Primeiras notas sobre Cinema digital, tema do
debate de terça-feira em Juiz de Fora - Festival Primeiro Plano
Cinema Digital
Um anacronismo
Por um lado falamos de um dispositivo
instalativo para exibição de imagens, inventado, como sabemos há mais de 100 anos. Isso parece ser o cinema, um lugar onde espectadores tem hora para entrar e sair e que devem se dispor a recebe luzes na sua frente e som por todos os lados sendo entretanto convidados a não se mexer e a não utilizar o
olfato e o
tato.
O espectador de cinema é esse sujeito que aceita reduzir suas condições de percepção do mundo para assim ganhar outras, perceber outras coisas.
Esse espectador, se ele nos interessa pouco mudou nesses cento e poucos anos.
Entretanto quando me
direciono ao digital, me parece aqui
efetivamente estamos diante de algo
efetivamente transformador.
Uma transformação que se limitada ao dispositivo cinema – a sala, os espectadores, a imobilidade, etc, é uma transformação muito pequena. O que
efetivamente acontece e muito maior e diz respeito a toda uma mudança no universo das imagens e consequentemente, da cultura e dos indivíduos.
É dessa dimensão que me parece necessário partir quando pensamos a imagem digital.
O principal problema me parece então o cinema sob o efeito do digital.
Minha crença no digital depende de sermos capazes de perturbar de maneira compulsiva e significativa os lugares que a produção
cinematografíca inventou.
Diretor, espectador, produtor, distribuidor, etc.
Lugares esses que são pautados por práticas fortemente anti-democráticas.
Duas palavras então sobre a democracia, uma vez que o efeito do digital é frequentemente pensado como o que democratiza a produção, por ser mais baratos etc. Outros
posts sobre o tema, inspirados nas leituras de Jacques
Rancière.
A democracia é a possibilidade de qualquer um se fazer contar como participante da comunidade, sem título que legitime tal participação
Ou seja na oligarquia tinha direito a fazer a fala valer àquele que possuem bens.
Na aristocracia, esse direito estava reservado aos “melhores”.
Na democracia - e ai o escândalo da democracia - o direito a fazer valer a fala, o gesto, é direito de todos, sem um título ou legitimação que anteceda a própria fala, o próprio gesto.
Desdobra-se daí a segunda observação em relação à democracia, O direito à fala – pensemos em produção de imagens, por exemplo, - implica que esta fala precisa ser escutada enquanto tal, ou seja que uma imagem, além de produzida precisa ser vista e precisa ter a potência de se fazer presente como o que pode reconfigurar os lugares de fala e de escuta.
Mais claramente, na aristocracia, e na oligarquia, quem tinha
direito de dizer o que seria escutado eram os que tinha o título para tal. Os mais ricos, os mais sábios – poderiam ainda ser os enviados por Deus, por exemplo. Na democracia esse título não existe, cabe à própria produção de uma imagem, de uma palavra a função de existir e criar o “ título” necessário para se fazer presente na comunidade dos homens.
O que isso tem haver com o cinema digital?
Se estamos de acordo que o cinema digital implica uma democratização do cinema como um todo. Isso quer dizer duas coisas. Qualquer um pode fazer suas imagens, mas para que essas imagens possam contar como imagens que
efetivamente existam, como imagens que fazem uma diferença na comunidade, no que é dado a dizer e sentir, é preciso que elas inventem sua legitimidade e essa é uma tarefa estética e política – inseparavelmente.