A pandemia é um acontecimento. Para pensar um acontecimento não é possível nenhuma justeza e qualquer equilíbrio é precário.
Se o acontecimento é aquilo que irrompe sem que estejamos prontos - física, sensível e intelectualmente -como trazer as palavras sem interromper o que de estranho e inapreensível vem como o acontecimento?
Ou seja, trata-se de acreditar nas palavras e nas possibilidades delas se esquivarem da ordem, da disciplinarização do acontecimento. Tudo que está ai é atravessado por algo desconhecido - o que será das relações sociais, das relações de cuidado, da economia, do senso comum sobre a ciência, do bar da esquina, da ideia de saúde, etc?. Respeitar esse não saber é fazer apostas: gostaríamos que a vida fosse por aqui, ou por alí.
Há um mundo em disputa. Mas, é preciso respeitar o próprio não saber.
Respeitar esse não saber é o que possibilita o surgimento de algo novo. De outra maneira jogamos o acontecimento em nossos moldes já construídos e impedimos nosso próprio movimento intelectual e sensível diante do que nos afeta.
O cinema tratou o acontecimento – uma paixão, uma guerra, o fim – com dois gestos principais: o excesso e a rarefação.
Diante do acontecimento se fala muito, se escreve muito, se convoca mais imagens que podemos ver. O não saber aparece pelo excesso de signos, sem que uma linha de pensamento ou narrativa possa se impor. Uma explosão de conexões entre palavras, imagens e sons como se o acontecimento, nosso despreparo e desconhecimento sobre ele, pudesse estar em todo lugar e fosse apenas alcançável com conexões bizarras, caóticas, excêntricas, marcadas por tênues linhas de continuidade. Godard, Kluge, Glauber, Varda, Miguel Gomes ou mesmo Coutinho.
Mas o cinema também foi para a rarefação. Esvaziou o quadro, disse pouco, não completou as frases, fez intensos silêncios, diminuiu as cores, diminuiu o ritmo, esperou. Diante do acontecimento as palavras ou as imagens teriam que ser tratadas com tanto cuidado que quase desapareciam. Se muito presentes, correriam o risco de estancar o pensamento e o novo diante do estranho. Clouzot, Pedro Costa, Antonioni, Cao Guimarães, Chantal.
As duas formas não são excludentes. O que não é suportável hoje são os discursos claros, aqueles que sabem exatamente para onde iremos ou como o mundo se organizará ou o que seremos.
Respeitar o que nos acontece é um esforço estético.
--Diário do entre-mundos 41--
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