31 de out. de 2007

Publicidade e disciplina

A publicidade, e o capitalismo como um todo, se nutre da captura das práticas mais libertárias. Mas nem sempre é assim.
Esse anúncio de um carro da Ford faz justamente o caminho oposto.

"Para poder liderar é preciso ter obedecido. Quem dirige um Ford Fusion, fez por merecer"

O carro de quem engoliu muito sapo!


"Estamos longe do "cada um na sua", do Free, por exemplo.

Para ver o anúncio
(clique em "conheça essa novidade" e depois em campanha)

30 de out. de 2007

O corpo no documentário "A pessoa é para o que nasce"

Ainda pensando "A pessoa é para o que nasce", mais especificamente a última sequência do filme.

A última seqüência deste documentário marca um ponto decisivo de inflexão na tradição documental. Em uma espetacular praia nordestina, na Paraíba, provavelmente, as três irmãs se despem e tomam banho de mar completamente nuas. Esta seqüência é difícil, pode ser facilmente pensada com uma forma de espetacularizacao, de super-exposição, como se de alguma forma o filme aqui se avizinhasse das formas mais corriqueiras que entrelaçam espetáculo com vigilância. Aqui, colocado ainda um agravante não desprezível; trata-se de mulheres cegas. Esta proximidade com as formas mais reles de exposição e funcionalização dos corpos colocam o filme de Berliner em um limite do documentário e se podemos agora abordar o que há de propriamente político neste trabalho, talvez essa abordagem deva começar justamente pela maneira como o realizador força o limite do humanismo, do olhar distanciado, da vitimizaçao. Toda essa prática contemporânea que excluía a política encontra neste filme um forte oponente.

Desfuncionalizado, o corpo aparece como tal, não serve ao voyeur nem ao mercado, não é erotizado para ser consumido, é apenas corpo. Nesse sentido, o A pessoa é pra o que nasce termina com o corpo como “meio enquanto tal”, como escreveu Agamben para falar dos gestos. Talvez seja este o lugar propriamente político que o documentário pode dar a estes corpos, ou seja, recolocando-os entre o ordinário e o singular e desconectados de uma ação que opere no mundo da maneira individual; não se trata do corpo forte, ativo, vigoroso e fundado na ação, mas do corpo marcado, inscrição do vivido, o corpo como “comunicação de um comunicável”, nas palavras de Agamben ainda sobre o gesto. Reconectar o corpo com a virtualidade destes mesmos corpos é das tarefas mais políticas e dignas do documentário.

28 de out. de 2007

25 de out. de 2007

De Edifício Master a Jogo de Cena - Coutinho

Reproduzo aqui fragmentos de uma crítica que escrevi sobre Edifício Master na época do lançamento, chamada Personagens a deriva. Esses fragmentos explicam porque gostei tanto de Jogo de Cena.

"O prédio não faz comunidade, não há um espaço que incorpore todas aquelas pequenas células. São partes que não constituem um todo. Enquanto o filme caminha de apartamento em apartamento não há uma acumulação que construa o espaço escolhido. A ausência de um “solo comum” e o isolamento de seus moradores são características do prédio respeitadas pelo filme, é desta forma que os personagens são apresentados. A dúvida quanto ao método se coloca a partir deste respeito à realidade. Em Master este isolamento não está apenas traduzindo uma característica do real, ele acaba por alterar e perturbar a própria presença de quem fala. Desligados de uma ordem maior, que pode ser fílmica, cada personagem é o filme inteiro a cada momento; o que acaba por submeter cada um dos personagens a um excesso de exposição e de responsabilidade em relação ao filme. "

"O excesso de peso dado a cada personagem, a desconexão de cada fala de um solo comum, a extrema responsabilidade que cada fala tem em “segurar” o filme, seja pelo riso ou pela emoção, não colocam também questões éticas? Poderíamos argumentar que em Edifício Master o diretor alcança uma pureza nas falas, elas estão ali, expostas, sem interessar a ordem em que aparecem, sem vínculo com a imagem que sucede ou com a imagem precedente; expostas e desenraizadas. Puros fragmentos de existências. Mas, reside nessa pureza o principal problema do filme. A presença daqueles personagens do filme despidos de pontos de apoio e flutuantes, os leva a uma fragilidade que extrapola o real e expõe vulnerabilidades em relação à suas próprias imagens; efeito talvez de uma mediação insuficiente no deslocamento do privado para o público."

24 de out. de 2007

Notas sobre o documentário como espaço democrático

Post recentes sobre a questão da democracia, basicamente escritos a partir de Rancière, me levaram a pensar algumas coisas sobre o documentário, ou, mais especificamente; até que ponto é possível pensar o documentário como um espaço democrático?

O problema não é novo; toda discussão em torno da possibilidade do documentário dar voz ao outro passa por esse problema da palavra, do poder e do compartilhamento de uma espaço físico e simbólico.

Duas semanas atrás assisti na Mostra de Curtas de Goiânia o filme Jardim Nova Bahia, de Aluysio Raulino, (dentro de uma excelente mostra de documentários históricos organizada por Tetê Mattos) discutido por Bernardet (Entrevista) em Cineastas e Imagens do Povo. No filme, como sabemos, Raulino entrega a câmera para seu personagem. Segundo Bernardet, " é provavelmente o ponto de tensão máxima a que chega a problemática relação cineasta/outro de classe".

No filme de Raulino esta tensão chegava ao ponto de o realizador entregar a câmera, entretanto, o problema estava longe de ser resolvido. Nem a palavra estava dada ao personagem do filme, nem a prática se tornaria uma forma de compartilhar a linguagem entre realizadores e as pessoas presentes no filme.

Antes, acredito que o documentário se torna democrático quando ele inventa formas para que um gesto ou um som intempestivo possa surgir, mas, mais do que isso, que essas palavras se tornem enunciados. Ainda em Goiânia, assisti o bom documentário de Eric Laurance "No rastro do camaleão" . No curta-metragem, por três vezes, o grupo de artistas/agricultores, já filmados em diversas oportunidades, como nos mostra o filme, interpela os realizadores sobre o fato de eles serem "objetos" de um produto comercial, que dá dinheiro para o cineasta e não traz nada para eles. Os personagens expõem com clareza a sensação de estarem sendo explorados no momento mesmo que o filme se faz. O que faz o documentário diante dessa insistência? Se cala.

Poderiamos então dizer que se por um lado o filme constrói um espaço em que a fala reivindicatória desses indivíduos pode aparecer, por outro é o próprio filme que não se vê concernido. A reinvidicação é transformada em anedota, não passa assim a habitar o mesmo dizível dos realizadores; "eu te deixo falar mas não te escuto".

Algo muito diferente do que acontece no filme Mato Eles?, de Sérgio Bianchi. Em um certo momento do filme, um índio já de mais idade pergunta ao realizador: "E o senhor, quanto está ganhando para fazer esse filme?" O realizador no momento não responde, mas logo depois, nos créditos, aparece em off dizendo algo como: "Você quer se dar bem em cima deles? Monta uma loja de produtos indígenas, fotografa ou faz um filme". A fala irônica de Bianchi reinsere a fala do índio em um mesmo espaço de tensão. Não se trata de dar razão ao índio, mas de fazer aquelas palavras ecoarem.

Seguindo com Rancière, a palavra se torna política quando ela é capaz de enunciar um litígio, quando ela aparece como o que perturba a distribuição dos corpos no espaço, quando ela refaz linhas de visibilidade, retraçando e desestabilizando a partilha do sensível. A palavra habita assim a cena política como produtora de um dissenso, trazendo para esta cena a possibilidade de irrupção de atores intempestivos, não roteirizados, que adentram a política sem serem chamados, em um esforço de linguagem que rompe a estabilidade dos conflitos pré-existentes. A cena política não é assim um lugar de acordos que organizam relações e poderes, mas de irrupção de seres falantes, de línguas e gestos em um universo que perde suas estruturas e seu caráter "policial", de distribuição de lugares já dados, para se haver com uma suspensão mesmo dos lugares que garantiam a desigualdade. A política não está dada à priori, como parte da natureza humana. As partilhas que se vêem estáveis, onde não há mais o lugar de um sujeito excessivo que perturbe a partilha, são justamente os lugares em que a política tende a desaparecer.

Trazer essas noções de democracia para o universo dos documentários é um gesto arriscado. Entretanto, os problemas que a presença ou ausência da democracia colocam estão diretamente ligados à uma construção de uma cena em que uma relação entre indivíduos, instituições e tecnologias se dá, e a construção de um documentário depende, intensamente, desta cena, depende da presença desses sujeitos e das formas como cada um dos pontos e atores desta cena se relaciona com os outros pontos e atores.

Rancière me estimula a fazer uma outra passagem entre sua reflexão sobre a democracia presente no livro "O ódio à democracia" e o universo do documentário. Como o escândalo da democracia é justamente ausência de título para justificar que x governe y ou vice-versa, Rancière pode afirmar que democracia quer dizer antes de tudo um "governo" anárquico, fundado sobre nada mais que a ausência de título para governar" (La haine de la démocratie, p. 48)

Diante desta realidade, Rancière nos lembra que Platão não elimina a possibilidade da escolha dos governantes ser feita por sorteio por dois motivos; o primeiro é que o bom governo é feito por aqueles que não desejam governar - "Se há uma categoria a excluir da lista dos que estão aptos a governar, é em todo caso aqueles que lutam pelo poder" (La haine de la démocratie, p. 50) . O segundo motivo é que o título para governar pelo sorteio - que não é verdadeiramente um título - , produz um efeito de deslegitimação sobre todos os outros títulos - riqueza, idade, poder econômico, poder religioso. O sorteio rompe assim com a oligoï - riqueza de poucos - e com a arete - excelencia que dá o título governar aos aristoï - os melhores - deixando ao demos - povo - o governo, uma vez que seu poder se exerce sem nenhuma propriedade pré-determinada.

Pois estamos no cerne do problema, todas as formas de legitimar um poder se opõe à democracia e consequentemente à política. Sigamos com Rancière; é necessário um título suplementar para que o rico possa governar o sábio ou que a maioria possa governar o rico ou que o sábio possa governar a maioria e este título é, segundo o filósofo, um título anárquico, próprio àqueles que não tem título para governar. Um título que se impõe pela ausência de título a governar. Para Rancière, em última análise, a política é o poder daqueles que sem razão natural para governar, governam aqueles sem razão para obedecer. (p.55)

O acaso, presente no sorteio dos governantes, é o que me interessa. Escolher os governantes por sorteio pode parecer apenas risível e não se trata aqui de fazer a defesa deste sistema. A ligação entre o sorteio e a legitimidade é o que me parece importante para olharmos para o que acontece no documentário. Se uma importante parte do documentário moderno tem justamente o desafio de lidar com uma falta de legitimidade para enunciar, é para o acaso presente em formas de "sorteio" que ele se volta. Filmes de busca e com dispositivos, por exemplo, são formas de não escolher as pessoas com quem o realizador irá se relacionar. Nesta não-escolha, não se trata de dar voz, fazer ver ou revelar o que está escondido, mas de encontrar meios para que todos os atores envolvidos no filme - realizador e personagens - possam habitar um universo propriamente político, em que a palavra possa ser dita e ouvida, em que o dissenso possa existir.

Nesse sentido, volto a me lembrar do novo filme de Eduardo Coutinho, Jogo de Cena em que cada fala é transformada em texto para as atrizes, redobrando-se assim a escuta daquelas falas que compõe um cena propriamente política.

22 de out. de 2007

TV Brasil

Porque a diversidade do país não é contemplada na mídia privada.
Porque vivemos em uma sociedade que volta aos poucos a acreditar nos bens públicos e comuns.
Porque é possível separar o bem público do grupo que está no poder.
Porque estamos em um momento posterior a uma revolução tecnológica que democratizou a produção audiovisual.
Porque o monopólio ideológico e estético das tvs comerciais causa vergonha.
Porque os oligopólios da mídia chamam de censura qualquer tentativa de controle e participação pública.
Porque não existe Tv sem espetáculo no país.
Porque o comércio não resolve a necessidade de comunicação.
Porque existe inteligência, desejo e criação fora das relações regidas pelo dinheiro.


Matéria no Observatório da Imprensa sobre um encontro com Tereza Cruvinel, responsável pela implantação da TV Brasil.
Matéria do Jornal O povo (Plínio Bortolotti) com críticas pertinentes aos primeiros passos da criação da Tv Brasil

21 de out. de 2007

Documentário e democracia

A democracia é essa ausência primeira ao direito de governar. Na democracia não há título a governar - elite, povo, igreja. (cont. post anterior)
Se ao governo é feito pela elite econômica ou religiosa, pode haver governo mas não há política.
Se há política é sempre possível que um novo ator apareça para dizer; minha fala também é política, minha reividicação e meu desejo, minha presença no poder também é política. A política, diz Rancière é a possibilidade de constantemente deslocar os limites do político; daquele que tem direito e ver e dizer na polis.

A democracia aparece justamente quando aparece o poder de um "povo" que não é particularmente legitimado por um sistema de estado ou econômico.
Algo que excede, sem ter nenhuma qualidade ética ou social particular.

Tudo isso me ajuda a pensar o cinema, especialmente o documentário.
Lugar onde pode surgir uma voz suplementar, um gesto que não suporte os catálogos pré estabelecidos.
Lugar em que a fala não pertence mais a uma ou ao outro, mas se torna coletiva.
Coletiva porque o documentário é frequentemente uma saída de si e uma invenção de um espaço comum, entre vários.
Por isso, dar voz ao outro é uma falácia, posto que a voz e a fala é uma invenção coletiva.
Esse talvez seja o caráter mais radical e democrático do documentário, ou seja, a possibilidade de na imagem aparecer novos atores no jogo social. Não é isso que nos moblliza nos bons documentários?
Não é isso que nos mobiliza nas imagens?

Notas sobre a Democracia com Rancière

A democracia é propriamente a desconexão entre ordem civil e ordem natural. Nenhuma ordem natural é anterior à democracia - governo dos mais velhos ou sábios, por exemplo - esse é o escândalo da democracia, uma ausência de legitimidade natural que autorize o exercício do poder.

A democracia é o poder "de qualquer um" e este poder é anterior a qualquer forma de governo. Rancière explicita assim o equivoco que se faz ao se confundir democracia com uma forma de governo. Ao fazer essa confusão regimes como o de Bush se autorizam a impor a "democracia" pelo mundo. Podemos pensar então que a retomada crítica da noção de democracia é também uma maneira de enfrentarmos os poderes mais autoritários em curso. Recuperar o escândalo da democracia.

Após a queda do muro, o principal inimigo da democracia é a democracia ela mesmo, é o que Rancière conclui como sendo a crítica que os intelectuais fazem à liberdade que os indivíduos em dar "livre curso aos seus desejos", seja no consumo, seja na vontade de comunicação com o mundo todo ao mesmo tempo, "mas também na jovem que quer manter seu véu na escola ou de casais homossexuais que desejam adotar filhos".

Este último exemplo é muito revelador das formas como o conservadorismo está presente no pensamento. Uma nostalgia do pai e da autoridade se traduz em ódio à democracia.

A democracia não está dada nem em uma forma de estado nem em uma forma de sociedade, pela democracia a luta é infidável e constante.

20 de out. de 2007

Fontana de Trevi vermelha

Algum tempo atrás comentei o livro São Paulo:Pixação.
Lembro-me agora desse livro ao ver as imagens da Fontana de Trevi, em Roma.

A Ação em Roma se une à pixação de SP, ou de qualquer lugar do mundo, uma vez que é considerada um ato de vandalismo ao mesmo tempo em que ocupa uma parte da cidade com um forte gesto estético. Nos dois casos, desprezar o gesto estético talvez seja importante para não reforçar esse tipo de manifestação como ação legítima, mas ao abandonarmos o gesto estético estamos também deixando de lado um debate propriamente político sobre a cidade e as repartições que nela se fazem.
A Fontana de Trevi vermelha não é menos impressionante que a Pont Neuf embalada por Christo, estes limites entre arte e não arte, obviamente não tem nenhuma estabilidade. Quem já esteve na Fontana de Trevi sabe como ali se materializa a museificação que o turismo opera em determinados lugares das cidades e por vezes em cidades inteiras. O maravilhoso projeto Velolibre, em Paris, que tenta transformar a cidade em uma cidade para ciclistas, distribuindo bicicletas públicas em mais de 1300 pontos da cidade, por exemplo, não escapa dessa dimensão.
A Fontana de Trevi é um fonte onde não se pode tocar na água, ela é tratada como uma pintura, como se estivesse no Museu do Vaticano. Seu entorno é absolutamente degradado pelos turistas. Curiosamente foram imagens feitas por turistas que ajudaram a polícia a identificar a pessoa que jogou a tinta na água.
A tinta jogada na água pelos ativistas pode manchar o mármore poroso da fonte de maneira definitiva, é triste. E agora? Desprezamos o gesto e o tornamos apenas um crime, que de fato é? Ou fotografamos a Fontana e a alegria dos turistas, que sem o marasmo clichê de sempre, tiveram a sorte de ver a Fontana pintada de vermelho?
Me parece que em casos como esse o vandalismo não está dissociado de um desejo de reaver a cidade, torná-la viva e habitada novamente, fazendo a Fontana existir novamente como objeto passível de uma experiência estética e não apenas de uma experiência a ser transformada em algumas informações digitais na mais nova câmera Sony de 7.1 megapixel.

16 de out. de 2007

André Gorz- entrevista

Emissão da France Culture sobre André Gorz seguida de uma entrevista com o próprio.
(posts anteriores sobre Gorz 1 e 2)

Socine, na PUC Rio

Começa esta semana, na quarta-feira, o XI Encontro Internacional da Socine, na PUC Rio. (programação)

André Brasil, Ilana Feldman, Clebér Eduardo e eu estaremos apresentando nossas comunicações na sexta-feira.

A imagem política na nova política da imagem
Tendo como referência o campo das imagens contemporâneas, as comunicações abordam as variações de um novo regime de visibilidade: um terreno movediço e paradoxal, marcado por uma multiplicidade de estratégias, de modos de produção, exibição e de efeitos, que apontam para possibilidades de uma imagem política em uma nova política da imagem.
Procuraremos assim investigar e problematizar a relação entre imagem, política e estética: o apelo realista das narrativas do espetáculo e a "vontade de verdade"; a redução da imagem à dimensão da informação como estratégia de controle e monitoramento; os dispositivos forjados para abolir o efeito estético de uma imagem ou, ao contrário, para engendrá-lo, levando em conta uma percepção pautada tanto pela autenticidade gerada pelo artifício quanto pelo artifício captador de uma (suposta) autenticidade; as narrativas do deslocamento e o deslocamento da política em alguns filmes recentes; dentre outras questões.
As comunicações exploram objetos diversos, do Big Brother Brasil aos depoimentos no final dos capítulos da telenovela Páginas da Vida (Ilana Feldman), do vídeo-sequestro do PCC, exibido pelo Plantão Globo (André Brasil) ao trabalho do artista e cineasta mineiro Carlos Magno (Cezar Migliorin), além de alguns títulos do cinema brasileiro recente (Cléber Eduardo).

15 de out. de 2007

Chris Burden, (ainda)

The Flying Steam Engine

Goiânia Mostra Curtas - prêmios

Marta Biavaschi, Bertrand Lira e eu decidimos pela seguinte premiação:

Material Bruto, de Ricardo Alves Junior como o melhor curta
Melhor direção para Pablo Lobato pelo filme “Outono”.
Troféu Icuman Menção Honrosa para o curta Um fazedor de filmes, de Arthur Lins e Ely Marques

Concedemos ainda três menções honrosas aos filmes:
Sentinela, direção e roteiro Afonso Nunes
Câmera Viajante, de Joe Pimentel
Tá, de Phillipe Schol,

Material Bruto, de Ricardo Alves Junior

Tive o prazer esta semana de fazer parte do júri (Marta Biavaschi, Bertrand Lira e eu) da Goiânia Mostra Curta que concedeu o prêmio de melhor curta ao belíssimo vídeo mineiro Material Bruto, de Ricardo Alves Junior.

Nossa justificativa:
O filme realizado com pacientes dos centros de convivência da rede pública de saúde mental de Belo Horizonte traz uma dimensão experimental e estética aos gestos, sons e movimentos dos personagens: homem-cigarro, mulher-cabelo e homem-música. Estes movimentos e formas do corpo, normalmente vistos como “expressões de loucura”, aqui ganham uma potência artística que nos faz ver o outro.


13 de out. de 2007

Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho (2)

Depois de Jogo de Cena, penso em `Edificio Master, Santo Forte ou Babilônia 2000 tendo em mente o que mais me comoveu no novo filme, ou seja, a dimensão coletiva das falas.

O texto é dito por alguém, mas ao mesmo tempo em que é dito faz a pessoa desaparecer como indivíduo para ser uma ponte para a própria linguagem. Pois, não é isso que acontece em Jogo de Cena? Uma enunciação sem propriedade.

Nunca houve uma fala individual. Nos filmes anteriores, o que interessava era a dimensão coletiva da linguagem, é o que Jogo de Cena revela. Os filmes não são sobre as pessoas, é essa dimensão que Coutinho com esse filme trouxe para toda sua obra recente.

Coutinho manteve a mesma geografia, mesma relação espacial entre ele e o personagem mas deslocou-a para o teatro e retirou de um ou de outro, de Antonia ou Maria o direito de reivindicar para si suas próprias histórias.

A fala quando sai de um se torna infinita; do um ao múltiplo com um corte. E ai, a fala não pertence a mais ninguém e a todo mundo. É isso que acontece quando percebemos que duas mulheres contam a mesma história como o mesmo grau de envolvimento.
Maneira explicita de destruir as fronteiras entre o individual e o coletivo.

E não sei mais quem é Fernanda ou Andréa, Marília ou …

E o dispositivo não tem artimanhas, não está dado de início, é feito e refeito durante o filme e a montagem. A “prisão” de Coutinho aqui ganhou asas e se liberou, nem por isso deixou de ser um dispositivo.

O “outro” nos filmes de Coutinho traz algo enganoso em relação à atenção com esse “próximo”. Por mais que não desejássemos, a função sociológica do documentário de “dar voz ao outro” persistia. A revelia de Coutinho, é verdade, mas é só com Jogo de Cena que esse outro desaparece. Justamente porque não há mais um outro distinto do papel das atrizes. O outro ficou disperso, parte de todos.

Créditos no cinema

Os créditos dos curtas metragens serão vistos. Em um festival, depois de um curta há um outro curta – diferente do longa, em que o público pode sair da sala sem ler o nome dos motoristas.

Os créditos no cinema me trazem um certo embaraço. Imagine se na pintura o pintor fosse colocar o nome da pessoa que fez a moldura, o nome da tinta e do químico que as produziu, etc, assim fazemos, nós cineastas.
A quem agradeceria Picasso?

A última foto", de Rosangela Rennó

No ar, na Revista Cinética, artigo dobre a exposição "A última foto", de Rosangela Rennó.
por André Brasil e Cezar Migliorin.

12 de out. de 2007

Filmes sobre filmes

Estou no festival de Curtas de Goiânia e tenho vistos muito filmes em que o cinema é principal tema. Um personagem que faz, outro que não consegue fazer, outro que faz apesar das condições adversas, um outro que exibe apaixonadamente (apesar...).
Alguns desses filmes são ótimo, reveladores de universos singulares e forças dispersas, marginais e atuantes.
Mas não é com um certo estranhamento que vejo esses filmes. Há duas características que os atravessam. Uma, no caso do documentário, a constante sedução pelo exótico e pelo empreendimento pessoal; apesar de... (um princípio "gente que faz")
A outra, mais difusa, é uma relação meio que museológica com o cinema. O cinema como algo que acabou mas que um ou outro herói continua obstinadamente a manter vivo.

11 de out. de 2007

As mãos, Bacon, Drew, Kennedy e Focillon

Foi editado recentemente em português o livro de Gilles Deleuze sobre o pintor inglês Francis Bacon, Lógica da Sensação. Trata-se de um livro breve que de maneira clara permite uma ótima entrada no universo deleuziano e uma excelente aproximação com um dos maiores pintores da segunda metade do século XX.

Na verdade me lembro agora do livro por conta de uma saudade que tenho tido do cinema-direto. Tantos documentários e tanta gente falando. Fora as diversas questões que Bernardet levanta no texto “ A entrevista” que ele inclui na última edição de Cineastas e Imagens do povo, o livro sobre Bacon me lembra que nos filmes frequentemente perdemos as mãos - não aquelas das imagens de cobertura em que as mãos ficam a reboque da fala e servem para enfatizar o que o texto já diz.

Deleuze diz que para Bacon é “como se as mãos tomassem uma independência, e passassem ao serviço de outras forças, traçando marcas que não dependem mais da nossa vontade que da nossa visão […] Não é suficiente dizer que o olho julga e a mão opera, a relação entre a mão e olho é infinitamente mais rica”

No belo texto de Focillon, Elogio à mão, ele escreve : "Ela pega, ela cria, e por vezes diríamos que ela pensa”
Pois o cinema direto tem essa possibilidade. Todos lembram das mãos de Jacqueline Kennedy em Primary, de Robert Drew, recentemente lançado pela Vídeofilmes. É fácil dizer que ali as mãos revelam o nervosismo da futura primeira dama, mas é mais do que isso. Se formos no caminho indicado por Focillon, as mãos não estão representando um estado de Jacqueline Kennedy, mas são, elas mesmas, que estão a pensar e se expressar.

comme si la main prenait une indepandance, et passait au service d’autres forces, traçant des marques qui ne dependent plus de notre volonté ni de notre vu”. […].” Il ne suffit certes pas de dire que l’oeil juge et que les mains operent, Le rapport de la main et de l’oeil est infinement plus riche” (Bacon/Deleuze p.145)

"
elle prend, elle crée, et parfois on dirait qu'elle pense" p.104
A tradução é minha, a da edição brasileira é certamente bem melhor.

Inhotim 3 - Chris Burden

O isolamento de Inhotim talvez cause estranhamento pela ausência do estado no grande empreendimento . Estamos muito acostumados a ver a presença de alguma grande instituição estatal ou de verbas públicas quando se trata de arte.

Lembro- me personagem de Jack Palace em “O desprezo” de Godard. “Quando ouço falar em cultura pego meu talão de cheques.

Pois Inhotim tem a explicita ausência do estado, o que é fantástico também. Mas como pensar em uma ausência do estado e ao mesmo uma dimessão democrática e comum? Talvez o problema sejam as próprias artes plásticas… Como é possível algo tão grandioso, onde existe tanto dinheiro se não fossem as artes plásticas tão vinculadas à especulação e ao capital financeiro?

No lugar de INHOTIM poderia existir uma fazenda privada, com os mesmos cisnes e lagos, sem que ninguém pudesse visitar. Ou então uma ilha em Mônaco, destino mais tradicional de tanto dinheiro.

Nesse sentido Inhotim tem um papel público importante. As crianças da periferia de BH que vimos ali dificilmente veriam os trabalhos de Tunga, Cildo Meireles ou Oiticica em outras condições.

Na última galeria que visitamos, nos deparamos com Samson (Burden explica a obra) um trabalho que eu não conhecia do artista americano Chris Burden, (ver post com link para vídeo com performances de Burden). Pois Chris Burden é um artista paradigmático dos limites que a arte chegou nos anos 70. Em uma de suas performances – ShootBurden leva um tiro no braço, de propósito. Seu corpo sempre esteve na obra e sua obra sempre foi muito arriscada, para ele, claro, mas para a arte também. A obra que está em Inhotim não é diferente. Trata-se de um grande macaco-hidráulico colocado entre duas paredes da galeria, afastadas por uns 15 metros. Na estrada da galeria, cada pessoa, para se aproximar da obra deve passar por uma roleta que esta conectada ao mecanismo que a cada passagem pressiona um pouco mais o macaco contra a parede da galeria.

Um trabalho incrível que coloca o espectador como participante da destruição da obra e da galeria, ou se preferirmos, da transformação da obra.

Depois de passar pela roleta, ir buscar o nome do artista e ter o prazer de me deparar com o nome de Burden, a Flavia me chama atenção para o fato que a correia que deveria fazer o mecanismo girar milimétricamente a cada passagem dos espectadores estava girando em falso e que, obviamente, as paredes não estavam sendo pressionadas.
Era a útima galeria que estavamos visitando e, com ela, Inhotim vinha abaixo – de maneira diversa da imaginada por Burden

Alí se materializava todo incômodo de Inhotim. O mundo e aquele lugar estavam blindados aos efeitos da arte. Sobravam os nomes, os artistas, as obras, as estéticas, os lagos, mas tudo isso é isolado. O futuro museológico das obras é ali levado à mais alta potência.

Como disse um amigo, a partir do trabalho de Burden, tudo passou a rodar em falso em Inhotim. Novamente, por caminhos tortos, Burden é capaz de explicitar um estado do mundo.

Lutar pelas palavras

Em uma palestra, George Didi-Huberman introduziu o assunto de sua comunicação de maneira marcante. Ele anunciou que iria falar sobre o virtual e que apesar da desgaste da palavra, aquele era um conceito lindo e era preciso brigar por ele, não perdê-lo. Mais do que isso, e talvez seja já uma leitura só minha, é preciso lutar pelas palavras. Certas palavras ganham circuitos e discursos que a despontecializam de tal maneira que somos proibidos de usá-las, e o virtual é uma dessas. O mesmo acontece com o conceito de dispositivo no documentário. Abandoná-lo porque está gasta serve apenas para que voltemos a procurar outra palavra. A cítica e a teoria vão assim dentro de uma lógica fasshion; assim que todo mundo está usando se abandona o nome do conceito.

Recentemente fui dar uma aula em Nova Iguaçu, na Escola Livre de Cinema e, confesso, para minha surpresa, todos sabiam o que era um dispositivo – claro, outros professores tinham passado por lá. Mas, ao mesmo tempo que sabiam a noção era difusa, pouco clara para alguns. Me lembrei de Freud e do inconsciente. Para o psicanalistas e para o homem do ponto de ônibus (que pode ser o próprio psicanalista), o inconsciente existe e é operável enquanto conceito. Para quem se interessa pelo inconsciênte, a noção dá trabalho, não precisa ser jogada fora – apesar de poder ser questionada, é claro.

Ódio ao poder público

Ódio ao poder público, tema recorrente em documentários de tom esquerdista.
Partindo do princípio que o poder público é ruim a esquerda no documentário encontra a grande mídia e a direita.

5 de out. de 2007

Larry Clark em Inhotim

Ainda em Inhotim (ver post anterior)


Fiquei muito tocado com as fotos de Larry Clark, diretor dos filmes Ken Park e Kids, feitas 20 anos antes do filme, mas no mesmo universo. A força do filme se dá muito por conta de sua intimidade com esse universo adolescente ligado à sexualidade e às drogas. O filme não acontece por conta de um roteiro ou de uma dispositivo, mas pelo envolvimento mesmo do realizador com aquele ambiente. Com as fotos entendi um pouco da gênese da potência do filme, uma insistência temporal e estética que dá um peso às imagens.


Como diz o Comolli, a questão é saber o que fazer para que haja filme, e não como filmar. Aqui um exemplo.

Inhotim 1 - Centro de Arte Contemporânea

Estive esta semana em Inhotim, no Centro de Arte Contemporânea.
É facil falar do estranhamento de encontrar um centro de artes com 8 galerias com o melhor da arte contemporânea em meio a jardins cuidadíssimos, lagos artificiais, etc há 1:30 de Belo Horizonte; no meio da roça.

Há alí o melhor e o pior da arte contemporânea.
O melhor são os trabalhos fantásticos de Cildo Meireles, montadas como devem ser, sem data para serem desmontadas. Obras de Neto, Jarbas, Oiticica, Chris Burden, Larry Clark, etc. Há uma excelente atenção com o espaço em que as obras aparecem. Tunga, por exemplo, tem um prédio suspenso sobre um lago para uma instalação sua.
Tudo é grandioso.

Ao mesmo tempo, tudo é isolado do mundo, tudo parece desconectado da vida. O lugar é como que resguardado das pressões da cidade, da circulação urbana, dos artístas e críticos.
O lugar se apresenta de maneira tão imponente que parece ter um autonomia em relação a tudo, inclusive à arte.

4 de out. de 2007

Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho

Estupendo!
Vou voltar ao filme, claro, mas é desta impressão que é necessário partir.

Poucas vezes uma fala foi tão coletiva.

Nostalgia, de Hollis Frampton


O fotograma acima pertence ao filme Nostalgia (1971), do artista e teórico americano Hollis Frampton, morto em 1984.
A primeira vez que ouvi falar no filme foi pelo livro do Bernardet sobre o Kiarostami.
Bernardet cita o filme em uma breve passagem sobre os "structural-films" em que ele está pensando as origens dos filmes-dispositivo. (o outro filme citado é Wavelenght de Michael Snow)

Nostalgia é brilhante. Frampton escolhe 13 fotos e as coloca sobre uma boca de um fogão elétrico. Todas as fotos são de alguma forma parte da vida de Frampton, trata-se de um trabalho quase autobiográfico. Enquanto as fotos queimam e se contorcem Frampton fala a data da foto e faz comentários sobre a imagem, composição, quem estava presente, etc.

Mas há um detalhe perturbador, Frampton nunca comenta a foto que estamos vendo, mas a seguinte. No início, tudo parece muito simples, como se o texto dobrasse o que estamos vendo, mas, quando percebemos o dispositivo, a cada imagem tentamos ouvir o texto - para podermos lembrar dele enquanto vemos a foto seguinte e ver a imagem tentando se lembrar do texto que ouvimos na foto anterior. De repende, onde parecia haver redundância - o que demandava pouco esforço do espectador - se torna um jogo muito complexo em que o espectador está sempre perdendo algo em relação ás imagens.

Também de Frampton, 1971.
Zorn's Lemma
O filme também se constrói com um dispositivo de montage que só se percebe vendo todo - ou quase - filme

Escritura e intimidade

Recentemente uma amiga me escreveu dizendo que gostara de um artigo que Ilana Feldman e eu escrevemos sobre o programa Retrato Celular, mas me colocando a questão:

Te escrevo para entender uma coisa: o que chamas de escritura? "Filmar a própria vida é uma questão de escritura e não de intimidade".

Pergunta mais que pertinente:
Minha primeira tentativa é:

Toda escritura opera em dois níveis; o singular e o comum. O exemplo mais evidente pode ser essa nossa comunicação. Por um lado eu me singularizo quando organizo esta linguagem ao mesmo tempo podemos nos comunicar por conta de uma linha comum que nos une pela linguagem.
Quando digo que não se trata de intimidade, mas de escritura, estou tentando deixar claro que narrar a si é um tema que, como qualquer outro, não existe independente de uma relação com a linguagem, com escolhas entre o que me singulariza e o que traço de comum, entre o individual e o coletivo.
Programas como o Retrato Celular e os reality, de um modo geral, parecem se fiar nessa ancoragem no real que esse tipo de imagem dá. Isso é verdade! – Eu eu o André Brasil discutimos um pouco isso no texto sobre o Saddam e a Cicarelli – Mas, essa ancoragem tende a se confundir com a não-necessidade de uma escritura, como se por falar de si e na intimidade, houvesse uma transparência possível, o que é um engano. A ficção de uma imagem não mediada já morreu, o que demanda uma escritura.

A escritura é uma relação estética com o fato, com a vida, com o que se quer dizer. A vida é a vida, mas, quando falamos, escrevemos, narramos, filmamos ou fotografamos nossas vidas ou as vidas alheias, essas imagens são sempre mais ou menos que as próprias vidas. A escritura, assim, estabelece sempre uma relação não consensual com o que narra, sempre falha e rasgada.

É interessante a gente perceber como o cinema comercial utiliza de forma compulsiva as imagens de câmeras de vigilância. Estas imagens são parte do mundo, certo, mas na linha do que vem pesquisando o Thomas Levin, essas imagens parecem incorporar o "isto foi" da imagem fotográfica dos primeiros tempos; essa presença não mediada.

Agradeço a Gabriela Paschoal pelo interesse e provocação

3 de out. de 2007

White Balance, (pensar é esquecer as diferenças), de François Bucher

White Balance, (pensar é esquecer as diferenças), de François Bucher

A convite de Eduardo de Jesus e Patrícia Faria para participar do evento Imagem e Pensamento em Belo Horizonte (29/09/2007), reúno aqui algumas notas e reflexões sobre o vídeo White Balance de François Bucher.

Destruição e proposição

O vídeo de Bucher aborda o evento 11 de setembro através de uma montagem fragmentada e propositiva em que o realizador faz múltiplas conexões entre imagens, sons e palavras vindos de universos heterogêneos. Etiquetas de camisetas, filmes de Hollywood, falas de populares na rua, George Bush, internet, cartazes, etc. A estratégia de Bucher aparece com dois desafios simultâneos. O primeiro é retomar para si o evento; reaver o evento como algo pensável por ele e pelo mundo. O segundo, desdobra-se do primeiro, trata-se de pensar o evento. Os dois desafios não são propriamente separáveis, como se viessem um depois do outro, sobretudo porque no caso de Bucher é com a montagem que o artista recupera o 11 de setembro e o incorpora a novos fluxos, novas linhas de pensamento e conexões.
O 11 de setembro é o evento paradigmático da impossibilidade de separarmos o evento da imagem do que acontece. Evento e imagens formam assim um só e mesmo acontecimento. Se as imagens fazem parte do evento elas podem ser responsáveis pela não-estabilidade de um evento em uma só linha discursiva, ou a destruição e apagamento do evento nos clichês que o substituem. Trata-se de uma questão matemática. A imagem é sempre mais ou menos do que o evento, nunca a totalidade. Uma imagem nunca dá a ver tudo que há a ver, nunca diz tudo que há a dizer. Se uma imagem se mantém como imagem na relação com um evento – com a potência indicial e lacunar ao mesmo tempo, é o próprio evento que se torna lacunar. Pois é nesse espaço entre eventos e imagens, inventado pela própria presença de ambos, que o pensamento é demandado. Não como o que vêm harmonizar a relação, mas como o que é capaz de criar passagens entre o acontecimento e outros acontecimentos, imagens e história. É nessa fenda que aparecem os artistas e os espectadores; inventando novas montagens, novas linhas de conexão, novas tensões que mantém o evento vivo.
Se o acontecimento só existe com a imagem, a possibilidade dele se manter como algo a ser pensado está na imagem que guarda sua potência indicial e combinatória. O isolamento das imagens, apartadas dessa potência combinatória, é parte de um esquecimento da política como invenção de um dizível e de um sensível. Se as imagens não podem mais se combinar porque todas as ligações já estão dadas, perde-se a possibilidade de construir um campo em que o direito à fala está em construção. “Civilização da imagem? Pergunta Deleuze, não civilização do clichê porque todos os poderes têm interesse de nos encobrir as imagens.” No clichê, a estabilidade do dizível é o que expulsa a política da imagem.
Assim, no vídeo de Bucher, a montagem é o que refaz as conexões: Lombroso e o controle de traços físicos pós 11/setembro estão separados no tempo, mas juntos na lógica opressiva contemporânea. As aulas privadas de “eliminação dos sotaques estrangeiros”, como mostra um cartaz pregado em um poste de rua, não está distante de um filme com o governador da Califórnia em que a Colômbia é invadida e onde se fala inglês. As camisetas que os americanos utilizam por baixo da camisa são fabricadas em paises do terceiro mundo, muitos deles já invadidos pelos Estados Unidos. Com estas operações Bucher cria um campo de fala possível, possibilidades de ver e dizer por uma operação de montagem. Não que o evento tenha uma essência a significar, uma verdade escondida pelo clichê, mas porque estão presos em uma ordem em que são obrigados a dizer certas coisas.
Se o Balanço de Branco inventa uma homogeneização, um ponto de vista central a partir do qual todas as imagens se referem, a montagem é justamente o que descentrará esse ponto estável. O evento deixa de ser o centro organizador das imagens para ser o que as atravessa. A montagem é justamente o que impede o isolamento das imagens como se elas pudessem ser vistas fora de um processo histórico e político complexo e lacunar. Esta primeira operação tem então o desafio de reintroduzir o evento na linguagem.

Segundo Movimento

Se em um primeiro momento a estratégia de Bucher parece ser de destruição de da estabilidade do visível e do dizível sobre o evento, ela nunca deixou de ser, na verdade, propositiva.
A montagem em White Balance faz uma clara opção pela descontinuidade e fragmentação que pode, facilmente, ser lida como uma sucessão de imagens desconectas em que o espectador ganha autonomia na relação e nos efeitos que a montagem dessas imagens podem ter sobre ele. “Cada espectador estaria livre para pensar o que quisesse e pudesse”, diríamos. Absoluto engano! A fragmentação, a descontinuidade, a não-utilização de uma lógica linear ou retórica está longe de se abster a entregar ao espectador um certo recorte bastante preciso sobre os eventos político-midiáticos narrados. Durante o debate em Belo Horizonte, uma pessoa da platéia fez uma intervenção nos perguntando se Bucher também não operava criando consensos, o que a princípio poderia parecer um contra-senso em relação ao tipo de montagem que o realizador utiliza e que ali estava sendo elogiado por mim. Não sei se consenso é a melhor palavra, apesar de os consensos serem necessários, sempre. Não há criação sem uma força consensual presente e Bucher sabe disso.
Assim se faz o segundo movimento. Em que a escritura torna-se afirmativa. Há um plano-seqüência, por exemplo, em que passamos do velho sentado na rua para o céu em que cruza um avião e logo para as imagens do World Trade Center; em um mesmo movimento de câmera coloca elementos aparentemente dispersos em continuidade espaço-temporal - uma estranha continuidade, até porque a imagem está em reverse. Em outro momento, a fala de Bush e Schwartznegger passam a fazer parte de uma mesmo discurso em que o presidente conceitua, o personagem opera a fala do presidente e o realizador – em off - comenta; “se as crianças que morrem no Iraque fossem ocidentais elas não estariam morrendo”. Com a montagem Bucher refaz um caminho multifacetado e esburacado, é certo, em que todos esses personagens se conectam às crianças do Iraque, por exemplo.
White Balance se insere nessa tradição de uma montagem como forma que pensa, que não nos leva ao pensado, nem à síntese, mas ao pensamento como processo. Tanto na desestabilização dos clichês como nas proposições de conexão ali presentes a montagem é o que opera “uma medida do sem medida”, como escreveu Rancière. O conhecimento pela montagem é assim o que permite um acesso ao evento para além do visível. Um conhecimento que se dá pela associação entre visíveis e entre tempos. A montagem escreve assim uma intensificação nas imagens, uma forma de conhecimento, forma que pensa, como diria Godard. O pensamento se faz ação. Coloca uma multiplicidade em conexão relacionando seres e objetos, sons e palavras excessivas e não homogêneas.
Longe de se constituir como uma relação temática com o mundo, como se pensar fosse idêntico a “pensar sobre”, colocando de um lado o que pensa – de preferência algo vivo - de outro a coisa pensada; o pensamento se dá como ação conectiva entre o mundo e os seres que o pensam. Pensar se torna algo altamente arriscado o pensamento demanda uma saída de si, um descentramento e uma montagem. Ou seja, o pensamento não pode ser feito independente dos outros que pensam e dos objetos pensáveis, constituindo-se assim em uma ação que encontra seu lugar entre o individual e o coletivo, fazendo coabitar de maneira indistinguível as duas faces do pensamento, uma voltada e dobrada sobre si e outro para fora. Dito isso, é possível afirmar que não há pensamento sem diferença.

O artista e o evento

Minha atenção foi então para o procedimento de Bucher que opera retirando as imagens e os discursos de uma narrativa consensual, sem cair em outra, mas ao mesmo tempo, sem entregar as palavras e imagens ao caos.
Estas considerações se desdobram do modo como o filósofo francês Jacques Rancière percebe a potência das imagens no livro “Le destin des Images” (O destino das imagens). Podemos, um tanto esquematicamente, pensar em três formas da arte e do documentário se relacionar com eventos como o 11/set – ou a guerra em Israel ou a Chacina em Vigário Geral.
O primeiro é o mutismo. O artista emudece. O evento fala por ele mesmo e não há mais nada a dizer. Qualquer imagem ou ação torna-se uma forma indelicada, excessiva ou desrespeitadora do evento. Se o artista fala é para dizer da sua impossibilidade de falar. Assim, o cineasta que vai para Israel filmar o país não sai do apartamento filmando apenas os vizinhos na janela ou em NY filma durante 15 minutos a paisagem sem o WTC para falar de terrorismo.



A segunda atitude do artista diante de tais eventos é o consenso em que tudo se conecta com tudo. Um ponto central na narrativa faz com que todas as imagens e textos façam parte de uma mesma ordem de discurso. Nesse caso, as imagens têm uma função na lógica da obra e estão presas a ela, sem qualquer poder conectivo com outras imagens, outros discursos. No filme que perpassa todo o vídeo de Bucher, Efeito Colateral, por exemplo, existe um isolamento absoluto entre Schwarzenegger que perdeu mulher e filho em um atentado feito por colombianos, a presença americana na América Latina – a primeira música que ouvimos na Colômbia é um rap brasileiro - e o tráfico de drogas. Todos os elementos fazem parte de uma mesma narrativa centrada na vingança. A vingança é o ponto de convergência. Em nenhum momento é possível conectar tráfico de drogas e terrorismo, sem passar pela vingança do personagem.
A terceira postura nós podemos chamar de esquizo-verborragia. Entre as imagens não há nada em comum, nenhuma linha que as conecte umas às outras. O que vemos é uma profusão de sons e imagens que não formam um comum, mantendo o que é isolado em seu isolamento. Esta esquizofrenia é o avesso do consenso, as imagens não são atravessadas por nada que permita um desdobramento, choque ou continuidade entre as imagens. Entre a obra e um zapping televisivo há pouca diferença.
No primeiro caso não há o que dizer. Uma vez que é impossível dar conta do evento, o artista não fala nada. No segundo, ele já sabe o que é o evento e todas as imagens são funcionalizadas em torno de um ponto central, uma tese, uma história pessoal, etc. No terceiro se duplica do evento o excesso como se ele fosse absolutamente inapreensível. Nos três casos não estamos longe de uma dupla potência que existe nas imagens; a potência de dar a ver e de combinar.
Rancière formula então a noção de frase-imagem (Le destin des images) para pensar o que conecta “a grande parataxe”. Há uma potência na parataze que é valorixada por Rancière, uma vez que é o isolamento das imagens e palavras que as autorizam às múltiplas conexões – a potência da parataxe é manter a virtualidade dos objetos isolados – suas potências combinatórias. A frase-imagem dá a ver/conecta com um contexto da imagem e faz a imagem livre para se conectar; “uma linha estendida sobre o caos” (Deleuze, Guattari).

Parece-me então que o trabalho de Bucher e a sua montagem não se constitui como oposição de dois elementos, onde um deles se sobressairá, nem como fusão dialética em que um terceiro elemento, uma síntese será feita. Não, o sentido da montagem aqui é de criar um comum, uma linha entre sons, textos e imagens que tenha uma dupla função. 1 - A manutenção da potência parataxica de cada elemento, ou seja a manutenção do isolamento e a possibilidade de esses elementos manterem a abertura para novas e outras conexões, mantendo o evento vivo como o que deve ser pensado. 2 - A ligação que retira cada elemento de seu isolamento e o coloca em relação criando um comum, por vezes frágil ou fugidio, mas que produz passagens entre elementos.
A manutenção da potência paratáxica destes elementos encontra-se justamente na garantia de que estas passagens não são necessárias, mas fruto de uma escritura. A frase-imagem não pode ser então a passagem ideal, a conexão necessária. Se necessário fosse seriam as próprias imagens que se perderia em favor da sintaxe. Podemos assim dizer que a fragilidade da montagem está na manutenção de um triplo destino das imagens: se referir ao real, guardar sua potência de compor uma sintaxe e sua abertura para a combinação e o pensamento.

Documentário e Artes Plásticas
O encontro Imagem e pensamento concentrou essa edição nas aproximações entre documentário e artes plásticas e, sobre o tema, fechei minha participação com três breves comentários:
Primeiramente parece-me que a contaminação entre essas práticas é menos estética do que institucional. Quando dizemos que há uma aproximação para além do campo do institucional, corremos o risco de dizer que sabemos o que elas efetivamente são. Ou seja, eu não sei exatamente o que é um documentário ou um vídeo ligados às artes plásticas, só sei que eles existem.
Em segundo lugar, costumo brincar que, institucionalmente, os documentaristas têm todo interesse em migrarem para as artes plásticas, não por questões estéticas, mas porque no documentário a economia é de subsistência ou comercial e nas artes plásticas especulativa. Em relação a este ponto, André Brasil, que estava na platéia, fez um comentário que me parece pertinente: a especulação demanda vínculos com o real, alguma ancoragem e, frequentemente, é o documentário que supri essa demanda. Felizmente, o documentário como estética não é garantia de nada e muitas vezes essas tentativas não passa de um efeito de real, como o que Ilana Feldman e eu comentamos no artigo sobre o programa Retrato Celular, publicado na Revista Cinética.
Finalmente, podemos dizer que o cinema e as artes se aproximam quando atuam fazendo existir e inventando formas de vida que existem com o outro – campo privilegiado do documentário – e que são formas de vida necessariamente estéticas - campo privilegiado das artes plásticas. Com a estética e com o outro, trata-se formas de invenção de mundo; políticas. Nesse sentido o cinema e as artes plásticas se tornam indiscerníveis.