27 de nov. de 2007

Estamira, de Marcos Prado e democracia

Com atraso assisti Estamira de Marcos Prado.
Por coincidência há uma entrevista com ele no Globo de domingo em que ele conta que sua produtora ajuda Estamira, a personagem, com 500 reais por mês.

Cléber Eduardo já escreveu uma ótima crítica sobre o filme na Cinética. Uma crítica ampla que relaciona Estamira com outros documentários contemporâneos.

Tenho tentado, nesse blog e em outros escritos, pensar o documentário à partir da noção de democracia, sobretudo à partir da idéia de que no doc. é possível a construção de um "campo democrático" e que nesse campo há um encontro, uma tensão entre indivíduos, tecnologias, palavras, enuciações as mais diversas.

A noção de democracia que tenho trabalhado está diretamente ligada aos escritos de Rancière sobre política e democracia mesmo. Já expus essas noções aqui e não se trata de voltar a elas.
Esta difícil aproximação entre o documentário e a democracia como forma de pensar a relação entre os diversos atores que constituem o filme tem me parecido bastante fértil em filmes em que a voz do documentarista está presente e nos momentos em que o filme é demandado pelo personagem, é o caso de A pessoa é para o que nasce, Mato Eles?, No rastro do Camaleão e tantos outros.

Pois Estamira coloca o problema de maneira diversa. O filme se filia a uma história do documentário que parte de de uma transparência entre forma e conteúdo. A voz do documentarista e a negociação estão ausentes.

Marcos prado e equipe estiveram no lixão, conviveram com as moscas e odores, mas o que interessa é Estamira. Este princípio não é problemático em si, poderíamos mesmo dizer que a experiência e presença do realizador aparecem na imagem, na estética e na montagem do filme.

Mas, se assim é, o que pode a noção de democracia diante de uma opção narrativa em que o realizador se ausenta e que, no calor dos acontecimentos, se faz ausente, não responde à personagem, se apaga do compartilhando do filme? Seria então a democracia um conceito que só poderia operar diante da demanda mais explicita da presença do realizador?


Não vou aqui desenvolver muito o que será parte de um outro texto, mas basicamente meu argumento é o seguinte:

No momento em que a voz de Estamira se faz presente através do filme há uma ação propriamente política. A voz do excluído que se singulariza, que passa a habitar um outro lugar, que passa a compartilhar com outros um universo em que ele não se fazia presente. A política é justamente o dissenso presente e existente nessas relações entre heterogêneos.

Em um campo democrático a voz de Estamira pode surgir e afetar aquele que a ouve. E afetar é propriamente uma luta, um embate, não está dado antes da democracia mesmo existir.

O que acontece em Estamira? Antes de ela dizer uma primeira palavra há no filme uma construção "embelezadora", que traz para a personagem uma aura e que inventa, antes mesmo que pudessemos vê-la, um lugar para ela.

Se o filme já inventou um lugar para ela, como podemos pensar que ali se inventa um campo democratico em que uma fala ou um gesto pode reconfigurar os lugares ali presentes? Entre filme e personagem há um unidade em que o espectador não tem vez.

Se o filme já inventou para Estamira um lugar no mundo - o de personagem de documentário - é o próprio lugar do espectador se vê apaziguado. Com o documentário ela não é mais excluída, sofrente, explorada. Tudo isso está resolvido pelo filme e pela lugar que ele criou para Estamira.

A estética de Estamira é uma forma de fazer justiça. Mas, ao fazê-lo, é a democracia e o espaço de embate e dissenso que deve ser suprimido.

Não há política possível em um espaço em que os lugares são imutáveis.

A homogeneidade estética entre a primeira e a última sequência é parte dessa não-afetação.

Um comentário:

Vinícius Reis disse...

Caro,
Na semana passada, reli uma longa e ótima entrevista do Coutinho numa Cinemais de 2000 (época do lançamento do Santo Forte), na qual, em algum momento, ele fala da questão do documentário e a democracia. Talvez te interesse...
Abraços.
PS. Sabe que peguei uma cópia em DVD do Estamira para ver e não consegui chegar ao final do filme? Achei muito estilo para pouco cinema.