6 de mai. de 2020

Diário do entre-mundos 39

Em outra quarentena me isolaria no início do século XX, cercado de livros do final do XIX, tentando olhar para o futuro, para onde iria esse início de século. De dia faria calor e de noite frio. Se tudo corresse bem, o sol me despertaria e a noite dificultaria a leitura. Pediria que alguém me ligasse uma vez por semana para me contar as novidades e fingiria espanto. “é mesmo?, que coisa!”Escreveria para os amigos e caminharia até os correios para comprar selos. Torceria para ter respostas com novidades antigas. Ouviria os quatro discos que levara, todos do final do século XX. Isso me colocaria entre tempos, no meio do choque e não me deixaria tão sozinho assim. Escreveria esse mesmo diário sem nenhuma perda de tempo com coisas contemporâneas. Não teria nostalgia nenhuma, apenas faria uma quarentena temporal. Essa ideia de que o isolamento é só espacial não cabe. Viveria meu isolamento temporal com leves saídas, sempre de máscara para tempos menos remotos: Pixinguinha, João Gilberto, Radiohead. Acharia um abrigo em um período que eu deseje e que me deseje. Acho que ali nos anos 10, 20, daria para aproveitar bem. Se fosse possível, os filmes do Epstein me levariam um mundo de ventos, mares, árvores, rugas. Teria, assim, toda a natureza em promessa. Me alimentaria de uma espera de 100 anos para voltar para cá. Caminharia muito, com o cuidado de ser gentil com quem cruzasse o caminho, convidaria o bibliotecário do vilarejo para uma cachaça no final do dia e jamais ligaria o gerador. Em outra quarentena me jogaria no tempo. Talvez chegasse cansado nesse século XXI, mas, em calçamento com buracos, as malas de rodinha não servem para nada.
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