O Julio Ludemir é antes de tudo um amigo que conhece muito o Rio de Janeiro. Já escreveu sobre a Rocinha e sobre o Comando Vermelho, livros marcantes em torno das disputas que existem na cidade.
Como tenho andando muito intrigado sobre a atuação do Estado nas favelas, sobretudo em relação à aceitação e a tranqüilidade com que os morros forma “pacificados”, como gosta de dizer a grande mídia. Falei com o Julio e coloquei para ele 3 perguntas que sobre a UPPs.
Porque há tão pouco confronto em relação às UPPs?
Julio Ludemir - Já fui um observador mais atento da cena carioca, indo fisicamente a todos os lugares onde se travavam os grandes enfrentamentos entre os poderes paralelos e oficiais. Não faço mais isso porque sou mais um artista do que um sociólogo ou mesmo um jornalista. Mesmo à distância, tenho a sensação narcísica de que está se confirmando a tese na qual sempre acreditei: o poder militar do tráfico é uma balela difundida pelo principal interessado em sua permanência, que é a polícia. A mercadoria ilícita mais comercializada no Rio de Janeiro, mesmo no auge da cocaína, é a mercadoria política, que as três polícias se digladiam, numa guerra muito vezes mais sangrenta do que os combates travados pelas facções pelos pontos de venda de droga. Não há uma favela carioca cujo tráfico se imponha à vontade da polícia, paga regiamente com propinas semanais pelos chamados donos.
O Rio de Janeiro não é uma Colômbia ou mesmo Bolívia, países nos quais há imensas áreas dominadas pelo poder paralelo no meio da inóspita floresta amazônica ou mesmo da cordilheira dos Andes. Aqui no Rio de Janeiro, o tráfico se enquistou em um lugar tão próximo e acessível quanto o Cantagalo, o Pavão/Pavãozinho, o Santa Marta e Chapéu Mangueira, todos hoje dominados sem resistência pela polícia militar. Esses morros não têm mais do que três saídas, fora a mata atlântica. Não têm como oferecer resistência além de uma semana ou duas.
A escalada das milícias, que lambeu as favelas e conjuntos residenciais principalmente da zona oeste, já havia mostrado isso.
Que cidade é essa que as UPPs estão criando?
Julio Ludemir - Fiquei chocado com as manchetes dos jornais cariocas, que estão vendendo para a opinião pública, com as mesmas letras garrafais que anunciavam o holocausto do poder paralelo, a pacificação da cidade maravilhosa. Na verdade, as UPPs só foram instaladas nas favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, devolvendo à arrogante classe média carioca o sonho de que vive numa espécie de principado de Mônaco, ilhado de todos os problemas socioeconômicos inerentes a uma cidade perversa como a nossa.
Em sua tacanhice, essa elite formulou inúmeras estratégias para se livrar dos pretos e paraíbas de que precisa para lavar suas privadas e cuidar de suas crianças mimadas, além de fazer sua segurança. Depois da política de criação dos parques proletários do estado novo, de que a cruzada de São Sebastião é o único símbolo, a Zona Sul carioca sonhou com a remoção das favelas até a chegada de Brizola ao governo do estado, cuja gestão foi tão contestada midiaticamente quanto a de Lula e o PT.
Embora nem todas as favelas removidas tenham dado lugar a conjuntos habitacionais de classe média, parece-me óbvio que o sonho dourado da RJZ e congêneres é promover uma expulsão branca das comunidades que conseguiram resistir à ameaça da polícia, mas que com certeza não deixará de ser seduzida pelo dinheiro da inevitável especulação imobiliária que já vinha acontecendo nas favelas da Zona Sul, que só fizeram crescer com a chegada das UPPs. Para quem não sabe, um empresário europeu já está comprando inúmeras casas do Vidigal, para construir um complexo turístico com aquela paradisíaca vista.
Os gringos que fizeram da Rocinha um dos roteiros turísticos mais visitados do país também estão comprando casas nas favelas. A Tavares Bastos ocupada, há quase uma década pelo BOPE, já tem uma noite em torno do agradável pub do Bob, um ex-correspondente da BBC. Há uma feijoada no Chapéu Mangueira que também está atraindo a classe média. Por fim, vale lembrar o encantamento do tripé gringos, classe média e mídia para os reveillons organizados no pacificado complexo Pavão/Pavãozinho/Cantagallo.
Caso as UPPs não sejam apenas uma obra eleitoreira e se consolidem nos próximos governos, acontecerá com essas favelas o mesmo fenômeno que já ocorreu na Lapa e em Botafogo. Onde está a malandragem da Lapa? eles sumiram, sem nenhuma intervenção policial, sem nenhuma batalha sangrenta, desde que a Lapa foi ocupada por aquele complexo de bares, restaurantes e outros espaços destinados à classe média carioca. Cadê os portugueses que ocupavam o casario em torno do Estação Botafogo? Também sumiram com a mesma especulação imobiliária já em curso nas favelas da zona sul carioca.
Esse tipo de ação é uma novidade?
Julio Ludemir - As UPPs são uma reedição das ocupações promovidas na década de 1990, pelo governo de Marcello Alencar. Acompanhei grande parte do processo do Acari por conta da amizade que fiz com o antropólogo Marcos Alvito, autor do clássico “As cores de Acari”. Como se pode ver no livro de Alvito, o tráfico foi expulso quase sem resistência do Acari, espalhando-se pelas favelas das redondezas. A ocupação agradou não apenas a classe média, como a própria população. Só que essa ocupação não se sustentou e cinco anos depois o Acari voltou a ser não apenas a capital do terceiro comando puro, como o epicentro de uma guerra entre o terceiro comando puro e a Amigos dos Amigos.
Tanto o oba-oba quanto as críticas feitas às UPPs parecem um remake das ocupações que se seguiram à chamada O Rio, cujo símbolo maior foi a estúpida subida de um tanque de guerra pelas estreitas ladeiras do Morro do Adeus, em Bonsucesso. Já naquela época se dizia que não existia vontade política, dinheiro e mão-de-obra para sustentar aquelas operações por tempo indefinido. Passadas as eleições, primeiro a Polícia Civil compartilhou a ocupação com a polícia militar, para depois deixar aquelas favelas sob o controle da mesma PM que hoje comanda as Upps. Vi com meus próprios olhos a gradual retomada de áreas da favela pelo tráfico durante os anos em que ia todos os fins de semana jogar futebol na quadra de areia da favela.
Há, porém, grandes diferenças em relação a essas ocupações, que nos permitem acreditar que elas pelo menos podem ter uma vida longa. Uma delas é o incremento de ações sociais nessas favelas, coalhadas de ONGs cujas ações são cada vez mais eficientes. Também não podemos deixar de levar em consideração que vivemos um outro momento socioeconômico. Por fim, poderíamos falar que a copa de 2014 e as olimpíadas de 2016 exigem uma nova cidade, mas isso não me traz maiores ilusões, pois o Rio de Janeiro vem mostrando desde a eco 92 que os poderes oficiais e paralelos sabem negociar muito durante os grandes eventos internacionais.
2 comentários:
Olá,
Gostaríamos de convidá-lo a visitar o site www.upp.rj.gov.br para conhecer melhor as ações das Unidades de Polícia Pacificadora. Na análise que você postou, há algumas informações equivocadas. O Governo do Rio de Janeiro se coloca à disposição para esclarecer qualquer dúvida sobre as UPPs ou qualquer outra política de governo.
Abs,
Equipe de Comunicação Digital.
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