Talvez estejamos vivendo uma estranha relação com nosso rosto, com nossas imagens.
Por um lado, são horas de encontros virtuais por dia. Nesses encontros estamos constantemente nos olhando. Se não tiramos nosso rosto da imagem ficamos duas, três, quatro horas na frente do “espelho”.
Por outro lado, nossa imagem é normalmente feita com respostas do mundo. Respostas físicas mesmo. Variações entre visibilidade e invisibilidade em cada espaço que percorremos, variações de proximidades. No momento, nos falta esse rosto.
Ser ouvido, ser visto é ter o rosto guiado, ganhar uma fisionomia.
Uma imagem me impressionou recentemente. Bolsonaro sentado ao lado de José Antônio Dias Toffoli no supremo.
Enquanto Toffoli falava, Bolsonaro olhava fixo para frente, não deixava para Toffoli nada de seu pensamento, não devolvia nada. Em um dado momento, olhou o relógio.
Conheci pessoas assim. Pessoas de esquerda, com eventuais discursos progressistas, mas que diante do outro o eliminam pela absoluta desafetação.
Nesses casos, trata-se de um rosto que já vem pronto, que, separado do mundo, não se deixa afetar. De suas bocas pode sair qualquer coisa, mas nada é crível além do desprezo por tudo que não seja o próprio “eu” do rosto impassível.
Ao não sofrer o mundo, o rosto desses homens não se associa a nada. Não traçam nenhuma linha de continuidade com outra humanidade – o colega do lado, o país.
Não estranha que esses homens sejam bem-sucedidos nas burocracias e avaliações numéricas – na universidade ou na bolsa. Como nada acolhem do mundo, surfam na lógica da naturalização da indiferença e desigualdades. Para esse homem desafetado, tudo se equivale.
O distanciamento social é parte dessa desafetação. Não apenas porque temos que ficar distantes uns dos outros, mas porque a distância entre todos se homogeneíza.
A mãe, o entregador, o vizinho, todos são condenados à mesma distância, à mesma máscara. Estamos assim sendo exigidos na forma como devolvemos ao outro os nossos mundos.
Na casa, com horas de espelho e ausência dos retornos físicos dos encontros. Como o rosto se de-forma, como o rosto é afetado? Como as marcas não cessam?
-- Diário do entre-mundos 50 --
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