Passo por dois artigos de psicanalistas que gostam muito de Estamira, o filme. (post anterior)
O psicanalista Luiz Fernando Gallego inicia sua crítica elogiando o filme , “pela respeito à escuta do outro, do diferente, do estranho”.
Cotardo Caligaris, para a Folha de São Paulo 03/06 segue na mesma linha: “Marcos Prado permitiu que Estamira lhe e (nos) falasse porque quis e soube escutá-la como se escuta, em príncípio, um semelhante". Independente dos gostos pessoais e da qualidade de cada uma das críticas, me chama atenção esse elogio porque o cineasta escuta. Nos dois casos não se trata de textos para iniciados em psicanálise, então a escuta não é um conceito, imagino, mas a escuta mesmo, a atenção que alguém dedica ao outro que fala.
Mas, qual o mérito em escutar? Será que a escuta falta? Será que esse elogio se dá porque os psicanalistas tem a percepção de que hoje ninguém escuta ninguém? Não sei.
Minha primeira impressão é de que as duas críticas parecem, antes de mais nada, um elogio à própria psicanálise, um elogio do lugar mesmo dos críticos/psicanalistas.
Mas psicanálise não tem espectador, no cinema a escuta não basta.
Na verdade, o grande incômodo em Estamira é que a "escuta" é acompanhada da inscrição daquelas falas em um lugar, entre a poesia e arte, Estamira é uma singularidade que escapa. A loucura é o que "libera" Estamira e dessa forma o espectador é protegido. "Estamira, apesar de tudo". Uma linha muito parecida com o que faz o jornalismo.
3 comentários:
não li as criticas que você comenta. mas nos trechos que você cita, incomodam as palavras o "estranho" e "semelhante". parece aquele texto racista que diz que "gosta de preto como se fosse branco". enfim. mas o teu caminho me lembrou de um trecho do image-temps que reli agora, onde ele termina falando que falta povo, lembra? acho que pode ser bom pra esse teu pensamento da democracia tb.
em livre traducão:
"A célebre fórmula: "o que é cômodo com o documentário é que sabemos quem somos e o que filmamos" deixa de ser válida. A forma de identidade eu=eu (ou sua forma degenerada, eles = eles) deixa de valer para os personagens e para o cineasta, no real como na ficção. O que deixa advir pouco a pouco, em graus mais profundos, o "Eu sou um outro" de Rimbaud."
Legal você lembrar disso Paola.
Fiquei aqui tentando perceber as nuances entre o Deleuze falar que "é preciso que o ato de fala se crie como uma língua estrangeira em uma língua dominante, precisamente para exprimir uma impossibilidade de viver sob a dominação"
e o Rancière quando diz que "A política se apoia no que vemos e no que podemos dizer, sobre quem tem a competência para para ver e a qualidade para dizer, sobre as propriedades dos espaços e dos possíveis do tempo." (Partilhas do sensível)
De qualquer forma, nos dois casos, estamos diante de formas de pensar uma relação muito íntima entre estética e política. Ou seja, a experiência política não está desconectada de uma experiência estética que tem a poética como princípio e não a representação.
Ainda sobre essa citação do Deleuze, tem uma coisa eu acho que é possível ainda aproximar os dois. Quando o Deleuze fala de uma língua estrangeira, essa língua é uma diferença que racha a língua dominante. Não se trata assim de reivindicar um lugar - contra a dominação - no interior da língua dominante. A reivindicação é assim uma estética que parte da igualdade.
Isso é uma preocupação constante do Rancière e o livro que eu já comentei contigo, O mestre ignorante, tem essa noção de igualdade como princípio para qualquer relação. Negando, assim uma oposição entre saber e ignorância.
Cito o Rancière; "Quem parte da desigualdade e se propõe a reduzí-la, hierarquiza as desigualdades, hierarquiza as prioridades,hierarquiza as inteligências e reproduz indefinidamente."
(Aux Bords du politique p.95)
Muito bom né?
Não quero me alongar, mas indo diretamente nessa passagem que você lembrou, há mais uma relação entre Deleuze a Rancière, com quem venho pensando essa idéia de democracia, que é a idéia de que esses enunciados que aparecem "como uma língua estrangeira" são necessariamente coletivos. Isso, claro, é obvio em Deleuze; rizoma, discurso indireto livre, agenciamentos, etc, são conceitos que se formam em torno dessa idéia. Em Rancière me parece que isso é muito menos claro. Mas tenho entendido que para Rancière essa dimensão coletiva e mútipla das subjetivações são propriamente a política e que, em oposição, a polícia é o que tenta eliminar as tensões e dissensos no agenciamento em que os indivíduos aparecem.
Rancière concordaria com Deleuze, quando esse diz que o o cinema político moderno tem como base a constatação de um povo que falta?
Arrisco dizer que sim.
A política para Rancière é também uma desidentificação, uma separação dos nomes próprios e, nesse sentido, uma criação de um povo em devir.
ps. só para lembrar, o Rancière tem um texto muito crítico à divisão que o Deleuze faz entre imagem-tempo e imagem-movimento, no A fábula cinematográfica.
meu querido
prazer em poder dividir pensamentos por aqui. não conheço o texto do rancière, fernanda chegou a falar comigo algo sobre, vamos ver se chego nele alguma hora. com certeza o próprio deleuze fala que quando propõe este sistema de dois regimes de imagem - o cristalino e o orgânico, o da imagem tempo e o da imagem movimento - um está sempre sob o risco do outro, a imagem tempo coagulando imagens movimento, não se tratam de dois modelos independentes, excludentes isto ou aquilo, mas mais isto E aquilo, cada um uma forma de aparição do outro e vice-versa.
quanto à fala coletiva, outro dia o luis alberto lançou esta: no mundo quântico não há mais indivíduos, mas divíduos; ou melhor dizendo multíduos. não é mais possível pensar as singularidades destacadas das zonas de probabilidade espaço- temporais em que flutuam, devires, linhas de fuga, tessituras que as constróem e por elas são construídas. multíduos. lindo isso. como você bem expôs, saímos do terreno da representação para o da poeisis. que volta a metafísica teve que dar!
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