O isolamento, a redução das relações de corpo presente, a centralidade da casa nos exigem também possibilidades de montagem.
Como se o momento pedisse conexões que não tínhamos o hábito: relações com pessoas, afetos, obras, que permitam escapar dessa tóxica hiperpresença do eu.
Uns dizem acharam em alguma relação filantrópica essa conexão, outro nas artes, na escrita, nas relações de cuidado com familiares etc.
Montar é um abandono da coisa em si. Quando se monta a casa ou os afetos, com outras coisas, com outros afetos, fazemos esse duplo movimento: por um lado esvaziamos o peso do eu, por outro colocamos esse eu em criação.
Na montagem toda unidade perde seus contornos, perde a estabilidade da unidade. Ao montar, podemos apenas passar de uma coisa a outra, como o neurotípico que ao ver a flor se aproxima para cheirá-la, ou, diferentemente, como no cinema e sua potência esquiza, que uma flor pode montar com uma parede rosa, com outras flores, ser desfocada e perder espaço para o ambiente, com uma revolução.
Alguns de nós não têm problema algum em organizar eventos da vida em unidades temporais, em relações de causa e efeito, em passagens de espaços e elipses necessárias para a boa narração. Entretanto podemos ter dificuldade de trazer para nossas narrativas a presença de outros sons, palavras, afetos que não fazem parte de linhas narrativas já instituídas. Como sermos capazes de montar, de sermos afetados por outras vozes, olhares, escutas.
Creio que nesse entre-mundos, um esforço de montagem é fundamental. Penso a montagem como esse rasgo na unidade. Como a possibilidade de um atravessamento que nos permite uma distância de ordens excessivamente presentes, que tendem a reduzir nossas possibilidades de experiência. Assim é a casa, a violência política e social no Brasil, o medo do vírus, etc.
Como se nesse entre-mundos vivêssemos um duplo movimento - que pode ser bastante difícil. Por um lado, somos atravessado por incertezas, por outro, somos atravessados por afetos totalizantes, na saúde e na política.
A incerteza não deixa de produzir seus efeitos – com frequência bastante angustiantes - mas, para com estar ela, é preciso se abrir à possibilidade de criação: o contrário do que nos toma quando olhamos para a política ou para os riscos do vírus.
Uma montagem que, mais que colocar em ordem, chama novas imagens, afetos, palavras e sons para um processo criativo que a própria desordem do momento exige.
Desafio forte, para segurar a onda da incerteza, como montar para se abrir a novos afetos e experiências incertas?
-- Diário do entre-mundos 43 --
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