Recentemente uma amiga me escreveu dizendo que gostara de um artigo que Ilana Feldman e eu escrevemos sobre o programa Retrato Celular, mas me colocando a questão:
Te escrevo para entender uma coisa: o que chamas de escritura? "Filmar a própria vida é uma questão de escritura e não de intimidade".
Pergunta mais que pertinente:
Minha primeira tentativa é:
Toda escritura opera em dois níveis; o singular e o comum. O exemplo mais evidente pode ser essa nossa comunicação. Por um lado eu me singularizo quando organizo esta linguagem ao mesmo tempo podemos nos comunicar por conta de uma linha comum que nos une pela linguagem.
Quando digo que não se trata de intimidade, mas de escritura, estou tentando deixar claro que narrar a si é um tema que, como qualquer outro, não existe independente de uma relação com a linguagem, com escolhas entre o que me singulariza e o que traço de comum, entre o individual e o coletivo.
Programas como o Retrato Celular e os reality, de um modo geral, parecem se fiar nessa ancoragem no real que esse tipo de imagem dá. Isso é verdade! – Eu eu o André Brasil discutimos um pouco isso no texto sobre o Saddam e a Cicarelli – Mas, essa ancoragem tende a se confundir com a não-necessidade de uma escritura, como se por falar de si e na intimidade, houvesse uma transparência possível, o que é um engano. A ficção de uma imagem não mediada já morreu, o que demanda uma escritura.
A escritura é uma relação estética com o fato, com a vida, com o que se quer dizer. A vida é a vida, mas, quando falamos, escrevemos, narramos, filmamos ou fotografamos nossas vidas ou as vidas alheias, essas imagens são sempre mais ou menos que as próprias vidas. A escritura, assim, estabelece sempre uma relação não consensual com o que narra, sempre falha e rasgada.
É interessante a gente perceber como o cinema comercial utiliza de forma compulsiva as imagens de câmeras de vigilância. Estas imagens são parte do mundo, certo, mas na linha do que vem pesquisando o Thomas Levin, essas imagens parecem incorporar o "isto foi" da imagem fotográfica dos primeiros tempos; essa presença não mediada.
Agradeço a Gabriela Paschoal pelo interesse e provocação
Um comentário:
A Ilana me mandou o seguinte comentário por mail e me autorizou a colocar aqui:
"A ficção de uma imagem não mediada já morreu, o que demanda uma escritura."
"Tenho dúvidas se essa ficção da não-mediação morreu. Morreu para nós, claro,
para a história das mentalidadades, digamos assim, mas está mais viva do que
nunca enquanto práticas correntes, discursos nascentes e permanentes
demandas de real, de indicial, de lastro factual etc.
Acho que esse é o cerne de uma tendência cultural, se não hegemônica,
fortíssima e que atravessa desde o cinema brasileiro pós-Globo Filmes,
passando pelo regime de visibilidade da imagens amadoras, videos-flagrantes,
uso da televigilância e afins, até a literatura contemporânea também."
Ela tem toda razão!
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