4 de nov. de 2007

Cinema digital - Notas para um debate

Primeiras notas sobre Cinema digital, tema do debate de terça-feira em Juiz de Fora - Festival Primeiro Plano

Cinema Digital
Um anacronismo
Por um lado falamos de um dispositivo instalativo para exibição de imagens, inventado, como sabemos há mais de 100 anos. Isso parece ser o cinema, um lugar onde espectadores tem hora para entrar e sair e que devem se dispor a recebe luzes na sua frente e som por todos os lados sendo entretanto convidados a não se mexer e a não utilizar o olfato e o tato.
O espectador de cinema é esse sujeito que aceita reduzir suas condições de percepção do mundo para assim ganhar outras, perceber outras coisas.

Esse espectador, se ele nos interessa pouco mudou nesses cento e poucos anos.

Entretanto quando me direciono ao digital, me parece aqui efetivamente estamos diante de algo efetivamente transformador.

Uma transformação que se limitada ao dispositivo cinema – a sala, os espectadores, a imobilidade, etc, é uma transformação muito pequena. O que efetivamente acontece e muito maior e diz respeito a toda uma mudança no universo das imagens e consequentemente, da cultura e dos indivíduos.

É dessa dimensão que me parece necessário partir quando pensamos a imagem digital.

O principal problema me parece então o cinema sob o efeito do digital.

Minha crença no digital depende de sermos capazes de perturbar de maneira compulsiva e significativa os lugares que a produção cinematografíca inventou. Diretor, espectador, produtor, distribuidor, etc.
Lugares esses que são pautados por práticas fortemente anti-democráticas.

Duas palavras então sobre a democracia, uma vez que o efeito do digital é frequentemente pensado como o que democratiza a produção, por ser mais baratos etc. Outros posts sobre o tema, inspirados nas leituras de Jacques Rancière.

A democracia é a possibilidade de qualquer um se fazer contar como participante da comunidade, sem título que legitime tal participação
Ou seja na oligarquia tinha direito a fazer a fala valer àquele que possuem bens.
Na aristocracia, esse direito estava reservado aos “melhores”.
Na democracia - e ai o escândalo da democracia - o direito a fazer valer a fala, o gesto, é direito de todos, sem um título ou legitimação que anteceda a própria fala, o próprio gesto.

Desdobra-se daí a segunda observação em relação à democracia, O direito à fala – pensemos em produção de imagens, por exemplo, - implica que esta fala precisa ser escutada enquanto tal, ou seja que uma imagem, além de produzida precisa ser vista e precisa ter a potência de se fazer presente como o que pode reconfigurar os lugares de fala e de escuta.
Mais claramente, na aristocracia, e na oligarquia, quem tinha direito de dizer o que seria escutado eram os que tinha o título para tal. Os mais ricos, os mais sábios – poderiam ainda ser os enviados por Deus, por exemplo. Na democracia esse título não existe, cabe à própria produção de uma imagem, de uma palavra a função de existir e criar o “ título” necessário para se fazer presente na comunidade dos homens.

O que isso tem haver com o cinema digital?

Se estamos de acordo que o cinema digital implica uma democratização do cinema como um todo. Isso quer dizer duas coisas. Qualquer um pode fazer suas imagens, mas para que essas imagens possam contar como imagens que efetivamente existam, como imagens que fazem uma diferença na comunidade, no que é dado a dizer e sentir, é preciso que elas inventem sua legitimidade e essa é uma tarefa estética e política – inseparavelmente.

Um comentário:

Vinícius Reis disse...

Caro,
o Jacques Rancière, que tanto você tem citado, escreveu um texto muito bonito sobre os Straub. Achei num blog de uns cinéfilos portugueses:
http://aindanaocomecamos.blogspot.com/
2006/11/palavra-sensvel_17.html

Porta-vozes
«São corpos porta-vozes; atestam o que diz o texto e a potência comum da sua escrita. A boca ganha aqui um importância assinalável. O que vemos é antes de mais o trabalho da boca que articula cada sílaba, cada uma das palavras da querela. A maneira como os camponeses sobre-articulam e fazem ressoar as alcunhas e as injúrias do clã contrário. Mas também que essa articulação deve tornar cada uma das sílabas tão sensoriais como os blocos de gelo, a ricota ou o odor das fogueiras de louros (feu de lauriers) de que elas falam. À tradicional mimética expressiva opõe-se uma espécie de equivalência ou igualdade de intensidade. (...) a boca deve a cada vez fazer o esforço de manter a palavra à altura da experiência, à altura comunista da língua. É para o que servem, creio, esse olhos tão frequentemente caídos num caderno que não parecem ler realmente.
Isto supõe uma intervenção única sobre o texto, que consiste não em acrescentar-lhe ou retirar-lhe palavras, mas em endireitá-lo instaurando uma disposição lírica. Danièlle Huillet, com efeito, fez da exposição contínua em prosa de Vittorini um poema em verso livre ou em versículos, que deve ressoar um pouco como uma tradução de Sófocles por Hölderlin ou de Ésquilo por Claudel. É preciso então que a voz se adapte às exigências do poema: exigência de relance perpétuo da voz, de adesão a cada palavra, de igualdade entre intensidade da experiência dita e intensidade verbal.»

Natureza
«A nossa atenção reparte-se entre as coisas ditas pelos lábios daquele que fala e esses acontecimentos de luz que se passam sobre a sua cabeça ou ao lado sobre as folhas mortas. Existem todos estes ruídos que não cessam de se misturar às palavras ou de pontuar os silêncios: cantos de pássaros, zumbidos de insectos, canto do galo ao longe, etc. É o que espanta sempre num filme dos Straub: começa um pouco como em muitos filmes, com pequenos pássaros e ruídos de água. Mas nos filmes normais, trata-se apenas de dar a atmosfera de euforia que deve presidir à visão do filme: em suma, uma captatio benevolentiae sensível. Nos Straub, pelo contrário, continua, nunca pára. A natureza, com efeito, é coisa diferente de um repertório de efeitos euforisantes. É uma potência física, metafísica e mitológica.
(...) A natureza é o que não cessa, mas também o que sem cessar apaga os traços.»

Estar salvo
«História de salvação (...). Nos Straub, um jogo mais complexo se instaura em torno da cantata [de Bach] e da palavra da promessa. À promessa divina continuam a opor uma promessa humana e uma promessa que já se efectuou. Não se deve dizer, como na cantata: aquele que crê será salvo. Deve dizer-se: aquele que crê está salvo. Está salvo na eternidade de um aqui e agora da experiência mantida, tornada palavra de vida. O movimento do filme conduz-nos assim do processo a uma nova eucaristia, à afirmação de uma salvação que já lá está e cuja potência se afirma, no crescendo final, passando pela evocação das fogueiras de louros a essa grande panorâmica ascensional que nos deixa na abertura dos elementos reconciliados e de um comunismo elevado a uma dimensão de eternidade.»

Sobre Operai, contadini (2001) de Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub: Jacques Rancière, «La parole sensible», in Cinéma, n.º 5, 2003, pp. 73. 77. 78.