Talvez mais um dia de quarentena não precisasse de um diário. Mas virou costume, é preciso algumas palavras para o dia passar, para acolher outras, para abrir o dia e deixar circular essa estranha sensação de um mundo em suspensão, desabamento e transformação. Novo normal, dizem alguns. O desejo por normalidade é tão grande que agora ele é novo. Não, talvez o normal nunca tenha propriamente existido, mas agora não é um novo. Tomamos a rasteira, estamos no ar e não sabemos ainda onde vamos cair ou se conseguiremos fazer o rolamento. O Brasil é um país muito organizado. Normalmente quem cai e se quebra são sempre os mesmos. Puxa, mas agora que ainda estamos no ar, talvez pudesse haver um outro chão. Talvez por isso a tristeza, a revolta com esse governo e suas elites. Um grande esforço para que os que estavam na pior caiam em lugares ainda piores, talvez abaixo da linha do solo. Eles têm o vírus para ajudar. Mas, lá vêm as palavras e com elas é preciso desviar. Esticar o braço ali onde existem acordes lentos, um sol de maio, um texto que felizmente não entendo. Ufa, nada como uma garantia que teremos que continuar tentando. Talvez esse texto que só pode ser sentido, texto de amigo que escreve estranho, que escreve esburacado, seja o necessário normal. Essa espécie de mil e uma noites que não nos garante mais um dia pela narrativa, mas pelo mistério da escrita. Não entendo, mas cada vez que leio sou levado para algum lugar. Ai sim! Na quarentena, ser levado é garantia de que esse lugar não basta, que ainda há outro para ir. Quando ele chegou na casa, me disse: “que alívio chegar aqui”. Ir para um lugar, voltar para um grupo, mesmo que o grupo ainda falte, traz uma conexão possível, um futuro imaginável. Nos bares com música, uma roda de samba, uma música experimental em fita K7 com alguém falando ao piano. Todos esperam. Pode até fazer bem passar a pé onde estávamos há dois meses. O espaço guarda essa memória de uma possibilidade futura. Um normal grávido de um eu em fuga. E mudamos de lugar e vamos para o campo, para o interior, para a montanha, e lá vem o eu atrás de nós. Quando você menos espera, a luta recomeça. Esse eu que não cessa. Montar e se esquivar. Vai lá que a estrada tá cheia de bloqueios e não tem Búzios, Ilha grande ou aeroporto. Agora já sei para que o diário. Para dar um limite no texto sem fim, para marcar um cronos no sem limite do tempo que está em suspenso, para colocar palavras onde tudo está organizado demais como querem os homens de comunicação e de poder. Palavras neles. Sem isso, vamos acabar entendendo tudo. O terror é uma cara limpa. Viva a espinha que insiste e trabalha.
-- Diário do entre-mundos 45
Nenhum comentário:
Postar um comentário