No belo “A noite da espera”, de Milton Haton, há uma frustrada tentativa de uma sessão de cinema. Estávamos em 72, durante a ditadura, e o filme exibido seria “A morte de um burocrata”, do Alea. Antes de começar a sessão os espectadores são contados: 29. Há algo errado, percebe o organizador da sessão secreta, o dono da livraria. Apenas 28 pessoas tinham a senha. Havia um intruso, talvez um espião. A sessão é suspensa.
Se a sessão tivesse acontecido, como tantas outras que se esquivavam da censura, imagino o silêncio, a atenção ao filme, a importância cerimonial daquele encontro.
Gosto tanto dos filmes como do cinema.
Ir no cinema é deixar de lado o olfato, o tato, a mobilidade. Hoje, fazer um esforço para não escutar a pipoca do vizinho e desligar o celular de verdade.
Ir no cinema é deixar de lado o olfato, o tato, a mobilidade. Hoje, fazer um esforço para não escutar a pipoca do vizinho e desligar o celular de verdade.
Aprecio filmes longos, filmes que me colocam em larga suspensão do tempo. Quando saio da sala o dia caiu, choveu e parou de chover e não vimos nada. Mas essa experiência parece, bem antes da pandemia, já fora de seu tempo, fora da forma como as salas se organizaram, com baldes de pipoca e cadeiras com apoio para copos.
As salas de cinema, mesmo as poucas de rua, já tinham deixado uma certa experiência do cinema um pouco de lado. A ideia de que seremos muitos em silêncio e no escuro diante de um filme já estava bastante desfigurada por luzes com sinais nas paredes, fitas de led no chão e luzes acesas na primeira palavra dos créditos.
Com frequência tive mais prazer em alguma sala de cinema improvisada em uma escola. Ali, onde nada era adequado para a exibição de um filme se faz um enorme esforço para que isso aconteça. Por vezes os defeitos são mais interessantes que as qualidades. Nas escolas a dimensão coletiva e efusiva domina. Estamos do longe do espectador ilhado em seu pequeno consumo privado.
Na bagunça de uma sessão com crianças ou no extremo silêncio de uma cinemateca há o belo ponto em comum da sala de cinema: a experiência coletiva.
Na bagunça de uma sessão com crianças ou no extremo silêncio de uma cinemateca há o belo ponto em comum da sala de cinema: a experiência coletiva.
Ao enfraquecer a experiência, é um lugar que nos é furtado, proibido. É esse lugar do espectador de cinema que se dissolve. Em todos os lugares as telas gigantes ocupam a cidade no mesmo movimento em que o lugar do espectador de cinema se esfacela.
Agora, há mais de 40 dias, as salas estão fechadas e talvez muitos nem sintam tanta falta assim. De alguma maneira os cinemas vinham nos preparando para esse momento: “vou dar uma enfraquecida nessa experiência aqui pra quando vier uma pandemia vocês nem sentirem tanta falta assim”.
Mas, não seria isso que esse momento de isolamento está nos mostrando? Que certas experiências importam mesmo. Que certas construções sociais e coletivas são insubstituíveis. Que o empobrecimento da experiência produz um mundo pior. Quando essas experiências faltam só sobram as luzes acesas e a claridade das telas que nunca se apagam. Somos condenados a um só lugar. Não é isso que a pandemia produz?
Delirar uma pós-pandemia em que o silêncio é silêncio, que o escuro possa existir e que estejamos todos juntos em uma experiência coletiva, uma algazarra, talvez. Mas, sobretudo, um mundo em que as possibilidades de uma experiência sensível sejam cuidadas.
--Diário do entre-mundos 31 --
--Diário do entre-mundos 31 --
Nenhum comentário:
Postar um comentário