem e podem existir em número muito maior, o público os deseja, mas as salas não são feitas nem para esses filmes nem para esse público, pelo menos por enquanto. O que fazemos? Enquadramos a criação e inventamos produto para as roletas ou potencializamos a criação e o acesso? É o papel do estado que está em jogo.

19 comentários:

Frederico Neto disse...

Ainda não entendi qual é essa definição de pós-indústrial que o professor tanto cita e tenta circunscrever?

Migliorin disse...

Caro,
tentei deixar a ideia do pós-industrial clara no artigo com link no post acima.
Claro que não faço ali uma retomada do conceito, para tal vale consultar uma larga bibliografia sobre o capitalismo contemporâneo que eu deixo indicada no final do artigo da Cinética. Caso queiras mais, é só avisar.
abraços
Cezar

Adolfo disse...

César,
gosto de suas reflexões. E por isso me proponho a pensar com elas. Para começar, apenas, acho o DOCTv um ótimo exemplo, mas não pode deixar de ver que havia(há?)ali um direcionamento do produto sim para uma janela já definida,sendo que as demais ele pode alcançar, ou não. O mercado, neste caso, entra no início, as tvs públicas precisam de matrial de qualidade para suas grades e os docs vão ocupá-las. E mesmo sendo públicas há um valor de mercado aí nessa operação. E isso não me parece um inibidor do processo como um todo. Claro que o fato de ser uma tv pública tira,em parte, o peso da busca pelo público alvo. ALiás, temos que pensr em nossas experiências de tvs públicas que continuam sendo frustrantes. Até que ponto este ainda será um espaço público a ocupar com a abertura de tantas outras janelas e possibilidades?
tem mais, mas por agora é isso.
abração
Adolfo

Migliorin disse...

Caro,

Obrigado pelo diálogo.
Sobre o DocTV, é verdade, há uma janela, mas minha experiência com o programa jamais passou por qualquer direcionamento de público alvo, seja de classe ou identitário. Acho que muito por conta disso o programa gerou filmes que se tornaram importantes nos debates acadêmicos, na crítica, em festivais nacionais e internacionais e que, obviamente, cumpriram o papel junto ao mercado. Penso em filmes como Acidente, Avenida Brasília Formosa, Sábado a Noite, Morro do Céu, Vilas Volantes etc. Note que não se trata de demonizar o mercado, de forma alguma, mas de fazê-lo mais potente à partir da criação e não à partir do direcionamento.
Novamente, tem todas razão. Que frustrante é a TV pública hoje!
Seguimos.
Abraço grande.
Cezar

paoleb disse...

ave cezar, cada vez mais afiado. eu e o dado vamos produzir agora uma série de programas sobre profissões para adolescentes das escolas municipais. certamente estamos atentos para o nosso público alvo, composto em sua esmagadora maioria por jovens de baixa renda. e qdo pensamos nisto não é no sentido de restringir as possibilidades às quais as chamadas classe C,D e E podem ter acesso, mas para pensar justamente de que formas incluí-las nas apresentacões de profissão que estamos fazendo. (tipo se o cara tem pouca grana pra comprar livro, a quais os programas de bolsa, bibliotecas, empréstimos e doaçãos ele pode recorrer, por exemplo ou para material especial como no caso de medicina, etc) enfim, este é um caso específico, de uma produção audiovisual por encomenda, para ser trabalhada em sala de aula. tb vejo com apreensão o discurso que se desenha no minC hj. concordo com os pontos levantados por vc, sendo que tenho alguma dúvida quando afirmas categoricamente que o cinema não é indústria. porque é e não é. existem muitos caminhos para o cinema e a indústria foi e é um deles. por isto o audiovisual tem além da SAV a Ancine. marcamos nossa posição por um cinema pós-industrial e nisto estou com vc como pensadora e como realizadora, mas existe sim uma indústria do audiovisual - ainda que não deva estar na pauta do minC - e os processos realizados dentro desta indústria podem ser tb legítimos, a meu ver. bj

Unknown disse...

Ótimos artigos, Cezar. Este e o da Cinética expressam bem o que ando pensando sobre o cinema atual. Rodei um longa no ano passado, também pensando nessas questões, chama-se Nove Crônicas para um Coração aos Berros. Estamos em finalização. Ele é conseqüência de uma trajetória em comum entre pessoas de Brasília (como eu, o fotógrafo e o montador), SP e Porto Alegre. Dê uma lida nos dois textos que publiquei no meu site: www.gustavogalvao.com. Um abraço.

Bruno Stehling disse...

Toda obra é feita com foco em um apreciador. No limite, esse foco é privado, quando se volta apenas às questões estéticas do artista, como no alto modernismo, ainda assim é mais comum ver artistas procurando causar um tipo de reação em terceiros. Isso pode ou não gerar valor de mercado. Por fim a obra acaba encontrando ou mesmo gerando um público, e com sorte, em quantidade para gerar capital. Mas limitar a arte a essa procura é a anti-cultura. É o que de mais medíocre poderia se propor na gestão pública sobre a área, e é o que de mais medíocre se realiza na indústria cultural. Uma preocupação da gestora com a sustentabilidade econômica da área é genuína e parte de suas premissas profissionais, mas a transferência da lógica industrial para o campo da cultura, como você, Cézar, muito bem colocou, demonstra uma incapacidade absoluta de compreender a potência da arte e a dinâmica da economia criativa, inclusive sua potencialidade específica de gerar renda, que deve ser também, mas não somente, uma tarefa da secretária.

Migliorin disse...

Valeu Gustavo.

dash disse...

Adequar um filme a alguma classe ou a algum publico nao e adequar a arte. isso nao e papel do Estado. Este é um termo dos negocios. O artista nao tem por papel fazer isso, mas um especialista em mercado, marketing. Ele assiste o filme e confere o publico-alvo. Um filme profundo ou dificil demais nao deve procurar o mesmo publico de quem faz comedia. O que ela quer e que o filme circule com eficiencia, o que e interessante.
Os artistas normalmente nao entendem isso. No Brasil nao existe INDUSTRIA DO CINEMA. Isso existe em Hollywood. Nao confundam as bolas! ,)

Pedrim disse...

belo texto, obrigado César!

Migliorin disse...

Concordo plenamente com as observações que matizam meu comentário sobre a relação da obra com o público. É certo que o cinema e a arte está sempre buscando um público. Entretanto, meu estranhamento diz respeito à forma como um gestor público se apropria da forma menos interessante – e talvez menos eficiente – de pensar o público que é por hierarquização econômica e identitária. Em sala de aula, em casa, o tempo todo, estamos falando para outras pessoas mas essas outra pessoas existem e tem possibilidades cognitivas e sensíveis que não cabem em uma classe social e isso, na arte, é decisivo. A força de uma obra não está no que pode ser antecipado como efeito da própria obra, ou ela é encontro de inteligências, e essas estão em todo canto, independente de classe, ou não é. Quando o esquadrinhamento do outro é pautado pelo mercado, acho que temos um problema. Ou seja, o problema é o mercado ter privilégio em relação ao gosto, às demandas sociais e se constituir como lugar de saber. Apesar de o mercado não ser um problema em si, não é?

Concordo também contigo Paola. O cinema é e não é indústria. O Padilha, por exemplo, trabalha dentro de um sistema industrial, apesar de alterar algumas ordens, distribuindo o próprio filme, por exemplo, e é um exemplo de sucesso. Não sei se eu disse que o cinema não é indústria, acho que não. Mas, essa foi sua forma dominante durante o século XX, entretanto, o que me parece singular é que hoje, do projeto à estética, passando pelo pelas formas de aceso, os filmes podem ser pautados por outros paradigmas, justamente, pós-industrias, como tentei colocar. Não faz sentido fazer uma defesa de um cinema pós-industrial como se ali houvesse alguma garantia de qualidade, o que me interessa é perceber que nossa atividade hoje é diferente daquela que conhecemos quando começamos a trabalhar com cinema, mais de vinte anos atrás. Talvez, para deixar mais claro o que coloquei naquele artigo, não se trata de um projeto de cinema pós-industrial, mas de uma contingência que pode favorecer certas práticas. Se não levarmos em consideração esses novos paradigmas deixaremos de estimular e apreciar uma parcela enorme do que se faz hoje no Brasil e que com frequência me dá grande prazer. Valeu, que bom contar com a sua exigência! bjs

Leandro Saraiva disse...

Oi Cezar,
Quem escreve é Leandro (Saraiva).
O comentário vai em duas partes, devido ao tamanho, tá?

Queria “pedir destaques” nos teus dois textos (este do blog, de reação à entrevista da secretaria, e mais de fundo, da Cinética). Acho que nao discordo de (quase) nada do que dizes, mas temo que, por mal entendidos, propostas bem propositivas (como as que vejo na Carta de Tiradentes e também, por outro lado, na fala da Ana Paula Santana) não se reforcem mutuamente por reiteração do preconceito bobo de cinema de arte x cinema de mercado. Essa bobeira, nem de longe, é tua, e acho que também nao é da SAV, mas pode ser fomentada por quem, no fundo, não quer que o jogo mude.
Bom, vamos lá.
É de bate-pronto, mal acabado, mas blog serve pra isso
1. Nao tenho certeza (literalmente – ainda dou voltas com isso) se concordo com tua introdução sobre as mudanças do capitalismo contemporâneo, inspirada pelo Boltanski. E nao sei se precisamos desse embasamento teórico pra embasar as boas reflexões praticas que tu desenvolves a seguir. O que temo é que o eixo teórico do pós-industrial seja lido, por quem tiver má vontade com as propostas objetivadas em Tiradentes, como um Fla-flu entre “gente que lida com o mundo real da economia” x “teóricos”. Nao precisa nem me explicar que as tuas fontes estão tentando mapear a economia real, por exemplo – como citas – do Facebook. É que eu estou pensando nos “agentes da cadeia produtiva industrial”, que tem – ainda? – enorme poder de fogo, e de imprensa

2. Quero dizer, com isso, que, estejamos ou nao vivendo uma mutação no capitalismo, a percepção de que há um grande movimento de produção e circulação, fora das salas de cinema, da produção audiovisual-digital-cinematográfica, é um fato. E mesmo que nao tenhamos garantias de que há nesta circulação uma produção potencial de valor (pode ser que sim, pode ser que nao – vai depender dos empreendedores, que conseguirão, ou nao, capitalizar esses contatos e fluxos neoaudiovisuais), enfim, mesmo sem essa garantia, a realização do encontro com o público (com um público, ou vários, enfim, com um monte de gente) já acontece.

3. Isso é importante para ler um trecho da entrevista de Ana Paula Santana de modo otimista e propositivo: eu nao vi, como dizes que ela disse, ela dizer que ‘o cinema alternativo gera público mas nao gera renda”. O que ela diz é que ela pretende propor mecanismos que estimulem aposta em públicos-alvo. Bom, isso pode ser lido de modo crítico, ainda mais que ela mesmo sublinhou as “classes C, D e E” do FICTV. Mas também podemos ser mais generosos, e entender – e dizer a ela que há essa possibilidade de entendimento, inclusive – que essas obras criadas e circuladas fora do mercado tem seus caminhos de encontrar seus publicos. Pra isso acho que basta afastar do centro da fala dela esse papo do “C,D e E”. Sendo claro – eu participei do seminário de formulação do FICTV, e de outros papos durante a elaboração do Mais Cultura, esse negocio de C,D e E foi um jeito de justiificar grana pra CUltura dentro do PAC. Em termos de desenvolvimento de projetos, até onde eu saiba, o processo de propostas e desenvolvimentos dos projetos de séries foram bem proximos à liberdade criativa do DOCTV. Nao acho que teve essas coisas tipo “target” e afins (bom, talvez um pouco, com a escolha de personagens meio “herdeiros” do Acerola e Laranjinha, mas os formatos narrativos são bem variados – mas o importante é que houve razoavel liberdade, e é os cortar o C,D e E e não acreditar muito nisso, o que não é dificil, porque acho que ningiuem acredita mesmo)
Enfim, o que quero sublinhar é que é possivel – como sugere a Carta de Tiradentes, aliás - reinvindicar, junto à SAV (e acho que, sim, junto à ANCINE – se esforçarndo pra QUEBRAR esta tendencia de SAV=arte, ANCINE=industria), que haja politicas para o circutto de salas, para os circuitos nao-comerciais, para a internet. para as tvs, publicas e privadas, com as obras circulando por essas janelas, e se valendo das polticas publicas de cada uma, de acordo com suas potencialidades
(continua..)

Leandro Saraiva disse...

(continuando...)
4. É verdade que nem sempre essas “potencialidades” são vislumbraveis a priori. Todos sabemos dos misterios daas bilheterias. Mas, por outro lado, planejar uma minisserie de tv não é o mesmo do que planejar uma ação de produção colaborativa via internet (já fiz as duas coisas, e é bem diferente). O que quer dizer que pode haver diálogo com as propostas de “engenharia de produção”, pra usar tua expressao, desde que (ou para que) elas sejam inspiradas pelo DOCTV – que não deixa de ser uma baita engenharia de produção (que, como diz o Adolfo, num comentário aqui no blog, tinha a tv como janela desde o inicio, induzindo, inclusive, uma participação das tvs publicas)

5. Mas tudo isso pra chegar no que me parece o mais importante: a proposta de COLETIVOS DE PRODUÇÃO. Este pode ser o carro chefe para todas as negociações, com a SAV e com a ANCINE. A SAV trabalha com a lógica do autor-proponente (projeto previo, autor individual, produtora agente economico “industrial”) e a ANCINE com a lógica da produtora agente economico. Fomento a COLETIVOS muda a conversa. Tens toda a razão de chamar a atenção para a existência, presente e atuante, de coletivos. Mas pode haver negociação, para que SAV e ANCINE criam tanto linhas de fomento a esses coletivos já constituídos, como fomentos de constituição de novas associações (que serão provavelmente mais proximas a uma lógica industrial, mas se houver as duas politicas, qual o problema?). O FOMENTO A COLETIVOS E A PROCESSOS MUDARIA A LOGICA DO FOMENTO!!!! Isso é o crucial, na minha opininão.

6. E, pra completar, essa proposta do fomento aos processos (nao produtos pre-projetados), que aliás não está explicita na Carta de Tirandentes, que pode ser lida na logica do fomento individual, a “projetos” (e nao processos) autorais, enfim essa proposta tem que enfrentar o desafio da avaliação de resultados. Nem de longe precisa ser de mercado (até pode ser), mas tem que ser meritocrática. Festivais – ainda mais internacionais – são legitimadores; circulação na internet, obviamente; envolvimento em processos extra-cinematograficos tambem (penso no Video nas Aldeias, por exemplo, e numa oficina que coordenei agora em dezembro ra criação de videos da Ação Grio). A discussao de indicadores de avaliação é já um campo de debate complexo e importante, por exemplo, na universidade e no terceiro setor, e poderia se tornar um tema de debate no audiovisual, pra encorpar esta visao do FOMENTO A COLETIVOS D CRIAÇÃO E A PROCESSOS (que podera gerar produtos até, também, de sucesso em termos de renda, mas não só).

7. Se, ainda e sempre inspirados pelo DOCTV (e quem sabe um pouquinho pelo Ponto Brasil) fosse possível somar a isso – sem cair na lógica produtivista do “quantos minutos de programação??’ que impera na tv – a possibilidade de exibição nas tvs públicas, essa nova lógica de fomento fecharia o “círculo virtuoso”, dando a tv não apenas “produtos de ponta”, como diz Ana Paula sobre o FICTV (o que é bom também), mas até fornecendo umarazão de ser para as tvs publicas.

8. Pra resumir: acho que tanto a Carta quanto teus textos podem ajudar na formulação de pautas que não sejam os reivindicateorias, de “fomento para o novo cinema autoral”, mas para uma discussão aprofundada sobre a lógica do fomento ao audiovisual. SAV e ANCINE podem ser sensíveis a experimentar na forma tambem no fomento.

Abraço
Leandro

Migliorin disse...

Caro,

Havia me dito que tentaria escrever um segundo artigo fazendo também alguns destaques, tentando responder algumas críticas, mas em diálogo fica bem mais interessante.
O primeiro ponto que destacas é realmente importante. Não se trata de cinema de arte X cinema de mercado. Na verdade, não se trata nem de cinema caro X cinema barato, nem de cinema de autor X cinema de massa. Por conta, justamente, da retirada desses pares dicotômicos, acho que a compreensão de que há uma sobreposição de uma outra forma de pensar dentro do capitalismo me parece muito importante. A noção de uma era pós-industrial me ajuda a entender que há uma contingência econômica, de meios e também que toca as subjetividades que faz com que outras operações no meio do cinema possam acontecer. Muda a forma de produção, de acesso, de relação com a tecnologia, com a universidade, com a crítica, com a profissionalização e com o próprio mercado.
Como dizia à Paola, acima, o cinema hoje tem uma cena, um meio, um campo de possibilidades que definitivamente é muito diferente daquele em que me formei 20 anos atrás em que a retórica da indústria, que pautou a maior parte da relação do estado com a atividade, não dá conta. O contrário da indústria era tudo aquilo que ficaria sem público, artesanal, miúra, de autor, etc. Pensar em um cinema pós-industrial para mim é pensar que é possível estar fora da indústria sem ser marginal ou alternativo, mas se relacionando com esse campo, com as características que ele tem hoje.
Caro, acredito que o FICTV esteve próximo ao DocTV e fico contente em te escutar sobre as razões para essa divisão de classes. Felizmente, na prática as coisas acabam tendo que enfrentar os processos que são mais complexos que essa segmentação que tenta diferenciar a sensibilidade do rico e do pobre.
Talvez v. tenha lido a entrevista online, que não está completa. No jornal havia uma segunda página onde há essa frase que é uma constatação precisa de boa parte do circuito: gera público mas não gera renda. Esse é o desafio, ter retorno financeiro, garantia de continuidade de produção, sem restringir o acesso. Diante desse desafio, que eu entendo como sendo pós-industrial, não adianta recorrer às velhas fórmulas.
Há ainda exemplos de imbrincamento radical entre as duas eras. Talvez o exemplo mais singular seja o de Tropa de Elite. O primeiro filme circula de maneira caótica, é visto por milhões de pessoas em cópias piratas, o acesso é gigantesco. No segundo se restringe o acesso de algo que já está disseminado e se ganha na roleta. Coletivos e processos. É isso, estou contigo. Acho que há nesse foco uma possibilidade que toca todas as fazes da produção, permite a pesquisa, tanto de produção como de linguagem e acesso. Permite produção continuada, etc. Acho ótima o que colocas sobre a possibilidade desse foco ser articulado entre SAV e Ancine. Definitivamente, me parece que esse audiovisual que estamos falando, que eu chamei de pós-industrial porque me ajuda a pensar, é capaz de propor uma relação inovadora com o estado. Claro que muita coisa se forjou e se inventou nos projetos tocados nos últimos anos, entre eles, claro, o Ponto Brasil. A sensação que tenho é que estamos em um momento muito intenso e que seria realmente uma lástima perder o foco. E ai tens toda razão, se o debate for feito em torno de um novo cinema autoral, jogamos a novidade fora e a enquadramos dentro do que já conhecemos.
Leandro, depois que escrevi o comentário sobre a entrevista da Ana Paula Santana várias pessoas me disseram: “Ela está aberta, quer ouvir!” Que bom! Ao trabalho.
Caro, muito obrigado pelo teu comentário. De alguma maneira ele organiza algumas coisas para mim.
Abraços
Cezar

Eduardo Aguilar disse...

Já trabalhei em cinema, tive a sorte de ficar ao lado de gente como Khouri, A.P. Galante e Carlão Reichenbach para citar alguns nomes. Coloco esse histórico apenas para não parecer q. sou um paraquedista na questão. Atualmente coordeno um curso no Senai - vl marina/sp voltado para a formação de mão de obra especializada, no caso, eletricistas. Veja, sei q. o Senai do Rio está começando a desenvolver cursos nessa linha, no q. eles chamam de ind. criativa, sei tb. do seu pensamento sobre a estrutura segmentada das escolas acadêmicas voltadas para o audiovisual, mas vc. a de convir comigo q. qdo surge esse pensamento da parte da ind. (Senai) focado na formação de mão de obra especializada, é preciso parar e pensar se os meios de produção e/ou criação existentes no audiovisual permitem q. um coletivo se responsabilize pelas ligações elétricas necessárias a uma produção audiovisual.

Lembro-me q. em Tiradentes, na mesa de um bar, um amigo diretor colocou a questão dos direitos autorais e coisa e tal, e um outro amigo, fotografo, perguntou ao mesmo pq. as produções audiovisuais não consideravam os técnicos na possibilidade de eventuais lucros? Pq. um fotografo não era tido como tão autor qto o diretor? etc e tal.

O assunto é bem instigante e sua argumentação tanto aqui qto na cinética é excelente, mas eu acho interessante o pensamento da nova secr., veja, qdo vc. fala nas possibilidades de mercado, vc. cita Roterdã, cita outros festivais e plataformas alternativas, com todo o respeito q. vc. merece, volto e meia estou em Tiradentes dando wksps e sinceramente, nessa nova versão focada em filmes alternativos - não ouso dizer experimentais, pois já vi essas propostas estéticas a mto tempo atrás - não parece q. o público embarca na proposta, o q. rola é uma espécie de happening. Enfim, não acredito q. se estabeleça um diálogo entre o público presente e a obra exibida, mas claro, Tiradentes consegue atrair mta gente do meio audiovisual e isso fomenta os debates.

Bem, a conversa é longa e no momento não posso prosseguir, mas eu entendi q. qdo a secr. fala na idéia do produtor alternativo deixar claro com qm. quer dialogar, ela aponta justamente para q. o tal produtor possa dizer se o foco são os festivais, ou a internet, ou salas de perifa, ou..., e as opções não são excludentes.

Migliorin disse...

Eduardo Escorel sobre a entrevista: http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/vai-e-vem-na-secretaria

Frederico Neto disse...

E o Eduardo Escorel deu a trollada final... e com classe.

Migliorin disse...

Caro Eduardo,

É ótimo você lembrar que o cinema também é feito com eletricistas e tantos outros profissionais. Sou professor do departamento de cinema da UFF onde não temos eletricistas ou uma disciplina que ensine elétrica. Recentemente fizemos um convênio com o Núcleo de Produção de Niterói para que uma oficina pudesse acontecer. Quando pensamos em coletivos é claro que isso não significa uma autonomia absoluta, isso seria o contrário da criação coletiva. A ideia de um coletivo é justamente a sua possibilidade de abertura para vários arranjos, várias composições, dependendo do processo e do projeto. Ao mesmo tempo, os eletricistas no set são frequentemente vistos como as pessoas “da pesada” que não participam do processo criativo. Não é essa uma forma bem específica, de tradição industrial, de encarar a presença dessa pessoa no set?

É interessante você trazer a questão dos direitos autorais. É certo que essa é uma discussão que passa diretamente pelos novos tipos de acesso que uma era pós-industrial traz. Fiz alguns breves comentários nesse sobre isso aqui no blog: http://a8000.blogspot.com/2011/02/direitos-autorais-ou-como-fazer-logica.html - http://a8000.blogspot.com/2011/02/minc-caetano-e-direitos-autorias.html
Mas te adianto, definitivamente não me parece que seja na ampliação da individualização do ganho com a propriedade intelectual que resolveremos o problema. Imagina ter um Ecad para o fotografo, outro para o roteirista, etc. O problema não é o fotografo ser visto como autor é a ideia de autor fazer menos sentido no filme. Assim, me parece que se o cinema segue os moldes da indústria, o filme é do produtor, é ele que negocia os ganhos – participações e salários, mas nada nos impede de pensar em outros modelos, desde que não seja na multiplicação de pessoas que podem restringir o acesso.

Caro, Tiradentes faz parte de um gigantesco mercado mundial de filmes que não são pautados pelas estratégias narrativas e estéticas dominantes, o que não significa que elas sejam novas ou revolucionárias. O que me parece especial no que chamei de um cinema pós-industrial passa pelas estéticas, mas, é sobretudo uma contingência de produção, de acesso e subjetiva que não pode ser ignorada, sob o risco de esvaziarmos uma enorme potência do audiovisual contemporâneo. Qualquer debate sobre o gosto aqui seria inútil, entretanto me parece que há um espaço no Brasil e no mundo para os filmes que passam ali, não fosse isso esses festivais não teriam tanta relevância. Te digo depois de alguns anos indo a Tiradentes, se os filmes não estabelecessem diálogo com o público, o festival tinha mudado, a praça não estaria ainda tão cheia, a tenda tão lotada e os debates animadíssimos.
Sei que não é o que estas a dizer, mas a ideia de “diálogo com o público” pode ser muito perversa, ela por vezes pressupõe um público medíocre, sem nenhuma autonomia. Esse diálogo é algo que se inventa e frequentemente filmes que tem grande público não tem diálogo nenhum.

Eduardo Aguilar disse...

Essa conversa é mto interessante, e novamente não vou conseguir abordá-la como gostaria, mais uma vez pela falta de tempo, enfim...

O termo "da pesada" dá bem a medida do debate. O termo q. é de uso corrente no meio mostra o q. o meu amigo fotografo queria dizer, na verdade, ele não queria apenas tocar na questão do direito autoral, mas nesse aspecto sectário, nessas divisões, ele inclusive, defendeu uma divisão de eventuais lucros com principalmente a equipe "da pesada". O discurso se contrapunha ao do diretor no sentido de dizer: "Olha, vcs. nos procuram, oferecem cachês baixos por conta de viabilizar a obra de vcs e não estão dispostos a dividir lucros, prêmios, vendas pra tv qdo o filme fica pronto."

Ainda sobre eletricistas/maquinistas, pelo q. sei vc já esteve em um set, e certamente sabe q. essas 'técnicos' são infinitamente criativos, apresentam soluções q. viabilizam planos complexos e/ou propõe planos alternativos via soluções apresentadas, quer dizer, o fulano faz a tal da traquitana q. permite o plano 'maluco' ou mesmo, sugere a possibilidade de um 'plano maluco' por conta de uma traquitana q. vislumbra.

O q. quero dizer, é q. há mta criação nessas funções e ao mesmo tempo, se o audiovisual não tem como prescindir delas no quesito formação técnica, tb. não consegue prescindir dos meios de produção atrelados a locadoras (eqpto de luz, mov. e câmera + pós finalização), permanecendo atrelado a uma estrutura ind. e para se livrar dela como sugeriu o Coppola ao dizer q. o digital um dia iria permitir q. um garoto usasse uma câmera como uma caneta, acho q. ainda demora mais um bom tempo.

No mais, como vc. disse, vejo a mostra de Tiradentes por um outro viés, não podemos confundir as pessoas q. fazem o audiovisual e q. em consequência se interessam pelos debates, com realmente criar algum ponto de contato com o público presente.