3 de out. de 2007

White Balance, (pensar é esquecer as diferenças), de François Bucher

White Balance, (pensar é esquecer as diferenças), de François Bucher

A convite de Eduardo de Jesus e Patrícia Faria para participar do evento Imagem e Pensamento em Belo Horizonte (29/09/2007), reúno aqui algumas notas e reflexões sobre o vídeo White Balance de François Bucher.

Destruição e proposição

O vídeo de Bucher aborda o evento 11 de setembro através de uma montagem fragmentada e propositiva em que o realizador faz múltiplas conexões entre imagens, sons e palavras vindos de universos heterogêneos. Etiquetas de camisetas, filmes de Hollywood, falas de populares na rua, George Bush, internet, cartazes, etc. A estratégia de Bucher aparece com dois desafios simultâneos. O primeiro é retomar para si o evento; reaver o evento como algo pensável por ele e pelo mundo. O segundo, desdobra-se do primeiro, trata-se de pensar o evento. Os dois desafios não são propriamente separáveis, como se viessem um depois do outro, sobretudo porque no caso de Bucher é com a montagem que o artista recupera o 11 de setembro e o incorpora a novos fluxos, novas linhas de pensamento e conexões.
O 11 de setembro é o evento paradigmático da impossibilidade de separarmos o evento da imagem do que acontece. Evento e imagens formam assim um só e mesmo acontecimento. Se as imagens fazem parte do evento elas podem ser responsáveis pela não-estabilidade de um evento em uma só linha discursiva, ou a destruição e apagamento do evento nos clichês que o substituem. Trata-se de uma questão matemática. A imagem é sempre mais ou menos do que o evento, nunca a totalidade. Uma imagem nunca dá a ver tudo que há a ver, nunca diz tudo que há a dizer. Se uma imagem se mantém como imagem na relação com um evento – com a potência indicial e lacunar ao mesmo tempo, é o próprio evento que se torna lacunar. Pois é nesse espaço entre eventos e imagens, inventado pela própria presença de ambos, que o pensamento é demandado. Não como o que vêm harmonizar a relação, mas como o que é capaz de criar passagens entre o acontecimento e outros acontecimentos, imagens e história. É nessa fenda que aparecem os artistas e os espectadores; inventando novas montagens, novas linhas de conexão, novas tensões que mantém o evento vivo.
Se o acontecimento só existe com a imagem, a possibilidade dele se manter como algo a ser pensado está na imagem que guarda sua potência indicial e combinatória. O isolamento das imagens, apartadas dessa potência combinatória, é parte de um esquecimento da política como invenção de um dizível e de um sensível. Se as imagens não podem mais se combinar porque todas as ligações já estão dadas, perde-se a possibilidade de construir um campo em que o direito à fala está em construção. “Civilização da imagem? Pergunta Deleuze, não civilização do clichê porque todos os poderes têm interesse de nos encobrir as imagens.” No clichê, a estabilidade do dizível é o que expulsa a política da imagem.
Assim, no vídeo de Bucher, a montagem é o que refaz as conexões: Lombroso e o controle de traços físicos pós 11/setembro estão separados no tempo, mas juntos na lógica opressiva contemporânea. As aulas privadas de “eliminação dos sotaques estrangeiros”, como mostra um cartaz pregado em um poste de rua, não está distante de um filme com o governador da Califórnia em que a Colômbia é invadida e onde se fala inglês. As camisetas que os americanos utilizam por baixo da camisa são fabricadas em paises do terceiro mundo, muitos deles já invadidos pelos Estados Unidos. Com estas operações Bucher cria um campo de fala possível, possibilidades de ver e dizer por uma operação de montagem. Não que o evento tenha uma essência a significar, uma verdade escondida pelo clichê, mas porque estão presos em uma ordem em que são obrigados a dizer certas coisas.
Se o Balanço de Branco inventa uma homogeneização, um ponto de vista central a partir do qual todas as imagens se referem, a montagem é justamente o que descentrará esse ponto estável. O evento deixa de ser o centro organizador das imagens para ser o que as atravessa. A montagem é justamente o que impede o isolamento das imagens como se elas pudessem ser vistas fora de um processo histórico e político complexo e lacunar. Esta primeira operação tem então o desafio de reintroduzir o evento na linguagem.

Segundo Movimento

Se em um primeiro momento a estratégia de Bucher parece ser de destruição de da estabilidade do visível e do dizível sobre o evento, ela nunca deixou de ser, na verdade, propositiva.
A montagem em White Balance faz uma clara opção pela descontinuidade e fragmentação que pode, facilmente, ser lida como uma sucessão de imagens desconectas em que o espectador ganha autonomia na relação e nos efeitos que a montagem dessas imagens podem ter sobre ele. “Cada espectador estaria livre para pensar o que quisesse e pudesse”, diríamos. Absoluto engano! A fragmentação, a descontinuidade, a não-utilização de uma lógica linear ou retórica está longe de se abster a entregar ao espectador um certo recorte bastante preciso sobre os eventos político-midiáticos narrados. Durante o debate em Belo Horizonte, uma pessoa da platéia fez uma intervenção nos perguntando se Bucher também não operava criando consensos, o que a princípio poderia parecer um contra-senso em relação ao tipo de montagem que o realizador utiliza e que ali estava sendo elogiado por mim. Não sei se consenso é a melhor palavra, apesar de os consensos serem necessários, sempre. Não há criação sem uma força consensual presente e Bucher sabe disso.
Assim se faz o segundo movimento. Em que a escritura torna-se afirmativa. Há um plano-seqüência, por exemplo, em que passamos do velho sentado na rua para o céu em que cruza um avião e logo para as imagens do World Trade Center; em um mesmo movimento de câmera coloca elementos aparentemente dispersos em continuidade espaço-temporal - uma estranha continuidade, até porque a imagem está em reverse. Em outro momento, a fala de Bush e Schwartznegger passam a fazer parte de uma mesmo discurso em que o presidente conceitua, o personagem opera a fala do presidente e o realizador – em off - comenta; “se as crianças que morrem no Iraque fossem ocidentais elas não estariam morrendo”. Com a montagem Bucher refaz um caminho multifacetado e esburacado, é certo, em que todos esses personagens se conectam às crianças do Iraque, por exemplo.
White Balance se insere nessa tradição de uma montagem como forma que pensa, que não nos leva ao pensado, nem à síntese, mas ao pensamento como processo. Tanto na desestabilização dos clichês como nas proposições de conexão ali presentes a montagem é o que opera “uma medida do sem medida”, como escreveu Rancière. O conhecimento pela montagem é assim o que permite um acesso ao evento para além do visível. Um conhecimento que se dá pela associação entre visíveis e entre tempos. A montagem escreve assim uma intensificação nas imagens, uma forma de conhecimento, forma que pensa, como diria Godard. O pensamento se faz ação. Coloca uma multiplicidade em conexão relacionando seres e objetos, sons e palavras excessivas e não homogêneas.
Longe de se constituir como uma relação temática com o mundo, como se pensar fosse idêntico a “pensar sobre”, colocando de um lado o que pensa – de preferência algo vivo - de outro a coisa pensada; o pensamento se dá como ação conectiva entre o mundo e os seres que o pensam. Pensar se torna algo altamente arriscado o pensamento demanda uma saída de si, um descentramento e uma montagem. Ou seja, o pensamento não pode ser feito independente dos outros que pensam e dos objetos pensáveis, constituindo-se assim em uma ação que encontra seu lugar entre o individual e o coletivo, fazendo coabitar de maneira indistinguível as duas faces do pensamento, uma voltada e dobrada sobre si e outro para fora. Dito isso, é possível afirmar que não há pensamento sem diferença.

O artista e o evento

Minha atenção foi então para o procedimento de Bucher que opera retirando as imagens e os discursos de uma narrativa consensual, sem cair em outra, mas ao mesmo tempo, sem entregar as palavras e imagens ao caos.
Estas considerações se desdobram do modo como o filósofo francês Jacques Rancière percebe a potência das imagens no livro “Le destin des Images” (O destino das imagens). Podemos, um tanto esquematicamente, pensar em três formas da arte e do documentário se relacionar com eventos como o 11/set – ou a guerra em Israel ou a Chacina em Vigário Geral.
O primeiro é o mutismo. O artista emudece. O evento fala por ele mesmo e não há mais nada a dizer. Qualquer imagem ou ação torna-se uma forma indelicada, excessiva ou desrespeitadora do evento. Se o artista fala é para dizer da sua impossibilidade de falar. Assim, o cineasta que vai para Israel filmar o país não sai do apartamento filmando apenas os vizinhos na janela ou em NY filma durante 15 minutos a paisagem sem o WTC para falar de terrorismo.



A segunda atitude do artista diante de tais eventos é o consenso em que tudo se conecta com tudo. Um ponto central na narrativa faz com que todas as imagens e textos façam parte de uma mesma ordem de discurso. Nesse caso, as imagens têm uma função na lógica da obra e estão presas a ela, sem qualquer poder conectivo com outras imagens, outros discursos. No filme que perpassa todo o vídeo de Bucher, Efeito Colateral, por exemplo, existe um isolamento absoluto entre Schwarzenegger que perdeu mulher e filho em um atentado feito por colombianos, a presença americana na América Latina – a primeira música que ouvimos na Colômbia é um rap brasileiro - e o tráfico de drogas. Todos os elementos fazem parte de uma mesma narrativa centrada na vingança. A vingança é o ponto de convergência. Em nenhum momento é possível conectar tráfico de drogas e terrorismo, sem passar pela vingança do personagem.
A terceira postura nós podemos chamar de esquizo-verborragia. Entre as imagens não há nada em comum, nenhuma linha que as conecte umas às outras. O que vemos é uma profusão de sons e imagens que não formam um comum, mantendo o que é isolado em seu isolamento. Esta esquizofrenia é o avesso do consenso, as imagens não são atravessadas por nada que permita um desdobramento, choque ou continuidade entre as imagens. Entre a obra e um zapping televisivo há pouca diferença.
No primeiro caso não há o que dizer. Uma vez que é impossível dar conta do evento, o artista não fala nada. No segundo, ele já sabe o que é o evento e todas as imagens são funcionalizadas em torno de um ponto central, uma tese, uma história pessoal, etc. No terceiro se duplica do evento o excesso como se ele fosse absolutamente inapreensível. Nos três casos não estamos longe de uma dupla potência que existe nas imagens; a potência de dar a ver e de combinar.
Rancière formula então a noção de frase-imagem (Le destin des images) para pensar o que conecta “a grande parataxe”. Há uma potência na parataze que é valorixada por Rancière, uma vez que é o isolamento das imagens e palavras que as autorizam às múltiplas conexões – a potência da parataxe é manter a virtualidade dos objetos isolados – suas potências combinatórias. A frase-imagem dá a ver/conecta com um contexto da imagem e faz a imagem livre para se conectar; “uma linha estendida sobre o caos” (Deleuze, Guattari).

Parece-me então que o trabalho de Bucher e a sua montagem não se constitui como oposição de dois elementos, onde um deles se sobressairá, nem como fusão dialética em que um terceiro elemento, uma síntese será feita. Não, o sentido da montagem aqui é de criar um comum, uma linha entre sons, textos e imagens que tenha uma dupla função. 1 - A manutenção da potência parataxica de cada elemento, ou seja a manutenção do isolamento e a possibilidade de esses elementos manterem a abertura para novas e outras conexões, mantendo o evento vivo como o que deve ser pensado. 2 - A ligação que retira cada elemento de seu isolamento e o coloca em relação criando um comum, por vezes frágil ou fugidio, mas que produz passagens entre elementos.
A manutenção da potência paratáxica destes elementos encontra-se justamente na garantia de que estas passagens não são necessárias, mas fruto de uma escritura. A frase-imagem não pode ser então a passagem ideal, a conexão necessária. Se necessário fosse seriam as próprias imagens que se perderia em favor da sintaxe. Podemos assim dizer que a fragilidade da montagem está na manutenção de um triplo destino das imagens: se referir ao real, guardar sua potência de compor uma sintaxe e sua abertura para a combinação e o pensamento.

Documentário e Artes Plásticas
O encontro Imagem e pensamento concentrou essa edição nas aproximações entre documentário e artes plásticas e, sobre o tema, fechei minha participação com três breves comentários:
Primeiramente parece-me que a contaminação entre essas práticas é menos estética do que institucional. Quando dizemos que há uma aproximação para além do campo do institucional, corremos o risco de dizer que sabemos o que elas efetivamente são. Ou seja, eu não sei exatamente o que é um documentário ou um vídeo ligados às artes plásticas, só sei que eles existem.
Em segundo lugar, costumo brincar que, institucionalmente, os documentaristas têm todo interesse em migrarem para as artes plásticas, não por questões estéticas, mas porque no documentário a economia é de subsistência ou comercial e nas artes plásticas especulativa. Em relação a este ponto, André Brasil, que estava na platéia, fez um comentário que me parece pertinente: a especulação demanda vínculos com o real, alguma ancoragem e, frequentemente, é o documentário que supri essa demanda. Felizmente, o documentário como estética não é garantia de nada e muitas vezes essas tentativas não passa de um efeito de real, como o que Ilana Feldman e eu comentamos no artigo sobre o programa Retrato Celular, publicado na Revista Cinética.
Finalmente, podemos dizer que o cinema e as artes se aproximam quando atuam fazendo existir e inventando formas de vida que existem com o outro – campo privilegiado do documentário – e que são formas de vida necessariamente estéticas - campo privilegiado das artes plásticas. Com a estética e com o outro, trata-se formas de invenção de mundo; políticas. Nesse sentido o cinema e as artes plásticas se tornam indiscerníveis.

Nenhum comentário: