Como tenho especial interesse pela retórica em torno do trabalho no mundo contemporâneo, comprei a mais recente revista Época Negócios para ler uma matéria sobre a rotina de trabalho de cinco presidentes de grandes empresas.
Antes de chegar no texto, a primeira imagem da matéria já é extremamente reveladora dessa retórica.
Um dos retratados na matéria é fotografado de costas andando em um corredor em seu lugar de trabalho de mãos dadas com seus dois filhos. No final do corredor uma câmera de vigilância. Como diz o André Brasil, uma imagem dessas dispensa qualquer análise. Já está tudo ali, o lugar vigiado mas que permite a entrada da família, mas, sobretudo a fusão trabalho vida. Como escreveu o outro André, o Gorz, "não há mais fora do trabalho."
A rotina de trabalho que interessa a matéria inclui os filhos, a família, as atividades físicas, o consumo, a ocupação do tempo, a saúde etc. A rotina de trabalho é na verdade a vida."Quando Utsch está à mesa, todo almoço é de trabalho"
Mário Utsch, presidente da Alpargatas aparece na matéria em várias fotos, nas maiores ele aparece 1- em sua corrida matinal, 2 - fazendo embaixadinha 3 - sentado descontraído em uma mesa. Mas, nas corridas ele leva um gravador e grava todas as novas idéias e tudo que lembra que deve fazer. Ao chegar ao escritório entrega o gravador para a secretária deve ouvir e anotar as idéias que aparecem em meio à respiração ofegante.
Outro ponto curioso que impressiona o jornalista é uma reunião de Utsch com um dirigente de um clube de futebol. O presidente e os diretores não querem tomar nenhuma decisão naquele momento. "Tensão? Ao contrário. A reunião dura quase uma hora de incontáveis gargalhadas. E termina conforme o previsto, sem um acordo."
A vida se tornou, na retórica e na prática do trabalho contemporâneo, o que há para ser incorporado e modulado pelo capital, longe das práticas disciplinares. Já sabemos isso há uns 40 anos, mas, mais do que nunca essa prática se naturalizou. Tal modulação e controle encontra em uma frase de Utsch uma pérola dessa retórica que não dispensa uma boa dose de cinismo e que diverte o jornalista. "Motivação? É manter a galinha viva, a raposa com fome e o galinheiro aberto"
4 comentários:
Já sabemos disso há uns 40 anos, Cezar, mas a ficha só começou a cair - em câmera lenta - agora. Sobre a frase do presidente da Alpargatas, com a qual você encerra o post, me lembrei da cena de abertura de Aquele Querido Mês de Agosto: ext./dia; galinhas vivas dentro de um galinheiro, que parece aberto, e uma raposinha faminta o lado de fora.
Abração.
Vinícius.
Genial essa lembraça.
Acabo de incorporar ao artigo que estou escrevendo em que aproximo do filme do Miguel Gomes do devir-Tupinambá.
gracias
achei essa entrevista aqui emblemática: http://www.publico.pt/Sociedade/um-suicidio-no-trabalho-e-uma-mensagem-brutal_1420732
mais pelo que deixa entrever do que pelo que diz, de fato, talvez.
bjs.
É interessante como este tipo de matéria vende revista...Lógicamente os compradores se espelham em uma atmosfera contada pela revista, que na grande maioria dos casos é desvirtuada..
Trabalhei uns bons anos na Alpargatas e conheço bem o presidente... Ele não é nada disso que tenta vender..Aliás a empresa só vive hoje de um fenômeno criado muito antes da chegada do Marcio chamado Havaianas....As outras divisões da empresa estão agonizando.....
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