30 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 34

Latin wave
Lilja também já tinha testado positivo. Pegou a bolsa, o celular e esperou os outros 9 amigos chegarem na porta do apartamento para irem ao supermercado. Desceram os três lances de escada do prédio onde há três semanas viviam e encontraram a rua cheia. Grupos andavam como em uma entrada de um show. Ao chegarem no supermercado socializaram com as pessoas que se aglomeravam na porta enquanto Lilja e Bjorn faziam as compras. “Estou já cansada, está tudo muito lento, tem sempre alguém falando, a gente precisava de um lugar um pouco maior” disse Lilja enquanto pegava 5 vidros do mais barato picles islandês.
Lars, que está no mesmo apartamento, foi umas das primeiras pessoas a testar positivo. O vírus se alojava principalmente no fígado, produzindo efeitos parecidos com uma ressaca fortíssima. Lars vivia com a esposa e um filho e depois de dois dias de um mal-estar profundo, como se tivesse bebido uma garrafa de vodka, procurou o hospital e só depois de 6 dias, e de ter contaminado todo o hospital, foi diagnosticada a origem viral da “ressaca”. A inquietação dos cientistas foi maior quando se percebeu que no momento que o médico, dois enfermeiros e a esposa de Lars estavam no quarto, seus sintomas diminuíam.
Lilja passou os três carrinhos do supermercado e voltaram para o apartamento de dois quartos em que os nove amigos se protegiam do Sarqs 43. O nome do vírus fazia uma bem-humorada menção ao teor alcoólico da vodka que Lars acreditou ter sido responsável pelos primeiros sintomas.
Desde que o novo Sarqs 43 começou a afetar Reykjavik, as recomedações dos cientístas são claras. Jamais ficar com menos de 10 pessoas em um raio de 7 metros. Pouco se sabia ainda o que acontecia, além de que o novo virus se aloja no corpo humano, mas também se divide entre humanos. Ao circular entre contaminados, o vírus se dissolvia. Se um contaminado se isolasse, se ficasse fora da aglomeração, os sintomas voltavam intensamente e deixavam de ser uma pequena euforia e relaxamento.
Doze casos na Espanha, três em Nova York e centenas em todo norte na Europa. Desde que a infecção viral foi identificada na Islândia, há quatro semanas, o Sarqs já cruzou o oceano e começa a causar pânico nos países que ainda estão tendo que fazer isolamento social por conta do Covid 19. Como conciliar o isolamento com a hipersocialidade que o Sarqs 43 exige?
Em Oslo e Copenhagen, devido ao alto índice de contaminação, os cinemas estão operando 24 horas, os jogos da terceira divisão do campeonato de futebol estão lotados, as casas noturnas e bares abriram espaços de balada-office e todos os encontros a dois como psicanalise, confissão e sexo estão tendo que encontrar alternativas.
“O mundo não suporta mais tantas restrições, e agora isso”, disse o prefeito de Nova York sem poder sair de seu apartamento lotado. No Brasil, uma empresa já começou a cadastrar moradores de rua para viverem com famílias em Higienópolis, Jardim Pernambuco e Pampulha. Ao mesmo tempo que o mercado imobiliário informa que os preços dos apartamentos em Copacabana já começaram a subir.
“Nada será como antes”, diz a pensadora sueca Ingrid Swedenborg. Os suecos pouco se tocavam, mantinham sempre distância uns dos outros, tinha orgulho de suas casas confortáveis afastadas dos grandes centros e em contato com a natureza. Agora estamos vivendo próximos uns dos outros. Isso muda nossa percepção, nossa relação com o olfato, como tato.” Na mídia local, o Sarqs tem também sido chamado de Latin wave, por conta da diferente relação entre os corpos que o virus vem produzindo.
No espetáculo a mudança não é menor. Para alívio de muitos os stand-ups desapareceram. Na música, as grandes formações predominam. Lilja mesmo, suspendeu seu ensaio para um solo de dança que vinha criando e está se dedicando mais intensamente à capoeira.
Cansada, voltou para casa no final das compras, riu muito no caminho com os amigos e exausta deitou de conchinha com mais 4 em sua cama King, infelizmente em falta nos estoques das principais lojas.
-- Diário do entre-mundos 34 --

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