30 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 34

Latin wave
Lilja também já tinha testado positivo. Pegou a bolsa, o celular e esperou os outros 9 amigos chegarem na porta do apartamento para irem ao supermercado. Desceram os três lances de escada do prédio onde há três semanas viviam e encontraram a rua cheia. Grupos andavam como em uma entrada de um show. Ao chegarem no supermercado socializaram com as pessoas que se aglomeravam na porta enquanto Lilja e Bjorn faziam as compras. “Estou já cansada, está tudo muito lento, tem sempre alguém falando, a gente precisava de um lugar um pouco maior” disse Lilja enquanto pegava 5 vidros do mais barato picles islandês.
Lars, que está no mesmo apartamento, foi umas das primeiras pessoas a testar positivo. O vírus se alojava principalmente no fígado, produzindo efeitos parecidos com uma ressaca fortíssima. Lars vivia com a esposa e um filho e depois de dois dias de um mal-estar profundo, como se tivesse bebido uma garrafa de vodka, procurou o hospital e só depois de 6 dias, e de ter contaminado todo o hospital, foi diagnosticada a origem viral da “ressaca”. A inquietação dos cientistas foi maior quando se percebeu que no momento que o médico, dois enfermeiros e a esposa de Lars estavam no quarto, seus sintomas diminuíam.
Lilja passou os três carrinhos do supermercado e voltaram para o apartamento de dois quartos em que os nove amigos se protegiam do Sarqs 43. O nome do vírus fazia uma bem-humorada menção ao teor alcoólico da vodka que Lars acreditou ter sido responsável pelos primeiros sintomas.
Desde que o novo Sarqs 43 começou a afetar Reykjavik, as recomedações dos cientístas são claras. Jamais ficar com menos de 10 pessoas em um raio de 7 metros. Pouco se sabia ainda o que acontecia, além de que o novo virus se aloja no corpo humano, mas também se divide entre humanos. Ao circular entre contaminados, o vírus se dissolvia. Se um contaminado se isolasse, se ficasse fora da aglomeração, os sintomas voltavam intensamente e deixavam de ser uma pequena euforia e relaxamento.
Doze casos na Espanha, três em Nova York e centenas em todo norte na Europa. Desde que a infecção viral foi identificada na Islândia, há quatro semanas, o Sarqs já cruzou o oceano e começa a causar pânico nos países que ainda estão tendo que fazer isolamento social por conta do Covid 19. Como conciliar o isolamento com a hipersocialidade que o Sarqs 43 exige?
Em Oslo e Copenhagen, devido ao alto índice de contaminação, os cinemas estão operando 24 horas, os jogos da terceira divisão do campeonato de futebol estão lotados, as casas noturnas e bares abriram espaços de balada-office e todos os encontros a dois como psicanalise, confissão e sexo estão tendo que encontrar alternativas.
“O mundo não suporta mais tantas restrições, e agora isso”, disse o prefeito de Nova York sem poder sair de seu apartamento lotado. No Brasil, uma empresa já começou a cadastrar moradores de rua para viverem com famílias em Higienópolis, Jardim Pernambuco e Pampulha. Ao mesmo tempo que o mercado imobiliário informa que os preços dos apartamentos em Copacabana já começaram a subir.
“Nada será como antes”, diz a pensadora sueca Ingrid Swedenborg. Os suecos pouco se tocavam, mantinham sempre distância uns dos outros, tinha orgulho de suas casas confortáveis afastadas dos grandes centros e em contato com a natureza. Agora estamos vivendo próximos uns dos outros. Isso muda nossa percepção, nossa relação com o olfato, como tato.” Na mídia local, o Sarqs tem também sido chamado de Latin wave, por conta da diferente relação entre os corpos que o virus vem produzindo.
No espetáculo a mudança não é menor. Para alívio de muitos os stand-ups desapareceram. Na música, as grandes formações predominam. Lilja mesmo, suspendeu seu ensaio para um solo de dança que vinha criando e está se dedicando mais intensamente à capoeira.
Cansada, voltou para casa no final das compras, riu muito no caminho com os amigos e exausta deitou de conchinha com mais 4 em sua cama King, infelizmente em falta nos estoques das principais lojas.
-- Diário do entre-mundos 34 --

29 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 33

E daí? Pergunta Bolsonalro quando questionado sobre as quase 500 mortes de ontem.
Dai que para entender do que estamos falando você teria que ter duas sensibilidades.
A primeira de que a vida importa. Mas já sabemos há muitos anos que o que importa é o gozo com a morte.
A segunda é mais complexa. Bolsonaro é um negacionista. Transforma a história em um problema de opinião. Tudo pode ser relativizado, tudo depende de um ponto de vista.
Em 2020, o negacionista olha para a ditadura e se autoriza a dizer e a criar o que quiser. Para que isso seja possível, para que o cinismo se efetive, é preciso olhar a ditadura como um bloco total sem vidas.
Quando nos aproximamos do que se passava com cada família que perdia parentes, como cada pessoa que tinha que deixar o país, com cada perseguição, com cada sessão de cinema proibida, com o medo cotidiano e com cada torturado, não há história que possa se livrar das pessoas. Não há história que se torne apenas um nome a ser defendido em um carro de som em Brasília.
O negacionista só pode existir se nega que o grande evento, o grande marco histórico, é formado por uma infinidade de vidas que não estão nos holofotes.
Ao perguntar "E daí?" Bolsonaro mata uma segunda vez os que sofrem. Depois de mortos pelo Covid e pela incompetência fascista desse governo, são mortos porque devem ser eliminados da história. As formas de vida, de moradia, de saúde, as desigualdades, as formas de trabalho e alimentação, o transporte, tudo isso eliminado para que se possa retirar da história tudo que constitui cada uma das vidas perdidas.
A segunda sensibilidade é simples na verdade. As pessoas existem.
Um mundo sem vida e sem pessoas, e daí?
-- Diário do entre-mundos 33 --

28 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 32

F*da-se a vida. Foi essa frase que Gabriela Pugliese fez circular em vídeo para os seus milhões de seguidores. A frase é emblemática. Gabriela capta um ar dos tempos. Enquanto somos avisados que precisamos nos cuidar, que não devemos ter contato social, Gabriela junta os amigos, faz uma festa, bebe e, em meio a alegria de viver diz, f*da-se a vida. “Fui irresponsável e imatura” disse ela se desculpando. É verdade, foi. Mas, não é isso também que temos ouvido de todos os lados? Bolsonaro, Teich, Trump, saxofonistas de shopping, etc, talvez com menos clareza que Pugliese, mas com força de influencer bem maior.
Pugliese tem uma profissão singular. Ser influencer é viver e consumir para que seus seguidores possam ter um parâmetro de como viver-consumir. Pugliese faz de sua vida o seu trabalho. Viver é estar pronta e disponível para os olhos dos outros. Viver e consumir para entregar ao público normas, regras, produtos.
Subitamente, Gabriela derrapa feio. Erra. Mas como sua vida é para fora, para as redes, ela não tem tempo de avaliar o que fez e quando se dá conta, aquela estripulia adolescente já não lhe pertence. A velocidade entre viver e consumir agora se volta contra Pugliese. Agora, quando ouvimos falar que uma vacina para o Corona pode demorar um ano e meio para ficar pronta, isso nos causa estranhamento. Mas, nesse mundo em que tudo é tão rápido, como assim, um ano? Pugliese não vive outra temporalidade fora da ação-postação.
Bergson, o filosofo francês, dizia que o cérebro é, antes de tudo, um produtor de intervalo entre uma acão recebida e uma reação. Nesse intervalo ele associa memórias, afetos, pensamentos... Na velocidade do F*da -se a vida, esse intervalo se foi. O erro de Pugliese é um problema de velocidade também.
Mas, a beleza trágica da frase de Pugliese é que ao dize-la, sua vida-consumo despenca. Dezenas de patrocinadores-parceiros desfazem seus contratos. Talvez nem tão parceiros assim. Ao desfazerem os contratos, as empresas emitem notas que são reproduzidas em grandes jornais – o Estado de São Paulo, por exemplo, reproduziu mais de dez notas na íntegra – e, mais uma vez, ganham grande publicidade com a vida de Pugliese.
A moça consegue então dar à frase uma dimensão performativa. Assim como um padre transforma em marido e mulher o casal que declara casado, Pugliese detona a vida quando fala a frase fatídica no meio da festa.
Mas que vida é essa que é detonada? Não seria a vida o contrário? Não seria a vida aquilo que aparece quando se perde o controle, quando se erra, quando não se dá conta de performar como o público espera? Não seria a vida aquilo que nos demanda sem as garantias de likes, compartilhamentos e objetos?
Assim, na mesma frase que destrói uma certa vida de Pugliese, uma outra aparece. Depois do vídeo, é a própria vida que lhe cai no colo. Agora os parceiros sumiram, as celebridades fazem notas destrutivas. “Gabriela, não estamos juntos”, avisam. É com esse excesso de vida que a moça foi dormir.
Junte-se ao Brasil Gabriela, sem “parceiros” endinheirados, só temos a vida mesmo para encontrar todos os dias.
--Diário do entre-mundos 32 --

26 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 31

No belo “A noite da espera”, de Milton Haton, há uma frustrada tentativa de uma sessão de cinema. Estávamos em 72, durante a ditadura, e o filme exibido seria “A morte de um burocrata”, do Alea. Antes de começar a sessão os espectadores são contados: 29. Há algo errado, percebe o organizador da sessão secreta, o dono da livraria. Apenas 28 pessoas tinham a senha. Havia um intruso, talvez um espião. A sessão é suspensa.
Se a sessão tivesse acontecido, como tantas outras que se esquivavam da censura, imagino o silêncio, a atenção ao filme, a importância cerimonial daquele encontro.
Gosto tanto dos filmes como do cinema.
Ir no cinema é deixar de lado o olfato, o tato, a mobilidade. Hoje, fazer um esforço para não escutar a pipoca do vizinho e desligar o celular de verdade.
Aprecio filmes longos, filmes que me colocam em larga suspensão do tempo. Quando saio da sala o dia caiu, choveu e parou de chover e não vimos nada. Mas essa experiência parece, bem antes da pandemia, já fora de seu tempo, fora da forma como as salas se organizaram, com baldes de pipoca e cadeiras com apoio para copos.
As salas de cinema, mesmo as poucas de rua, já tinham deixado uma certa experiência do cinema um pouco de lado. A ideia de que seremos muitos em silêncio e no escuro diante de um filme já estava bastante desfigurada por luzes com sinais nas paredes, fitas de led no chão e luzes acesas na primeira palavra dos créditos.
Com frequência tive mais prazer em alguma sala de cinema improvisada em uma escola. Ali, onde nada era adequado para a exibição de um filme se faz um enorme esforço para que isso aconteça. Por vezes os defeitos são mais interessantes que as qualidades. Nas escolas a dimensão coletiva e efusiva domina. Estamos do longe do espectador ilhado em seu pequeno consumo privado.
Na bagunça de uma sessão com crianças ou no extremo silêncio de uma cinemateca há o belo ponto em comum da sala de cinema: a experiência coletiva.
Ao enfraquecer a experiência, é um lugar que nos é furtado, proibido. É esse lugar do espectador de cinema que se dissolve. Em todos os lugares as telas gigantes ocupam a cidade no mesmo movimento em que o lugar do espectador de cinema se esfacela.
Agora, há mais de 40 dias, as salas estão fechadas e talvez muitos nem sintam tanta falta assim. De alguma maneira os cinemas vinham nos preparando para esse momento: “vou dar uma enfraquecida nessa experiência aqui pra quando vier uma pandemia vocês nem sentirem tanta falta assim”.
Mas, não seria isso que esse momento de isolamento está nos mostrando? Que certas experiências importam mesmo. Que certas construções sociais e coletivas são insubstituíveis. Que o empobrecimento da experiência produz um mundo pior. Quando essas experiências faltam só sobram as luzes acesas e a claridade das telas que nunca se apagam. Somos condenados a um só lugar. Não é isso que a pandemia produz?
Delirar uma pós-pandemia em que o silêncio é silêncio, que o escuro possa existir e que estejamos todos juntos em uma experiência coletiva, uma algazarra, talvez. Mas, sobretudo, um mundo em que as possibilidades de uma experiência sensível sejam cuidadas.

--Diário do entre-mundos 31 --

Diário do entre-mundos 30

Se você estava cansado da obsolescência programada de suas impressoras, celulares, computadores, etc, chegamos na fase da obsolescência não-programada.
Até o final do ano me mudo para Botafogo. Bairro com cinemas, livrarias, muitos bares, enfim, tudo que perdeu o sentido de ser. Botafogo se tornou vintage, uma espécie de Ouro Preto da era pré-Covid.
No supermercado, ocupado em quase sua totalidade por jovens entregadores que nunca pensaram em comprar salmão defumado, é toda uma forma de funcionamento que se torna obsoleta. A arquitetura dos supermercados é feita de maneira que, antes de achar o que você procura, você possa cruzar com 10 supérfluos. Pois, esse supermercado está obsoleto. O negócio é facilitar a vida dos entregadores e que eles possam achar o que precisam e deixar o supermercado o mais rápido possível para novos mascarados entrarem.
As empresas se adaptarão rápido às novas camadas de opressão.
No mundo em que as lives substituíram os shows, que a sala de aula parece uma antiga memória dos restos do mundo disciplinar, talvez sejamos nós mesmos que tenhamos nos tornado obsoletos.
Que isso aconteceria, era uma certeza, mas veio rápido. Talvez as angústias e ansiedades que atravessam esses tempos sejam também por percebermos que as arquiteturas e organizações subjetivas que construímos até aqui subitamente se tornaram obsoletas.
Não é um mundo sem saída, mas o esforço para não sermos apenas um resto a ser cuidado pelo patrimônio histórico e cultural não será pequeno.

--Diário do entre-mundos 30 --

25 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 29

A fala do presidente com os ministros é desses momentos tristes e inesquecíveis de um país.
Todos em pé durante longos minutos, lutando contra o sono e cansaço, obrigados a sair de casa para compor uma cena em apoio ao presidente e se arriscarem ao contagio. Todos ali sem direito à fala, sem direito a se expressarem, torturados por um discurso egoico, paranoico, auto-
incriminante e profundamente constrangedor.
Antes de ouvirmos qualquer coisa, fica explicita a lógica do torturador: é preciso humilhar para mostrar poder. É essa a lógica de Bolsonaro. “Se vocês estão achando que eu não mando, mando sim: olha aqui, trouxe todos eles para serem humilhados na frente de vocês”.
O ministro da saúde, depois de receber a notícia de mais de 400 mortes por dia trata o fato como se fosse uma infiltração: “temos que ver isso ai!. Vamos ver se vai crescer”. Paulo Guedes, se é que era ele, já botou outra fantasia e, no governo em que a repetição de ideias falidas não faz mais sentido, ele já anuncia que não veste o mesmo uniforme que a tropa. Araújo, ao lado do torturador deve ter explicado que a solução é levar os comunistas até beira do planeta Terra e empurra-los de lá.
A cena era também uma forma de torturar o país. Durante a pandemia, Bolsonaro para tudo para fazer da sua pequeneza, da sua mediocridade, o espetáculo maior. A cena de ontem mostrava que o Planalto, com piscina fria, foi transformado em um bunker em que apenas os torturadores e delirantes terão espaço.
O delírio em si não é problemático. Já o torturador precisa ser impedido muito rapidamente.
-- Diário do entre-mundos 29 --

23 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 27

Essa semana uma querida amiga na França me escreve contando que a mãe passou três semanas hospitalizada com Covid 19. Momentos duríssimos. “Pela primeira vez fui atravessada pela possibilidade de meus pais morrerem”. Recebo essa mensagem no dia em que havia decidido que deveria escrever sobre saudades na quarentena. Creio que esse momento produz um estranho esgarçamento do tempo. A incerteza do futuro, a angústia dessa incerteza, encontra reverberações em passados mais distantes, em futuros que ainda não tínhamos imaginado. Assim, nas últimas semanas lembro de momentos de meu pai, morto há mais de duas décadas, como raramente faço. Como se essas ondas para o passado trouxessem essas memórias, as saudades. Momentos de instabilidade subjetiva parecem produzir essas buscas por linhas organizadoras, por afetos significantes e intensos, por vezes envoltos em nuvens de esquecimento e distância. Talvez estejamos também experimentando o que é ser idoso, estar em casa e ter nas memórias todo um campo de exploração. “Na idade em que estou não é hora de começar nada muito novo”. Essa dura formulação joga a vida para o vivido.
Esses fragmentos, não sei se são sobre saudade, mas sobre novas linhas estendidas no tempo que esse momento entre-mundos nos força, ou convida, a criar. Talvez seja com elas as possibilidades de um futuro. 


-- Diário do entre-mundos 27 –
Ps. A mãe da minha amiga se recupera em casa.

22 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 26

Sobre Bolsonaro e seus apoiadores, tudo parece ter sido dito, ao mesmo tempo que as palavras parecem irrelevantes.
Algumas ideias aqui aparecem em diálogo com Torturra e Safatle.
Tornou-se corrente falarmos de dois traços fortes de se governo 1) A impossibilidade de uma relação racional com os lideres ou apoiadores 2) Trata-se de um governo que se sustenta na morte do outro, que se dá o direito de matar, uma necropolitica.
Sobre as dois traços precisamos considerar que é próprio ao capitalismo uma irracionalidade. Nenhum sistema sustentaria tanta destruição e desigualdade mortífera se fosse "racional". Assim, dizer: Ah, esses bolsonaristas são irracionais, é uma bobagem.
A racionalidade deles não tem os mesmos parâmetros que a nossa, ou a irracionalidade deles tem outras pulsões.
Já a necropolítica "tradicional", em seus projetos escravocratas e coloniais, tinha um viés económico e político em que a morte - do outro- fazia-se fundamental para garantir os ganhos e conquistas.
O que vemos com o bolsonarismo hoje é diferente. A morte é o fim em si. Nas recentes manifestações contra a quarentena - ou pró-Covid - a morte do outro é também suicidaria.
Os apoiadores de Bolsonaro estão surfando em uma linha de morte suicida, uma linha que se expressa em possibilidade de gozo com todas as mortes, inclusive a própria.
Vivemos um governo que atua como serial-killer que invade uma escola atirando em todos e pronto a se matar no final.
Qual a possibilidade de política com um grupo que surfar na morte em tempos de covid?
Já vimos que os argumentos pela vida ou económicos são irrelevantes.
Aquele que tem tendência suicida poderia ter consciência de tal tendência e pedir ajuda. Entretanto, esse pedido se torna impossível dado o efeito de massa e a formação coletiva em torno do seria-killer. Se olhar no espelho não é uma possibilidade.
Seria possível então uma ideia de cuidado em relação àquele de deseja se matar?
Ou, como desarmar essa pulsão suicida que deseja tudo levar à morte?
Sem racionalidade pela vida ou económica, apenas a própria vida como força, prazer, invenção e alegria pode desarmar a tristeza do serial-killer.
Talvez uma utopia, ou a morte.
-- Diário do entre-mundos 26 --

21 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 25

Deixou o lugar da reunião rapidamente e pegou um taxi. Do alto da colina desceu rapidamente até o centro. O trânsito fluía bem. Quando estava a dois quarteirões do lugar onde deveria chegar, o motorista não parou e começou a se distanciar muito. Para voltar, um enorme engarrafamento. Não havia retorno e eles se distanciavam cada vez mais. Ele foi ficando exasperado. Ia para um lugar sem volta. No limite da agressividade, pediu para descer do taxi e foi até um casebre na beira da estrada. A casa estava vazia e só um rádio com música evangélica se ouvia ao longe. A porta rangeu e ele entrou. Não pensava mais em voltar e uma exaustão o tomou, mas também uma alegria em estar naquele lugar sem ninguém e perdido. No casebre apenas um colchão novo no chão, ainda com plástico, uma pia e um vaso sanitário. Deixou a pasta em cima do colchão e foi lavar o rosto quando recebeu com naturalidade a chegada de uma moça com um leve vestido colorido. Ela se aproximou do vaso, levantou a tampa e logo se sentiu um cheio horrível. Ela tirou o vestido e se banhou na imundice. Ecológico, ainda disse. A música evangélica ficou mais alta enquanto carros buzinavam ao longe. Uma carreata passava no meio poluição que ocupava a estrada por onde viera. Tudo ia ficando muito sujo e o vaso já não tinha nenhuma exclusividade. O ar pesado do casebre o fez abandonar a moça que sorria. Ficou sozinho no meio da poluição e dos ruídos. Os carros estavam lá mas não tinham mais pessoas, eram só carros, autônomos, ocupando os espaços e fazendo barulho. Caminhou pela estrada mas não sabia que lado o levaria a um lugar mais respirável, e se esse lugar existia.

--Diário do entre-mundos 25 --

Diário do entre-mundos 24

Assim, por todos os lados escutamos: tenho tempo, mas não estou dando conta.
Quando preciso estudar, frequentar uma aula, fazer uma reunião, faço participar dessa ação várias tensões e afetos mínimos inerentes a estar na cidade, a encontrar o porteiro do prédio, a viver as opressões do transporte, etc.
Quando estamos fazendo muitas dessas coisas online, sem sair de casa, essa dispersão, por mínima que seja, desaparece. Passamos a trabalhar com se houvesse uma linha reta entre o eu que estuda e o estudo. Entre o eu que trabalha e o trabalho. Caem os atravessamentos não dominados do mundo.
O isolamento produz assim uma hipercentralidade do eu: um desastre para a saúde.
Abre-se ai, com essa promessa de linha reta entre o eu e o que devo fazer, uma grande porta para as angústias e ansiedades. Aquele trabalho difícil ou aquela preocupação médica, passaram a ter uma centralidade que as tornam insuportáveis.
Há uma relação entre dispersão e concentração nessa quarentena que afeta diretamente os processos subjetivos. Sim, o isolamento faz crer que seremos capazes de foco e agora nos damos conta que só somos capazes de foco quando a dispersão vem nos ajudar.
-- Diário do entre-mundos 24 --

Diário do entre-mundos 23 --

E depois de um mês de quarentena, vivemos mais um estranho processo no acontecimento. Uma mistura de naturalização do disparate: a cidade vazia, as pessoas com máscara, o excesso de casa, a impossibilidade dos encontros, a omnipresença digital, as dores e mortes, a terceirização de tudo pela elite.
Tudo que não parecia nosso mundo é o mundo com o qual temos que conviver. Ele não deixa de ser triste e estranho, mas vai se tornando nosso mundo.
Vamos espremidos entre a aceitação dessa condição e o espanto, o susto em estarmos vivendo uma rasteira nas bases e expectativas, no passado e no futuro. Vamos naturalizando o disparate.
Subitamente nos damos conta: não é uma ficção, tá rolando mesmo.
Esses sustos, em que somos surpreendidos em nossa adaptação, flagrados em nossa acomodação ao que era inimaginável, são importantíssimos.
É dessa linha que estranha nossa capacidade de aceitar que poderemos extrair forças para fazer disso tudo um corte, uma pausa, uma exigência ao pensamento, uma eleição das prioridades e urgências.
É desse susto com nossa própria capacidade para suportar que poderemos também lembrar de nossa energia para o que não é suportável, agora e depois que isso tudo acabar.
Fazer do acontecimento uma memória do inaceitável, talvez seja uma ética para esses tempos.
-- Diário do entre-mundos 23 --

Diário do entre-mundos 22

té pouquíssimos dias atrás eu não saia de máscara, eis que tenho uma urgência dentária e sou obrigado a circular nas ruas surpreendentemente cheias do Largo Machado.
Muita máscara na rua. Eu, com uma azul que cobria todo o rosto e tinha o inconveniente de embaçar meu óculos a cada respiração. De máscara as coisas saem de foco. Um certo calor também circundava meu rosto. Quase uma falta de ar. Mas não é esse o sintoma? Deus, botei a máscara e peguei o vírus.
Mas, eis que de máscara começo a perceber todas as pessoas que estão sem máscara, dentes simpáticos à mostra e visão desimpedida.
Até ontem eu era um deles, agora estou indignado: devem ser bolsonaristas! Não estão pensando na gravidade da situação, não pensam em ninguém, são terraplanistas ou cínicos do mercado,
O senhor deveria estar de máscara! Penso em dizer com ar preocupado ao motorista do uber e ao dono da banca.
Me revolta essa gente fazendo o que não posso mais fazer!
E aí, entendo o ódio dos conservadores que hoje não querem máscaras. Se até ontem eles nos odiavam por nossas liberdades de pensamento, sexual, artísticas, hoje podem ser livres, ter um vírus pra chamar de seu e respirar, por enquanto, sem embaçar o óculos.
-- Diário do entre-mundos 22 --

Diário do entre-mundos 21

Motivos fortes para indignação não nos faltam.
Nesse entre-mundos, diante dos gestos criminoso do executivo, altas doses de indignação são cada vez mais justificaveis.
Há na ndignação uma energia de revolta, de inquietação em relação ao estado das coisas. Controle, violências, descasos, mortes. Há na indignação uma vitalidade inconformista.
Entretanto, a indignação pode ser também uma forma de concentrar a energia em um determinado sujeito ou problema a ponto de eliminar a complexidade das questões.
A indignação se torna assim altamente apaziguadora, colocando em um eleito a totalidade da revolta, nos desconectando do que está próximo, do cotidiano e suas tensões.
Em tempo de coronavírus a indignação parece transitar entre a energia que às 20:30 vai para a janela e nos mantém com força diante do absurdo-Bolsonaro, mas também a energia que nos faz olhar esse absurdo e usá-la como forma de se esquivar de participar do mundo como ele está.
A indignação é ambígua. Pode ser: estar e não estar presente.
Como dizer: isso não sou eu sem abandonar o mundo?
-- diário do entre-mundos 21 --

Diário do entre-mundos 20

O governo Bolsonaro, com Guedes e seu neoliberalismo tosco, se organizou para não existir.
Trata-se de ser ministro da fazenda para entregar tudo aos patrões e poder deixar de existir.
Um ministro que tem o projeto de tornar-se obsoleto. Bolsonaro a mesma coisa. Um presidente sem projeto, além de eximir-se da política e ficar apenas no escândalo violento e mortífero. Por todos os lados, esse governo que desejava apenas estar no poder, mas não governar, estar no poder, mas se ausentar, descobre uma nova presença: eles mesmos. O Corona vírus aparece para jogar a necessidade de governo no colo desses caras. E agora? E agora que o lugar que estou me obriga a fazer alguma coisa? Bolsonaro faz sua aposta: meu único papel é não estar aqui, ou estar aqui e destruir esse lugar mesmo em que estou, até o ponto de ser descartado.
Sua aposta é de radicalizar sua inaptidão e inconveniência para o lugar que ocupa para tornar a presidência algo tão sem sentido, tão descabida que, ela mesma, se torne irrelevante. O projeto ficou muito explicito no momento em que, sem saída, o governo precisa existir.
Se opor a Bolsonaro é, claro, bater panelas, mas é também fazer um caminho oposto ao dele e de seus tristes comparsas: se opor a eles é estar presente. Estar onde se está. Isso significa um enorme esforço, uma atenção ao entorno, aos próximos e a frustração porque com frequencia não damos conta de tanta presença. O momento nos coloca aqui, perto de nossas coisas, de nossas condições sociais, familiares, nossas responsabilidades com outros. É essa presença que a brutalidade de um Guedes não permite. Estar aqui é uma exigência exaustiva quando estamos no centro de um acontecimento e não temos a irresponsabilidade de estarmos em outro lugar ou em outro tempo.
Segura essa!
-- diário do entre-mundos 20 --

Diário do entre-mundos 19c

Do ponto de vista do vírus, tá tudo ótimo!
É sempre bom ouvir os dois lados. Lição aprendida com o jornalismo.
Se a cloroquina tem voz.
Se os terraplanistas tem lugar, que o Corona também possa falar!
“Tô achando sacanagem esse negócio de não poder circular na galera. Onde está meu direito de passar entre as pessoas? Onde está meu direito de ser o que eu sempre me preparei para ser: um vírus altamente humano, democrático, que se amarra em ser global, em estar em todas as vibes, em não fazer distinção de nacionalidade, sexo, classe. Eu quero é gente! E agora, esse negócio do pessoal não se encontrar, isso não me respeita! Isso não respeita minhas potências. Eu quero carnaval, jogo de futebol, avião, rua da alfândega, cinema, sexo grupal, metrô lotado! Ah o metrô lotado. Que saudade! Estamos em um momento injusto com a nossa espécie. Cheio de cientista querendo restringir nossa forma de conectar as pessoas, nossa forma de mostrar que elas estão juntas, trocando fluidos. Se você acredita em ciência, deveria me deixar circular geral e entender o que é ser global, geral, poliglota. É demais ter todo mundo falando de você! Como não conseguem nos destruir, não querem nem vir pra luta. Vocês tão é com medo. E é pra ter medo mesmo. Nós somos corona! Vírus Rei!”
- Obrigado Corona, vamos ouvir agora o outro lado.....


- Diário do entre-mundos 19c --

Diário do entre-mundos 19

Exaustão. Como estar exausto se estamos em casa, frequentemente com menos trabalho?
A exaustão não é um efeito da ocupação do tempo, do trabalho, apenas. A exaustão é perceber o desabamento e tentar segurar as pontas. E assim, mães, pais, adolescentes, trabalhadores, brigando para ter um pouco mais de força com o cotidiano alterado, com a casa suja três vezes por dia – Ufa tenho uma casa! – só isso já poderia resolver a angústia!, mas não. E a escola que não dá desconto e me obriga a ser professor de tudo!
Ter a cama para deitar e resolver a exaustão. Mas ela não é só física. E em cada canto alguém parece estar perdendo o chão. Haja braço. Já que abraço...
“eu tava beijando meu namorado na porta de casa e fui insultada: Olha o corona!”
O beijo virou insulto. A exaustão do presente que escorrega, do futuro que não se sabe.
Hoje temos que nos dar o direito à exaustão. E quando pararmos, que seja para descansar. Eis a coisa mais difícil da exaustão. Não há descanso possível. O exausto dorme pouco, vira noites, pensa, repete e gira em volta da exaustão. Se for possível o cansaço, já é um caminho. Se for a exaustão, que seja sem culpa.
Segura essa.
-- diário do entre-mundos 19 --

Diário do entre-mundos 19

Em uma fotografia, um objeto que está perto da câmera ocupa uma grande parte da imagem, enquanto os objetos distantes ocupam pouco espaço. Nem por isso achamos que um copo é maior que o carro que passa ao longe.
O cinema brincou muitas vezes com essa facilidade que temos em entender a dimensão das coisas no espaço. O telefone em primeiro plano que parecia de tamanho normal, quando o personagem se aproxima percebemos que é, na verdade, grande mesmo, por exemplo.
O que vivemos hoje é uma perda de referência das dimensões.
Não por acaso, estamos todos os dias sendo informados do número de mortos em cada lugar, como se esse número nos desse a régua verdadeira, aquela que podemos usar mesmo!
Uma régua que ainda encontra brechas inexplicáveis, mas que, sobretudo, traz como medida de realidade a morte. Talvez ela seja sempre a medida, mas organizamos o que chamamos de realidade com as contas no final do mês, o encontro com os amigos, os desafios do trabalho, as relações amorosas, etc. Todas essas medidas de realidade, todos esses territórios, perderam a estabilidade. O que estava longe parece ocupar todo o quadro, o que era pequeno parece enorme, o que estava perto se perde de vista.
O momento nos leva a perder a dimensão das coisas, do que nos acontece, e a ansiedade dessa ausência pode vir para o primeiríssimo plano.
Como nos damos conta da medida das coisas no cinema, quando a realidade é reestabelecida?
Quando aproximamos dois objetos que conhecemos, com no caso do telefone. Ao fazer isso retomamos um território. Talvez isso nos ajude no momento. Quando tudo está sem medida, talvez seja necessário buscar aquela linha certeira, as relações com as quais temos certeza da medida. Nos colocar em relação com dimensões com as quais não temos dúvida. Não por acaso tantas relações familiares distantes têm sido retomadas, e mesmo os ódios. A imbecilidade assassina do presidente é uma boa medida, por exemplo. Dela temos certeza.
Se nada disso der certo, façamos como no cinema, novamente, com um dos olhos fechados, olhamos a mão, depois o que está um pouco mais longe, o que está bem distante e depois o céu.
Se tirar de foco já é uma saúde.
-- Diário do entre-mundos 19 --

Diário do entre-mundos 18

Não é só a casa. É o bairro, a classe, os vizinhos, os sons, os rostos. Entramos em um modo “homogeneidade compulsória”.
A cada dia produzimos mais tensão com o vizinho que bate ou não panela, com a companheira que lava ou não o prato, com o filho que ....
Nessa repetição, não paramos de acessar notícias e texto sobre a crise. As notícias trazem mortes e imbecilidades assassinas. E assim vamos nos organizando em uma lógica condominial radical.
No isolamento vivemos a repetição do mesmo, que também tem o nome de morte, e do lado de fora a extrema ameaça.
Não é só o vírus ou essa imagem triste de pessoas mascaradas que produzem o medo, mas os modos como começamos a entender a rua como ameaça. O heterogêneo e o diferente como perigo.
Na homogeneidade compulsória, mesmo nas famílias que vivem o estresse da proximidade quarentenada, desenvolvendo ao limite o que Freud chamava de “narcisismo das pequenas diferenças”, o trabalho de cada um será grande para se esquivar da repetição que adoece e o lado de fora que ameaça.
Trata-se de um trabalho de cuidado consigo, de aberturas para diferenças possíveis nos espaços fechados que radicalizam a homogeneidade.
Por que tantos reclamam que não conseguem ler um livro? Pelo simples fato de saberem que são essas derivas - com a arte, com a ficção, com as histórias – que podem garantir uma saúde intrinsicamente política. São essas aberturas que podem romper a “homogeneidade compulsória”.
Ficar em casa e encontrar formas de abrir a porta.
Ps. sobre "a lógica do condomínio", ver Christian Dunker
-- Diário do entre-mundos 18 --

Diário do entre-mundos 17

Não, as coisas não foram adiadas. O que não vai rolar agora não vai rolar e pronto. Pelo menos, não da forma como se imaginava. Aquele filme, aquele texto, aquela terapia, investimento, curso, obra, relação, petição, esquece. A parada está ai e não tem continuidade como se nada estivesse acontecendo. A urgência é suportar que algo se quebrou, que não é uma simples espera. O que ocorre não é uma pausa, mas uma aceleração – ou, talvez uma mudança de ritmo. Não deixamos uma lentidão dos processos para entrar na velocidade, ou vice-versa, mas, cada processo terá seu novo ritmo que nos chega. Lidar com isso, com a interrupção inercial para a entrada em outras velocidades, não é pouco. Há urgências, claro. Tirar esse genocida do poder. Sair da tristeza por não termos líderes à altura do que nos acontece. Mas, e nós? Segura essa onda de estar à altura! De suportar que o que estava rolando parou e, quando voltar já não pode ser o mesmo. Aquele roteiro talvez se torne obsoleto. Vamos lá. O cinema já viu a cidade vazia, os sujeitos que vagam sem nada entender e que não conseguem mais agir. Para andar em ruínas é preciso mudar o ritmo e a altura do passo a cada pisada.
-- diário do entre-mundos 17 --

Diário do entre-mundos 15

Por que sonhamos tanto na quarentena?
1 – Quando nos encontramos no entre-mundo, sem muitas bases para pensar o que será ali na frente e, ao mesmo tempo, repensando os ritmos, prioridades e opções da vida pré-quarentena, os sonhos são intensamente convocados como forma de trabalho subjetivo.
Ou seja, quando os elementos racionais não são suficientes para desenhar uma passagem entre o que era – e que não necessariamente precisa continuar sendo – e o que será, o trabalho onírico vem nos socorrer.
2 – Quando a vida fica restrita a um pequeno espaço, com poucos encontros, poucos cheiros, poucos desvios, o sonho vem criar um contexto, um enquadre para o que nos acontece na vida online.
Como a memória depende de todo um entorno para se fazer, nossa vida quarentenada dá poucos elementos para lembrarmos das conversas e encontros online. Os sonhos vêm nos socorrer! Com eles o que poderia se dissolver no esquecimento reaparece já transformado, montado, afetado.
3 - Há uma rebeldia no sonho. Uma rebeldia do inconsciente no momento em que somos organizados por uma hipefuncionalidade: para não morrermos ou participarmos da morte de outros, precisamos nos isolar. Já entendemos isso. Já nos confinamos por livre vontade.
Novamente, os sonhos vêm nos socorrer trazendo uma rota de fuga, uma saída honrosa para essa racionalidade que nos afasta dos outros, dos prazeres da rua, dos encontros.
Sonhar é uma forma do corpo encontrar uma escapadela em relação ao servilismo da racionalidade.
Talvez sonhemos por muitos outros motivos, claro! Mas essas experiências das intensidades oníricas, frequentemente relatadas durante a quarentena, apontam para duas belezas dos sonhos.
Por um lado, elas nos garantem que a realidade não se perderá na ausência de um contexto, de um enquadre. De maneira estranha o sonho nos garante um chão.
Por outro, o sonho nos permite um trabalho do pensamento frente à impossibilidade de uma racionalidade harmoniosa e fundada nas relações de causa e efeito.
Por fim, uma resistência em relação ao excesso de chão. Uma rebeldia em relação à servidão.
Sonhemos.
-- Diário do entre-mundos 15 --

Diário do entre-mundos 14

Uma estranha memória se produz nesses tempos em que o trabalho, os afetos e os cuidados se fazem através de telas e apps com nome em inglês.
Um deles, inclusive, tem nome afeito ao universo da fotografia, mas se você quiser fazer um zoom, não é possível.
Não se trata de uma falsa proximidade, mas de uma proximidade que torna o corpo pouco necessário. Para muitos é um alívio: quando a sociabilidade, a presença física, os rituais profissionais ou eróticos são um estorvo, poder ficar em casa e mediar essas relações com a tela é algo muito bem-vindo.
Mas, como lidamos com a memória desses encontros?
A ausência do corpo, do cheiro e do tempo-espaço para o encontro retiram dele um enquadre. Imagine uma tela de Francis Bacon sem as linhas geométricas que circunscrevem o desfoque do rosto e as mudanças que os corpos sofrem. São aquelas linhas que garantem um chão para a transformação, para as passagens de um estado físico a outro. Essas linhas de Bacon acolhem o que acontece. Acolhem o acontecimento.
O desafio das terapias individuais pela internet, no meu entender, passa pela dificuldade de construirmos um quadro de acolhimento para a palavra. Esse quadro é feito com o espaço, com a presença física do terapeuta e com todo o entorno que acolhe a possibilidade do gesto analítico.
A memória do que nos acontece online, nos tantos skypes, hangouts (outra palavra sequestrada pela indústria) tem, justamente, seu enquadre esfacelado.
O entorno do encontro amoroso é o mesmo da reunião com o chefe. Enorme demanda para refazer um quadro, um contexto.
Sem o enquadre, sem o solo para o encontro, sem o chão para a transformação que pode se dar em uma conversa, somos convocados a inventar linhas, como as de Bacon, para sustentar os encontros.
Cada um sabe as linhas que inventa e sabe também dos prazeres em simplesmente esquecer.
Aqui voltamos aos sonhos. Temos ouvindo de muitos lados sobre a intensidade com que os sonhos estão presentes nesses tempos quarentenais. Sonha-se muito, sonha-se bizarrices, sonha-se.
Além do sonho ser essa produção inconsciente que trabalha intensamente quando estamos no impasse de um entre-mundos. O sonho é o trabalho do enquadre do que nos acontece.
Se os encontros online produzem poucas memórias, pelo menos da forma como estamos acostumados, parece ser pelos “restos do dia” que nos apropriamos dos acontecimentos. Obviamente essa apropriação não aparece como informação: “agora lembro disso ou daquilo”, mas nos sonhos aparecem intensidades, sensações, montagens que se esforçam em manter em movimento o que estamos vivendo. Não é esse o papel da memória?
Quando tudo vai para as telas, talvez possamos fazer como Bacon: inventar um chão estranho, permeável, com um mínimo de resistência para podermos deixar as transformações e encontros acontecerem.
-- Diário do entre-mundos 14 --

Diário do entre-mundos 13

“Não consigo ler um livro, não consigo ver um filme até o final e não tenho concentração para nada.”
É assim que com frequência temos vivido a possibilidade de tempo livre para ler um livro, ver um filme e se concentrar.
Talvez a ansiedade que impossibilita a concentração esteja diretamente ligada à incerteza e à velocidade.
Vivemos esse estranho paradoxo entre estarmos parados e tudo estar muito muito rápido – as mortes, o contágio, a instabilidade política. Temos a impressão – e a vivência - de que a cada momento algo novo pode acontecer e que o vírus pode chegar muito perto.
A dificuldade em desviar, imaginar, se entregar a uma ficção quando a realidade parece nos afetar com intensidade e velocidades que não dominamos, é enorme.
Como não estar aqui, como entregar o corpo a outra experiência quando tudo parece incerto e ameaçador?
Vivemos esse encontro entre o tipo de mídia que usamos hoje, com a velocidade do vírus e seus efeitos. Grudamos nos celulares, notícias, tabelas de casos pelo mundo, artigos, reflexões, etc. A cada segundo são muitas abas tentando dar conta das múltiplas variáveis que o momento traz.
Somos, mais do que nunca, exigidos como editores de uma enxurrada. Se esquivar do vírus e nos tornarmos editores de tudo que nos chega, não é uma tarefa que se faz com a tranquilidade exigida por um romance que descreve o bordado da gravata do protagonista.
À essa união entre incerteza e velocidade se junta a insegurança do que está por vir. 
Lidar com a ansiedade de quem espera a hora de tudo voltar ao normal já é algo bastante grande. Entretanto há algo ainda mais dispersivo: talvez o “normal” tenha se dissolvido. Talvez aquela vida que se interrompeu tenha se tornado obsoleta e indesejável. Se assim é, só há uma solução: precisaremos imaginar, ficcionalizar, inventar. Que voltem os livros, a poesia, os filmes. É com eles que desenhamos um mundo.
Enquanto ainda não inventamos um corpo para a urgência da imaginação que a concentração em livros e filmes permite, vamos dormir todas noites e nosso inconsciente vai se ocupando um pouco disso.
Felizmente os sonhos sabem lidar com incertezas e velocidades alucinadas.
-- Diário do entre-mundos 13 --

Diário do entre-mundos 12

Crianças em casa, escolas fechadas, ensino a distância, home-schooling, radical baixa de poder aquisitivo, etc. Que grande desafio esse momento traz para a educação.
Uma das marcas da educação do pós-guerra, e Paulo Freire foi muito importante nisso, é a impossibilidade de separarmos a educação das coisas do mundo. Ou seja, a educação não é uma coisa que está pronta, enquadrada e que se faz sem que o mundo do estudante seja considerado.
A entrada na universidade pública de uma massa de estudantes de baixa renda nos últimos anos, por exemplo, deixou claro para todos como essa presença muda tudo. Mas muda porque nossa sensibilidade, marcada por essa pedagogia que acolhe a alteridade, é permeável aos novos mundos que ali chegam. Ou, assim deveria ser.
Nesse entre-mundos de Covid, a educação que se quer sensível ao universo dos estudantes – e dos seus trabalhadores – não pode deixar de lado a complexa situação que estamos vivendo. De outra maneira, só a alienação e a violência.
Subitamente muitas escolas falam em home-scholling, começam a colocar em prática online uma série de atividades, conteúdos, palestras, exercícios. Isso em si não é um problema, desde que esteja claro para todas as partes que esse processo não substituirá a escola em si, onde o universo do estudante é parte da educação.
Como falar em home-schooling onde falta home? Ou, como falar em educação a distância – EaD - com estudantes que não possuem computador ou privacidade? Como exigir dos pais o acompanhamento dos trabalhos se muitos não têm onde deixar os filhos e não pararam de trabalhar?

O súbito ensino a distância impôs à muitos professores, em universidades inclusive, a migração imediata de suas aulas para um universo virtual. Essa passagem imposta é mais uma camada do tipo de exploração que a educação hiper-comercializada exige. Isso significa que a EaD é ruim? De forma alguma, significa que ela precisa ser respeitada como uma prática que requer trabalho, tempo e investimento pedagógico. Não se trata de um tapa-buraco para quarentenados.
No universo das escolas privadas, muitas se negam a negociar as mensalidades com os pais. Tratam a questão financeira como se absolutamente nada estivesse acontecendo. A alienação é radical. É compreensível que Paulo Freire tenha se tornado o paradigma do esquerdista: nesse caso, sua pedagogia levaria as escolas a terem que reconhecer que o mundo existe. Que talvez tenham que diminuir seus lucros, negociar alugueis, gastar menos em publicidade. Sair da alienação é considerar que a educação se faz com com pessoas, estejam elas em casa ou não.
No momento em que um mundo desaba, a educação pode olhar esse mundo e acolher o que se passa ou simplesmente subir os muros que a separam das ruas.
Enquanto as vidraças não quebram, se agarram aos restos.
-- Diário do entre-mundos 12 --

Diário do entre-mundos 11

Que o capitalismo tem desprezo pela vida não é novidade para quem anda por essas partes do mundo.
No Brasil vivemos uma dura e triste sobreposição a esse desprezo: um governo que não apenas se filia às práticas mais violentas desse capitalismo, como goza com a morte. Eis a dimensão de seu fascismo: a morte do outro é motivo de gozo. No momento em que a morte pauta o mundo é como se o país e cada indivíduo tivesse que dar conta de três linhas de morte somadas. Capitalismo/Fascismo-miliciano/Covid. Haja corpo! Haja forças.
Porque a vida é secundária em relação ao lucro e ao gozo com a morte, já estamos sendo avisados que o preço a pagar pela crise será alto: corte de salário de vulneráveis, nenhuma intervenção no sistema financeiro, aumento radical de controle e vigilância, discursos que não fazem mais diferença alguma entre encarceramento policial e cuidado com a pandemia.
Quando sairmos dessa fase crítica diferentes mundos estarão ainda mais radicalmente em disputa. As ações para recuperar o lucro perdido serão fortíssimas, como pensar no planeta, em energia limpa, em terras preservadas, em distribuição de renda se estaremos em fortíssima recessão?
Mas, não é justamente essa impressão que o mundo poderia ser outro que nos atravessa agora?
Não é a impressão de que a vida seguia rumos não necessários, que a urgência do cotidiano impunha, e que agora parecem desnaturalizados?
Se a pandemia já é o paradigma para mais desejo de morte por parte desse necrocapitalismo, não seria ela também o paradigma para outras formas de vida?
O que significa ter uma casa em que se possa ficar três meses? Não é isso que o momento nos exige?
Por que cada artista que trabalha com MEI não recebe uma renda mínima quando fora de temporada? Não é isso que é possível fazer agora?
Se a internet se torna a única forma de sociabilidade, como deixá-la nas mãos do mercado?
Nessa abundância enlouquecida que criamos o momento nos joga na cara a falência do sistema: há muita sobra, mas ninguém pode parar. Há muita sobra, mas uma enorme parcela da população não tem uma casa em que possa passar um ou dois meses e lavar as mãos com frequência.
Estamos no entre-mundos, e por toda parte sentimos uma reverberação: minha vida não será a mesma.
Pelas contas dos necropoderes, não há outro mundo possível e os pobres e o planeta vão pagar caro.
Pela evidência que está no corpo, a vida deve continuar e já sabemos que a proposta dos necropoderes é a morte.
Felizmente, nesse caso, a morte não é um destino.
-- Diário do entre-mundos 11 --

Diário do entre-mundos 10

Uma das belas invenções do cinema do pós-guerra foi a criação de mundos em que múltiplos tempos eram possíveis. Passado, presente e futuro acontecem de maneira simultânea, até o ponto em que não são mais distinguíveis: um determinado evento – um encontro amoroso, uma morte, uma guerra – acontece e não acontece, simultaneamente. Mais que temporalidades, são mundos que são compossíveis. Mundos que são reais e não reais ao mesmo tempo.
Que mundo teremos pós coronavirus? Claro que não sabemos ao certo, mas uma parte da angústia do momento é viver futuros compossíveis: um mundo que desaba e um outro mundo: com outras velocidades, outras relações de alteridade, outras formas de cuidado.
Isso significar dizer que o coronavirus tem um lado positivo? Não é assim que a questão deve ser colocada diante do acontecimento. Diante do que nos acontece somos atravessados pela angustiante compossibilidade de mundos e com eles temos que conviver: um mundo que se vai e outro que não chega.
No presente em que o futuro como continuidade é tensionado por um futuro como ruptura, o que colocamos em questão é o próprio passado. Temos a estranha impressão que estávamos sendo enganados – por nós mesmos - em nossas urgências e prioridades. Por que vivíamos assim até aqui? O que esse acontecimento nos trás é a impossibilidade de nos esquivarmos das durezas e exigências de um presente que desarruma passados e futuros.
Rejeitar a evidência de que estamos entre mundos pode ser um desastre para a saúde individual e coletiva.
Nesse filme teremos que ficar até o final, mesmo que não estejamos entendendo muita coisa.
-- Diário do entre-mundos 10 --

Diário do entre-mundos 9

Diante de um acontecimento como esse somos intensamente exigidos. Exigidos no corpo, na escuta, na atenção ao entorno e no pensamento. Ser exigido no pensamento é também ter uma saúde interrogada. No pensamento podemos nos satisfazermos com tudo que conhecemos, sabemos, experimentamos e tentar encaixar o que nos acomete ali dentro.
- Essa onda gigantesca que chega precisa de muita solidez para não nos derrubar.
Bolsonaro, Guedes, etc não fazem outra coisa.
- O mundo é esse que está aí, nós temos a receita para mantê-lo e melhorá-lo para os “eleitos” e não há Corona Vírus que nos tire do lugar.
Mesmo que isso possa significar milhares de mortos, a primeira coisa a ser feita é negar o acontecimento. Construir barragens gigantes que possam segurar a onda.
Mas não é só o desejo de morte que nega o acontecimento.
Giorgio Agamben, no final de fevereiro, escreveu um texto em que apontava para o desejo dos poderes em fazer do estado de exceção o “paradigma normal de governo” e para isso se tomava “medidas de emergência frenéticas, irracionais e completamente injustificadas”. Outra intelectual brilhante, Maria Galindo, lê a chegada das medidas restritivas na Bolívia como mais uma forma de colonização e propõe: “cultivar o contágio, se expor ao contágio, desobedecer para sobreviver.”
Em todos esses casos, em um primeiro momento pelo menos, a tentativa é olhar a novidade, o corona, sem alterar a arquitetura do pensamento – no caso do presidente não há o que alterar.
Negar o pensamento diante do acontecimento costuma ter dois desdobramentos.
O primeiro é uma violência.
– Já que meu mundo, minha estrutura, não dá conta de tamanho acontecimento, é preciso mais força, mais estacas para que eu não seja abalado. Bolsonaro e Guedes são o exemplo novamente. Diante de um evento que não se molda ao tosco neoliberalismo da dupla, é preciso ser ainda mais violento: MP das demissões, 200 reais para desempregados, negação cada vez mais enfática de que isso é só uma gripezinha. Não é de se estranhar. Aceitar o acontecimento é se deparar com a necessidade de pensamento e isso parece estar fora do espectro possível para esses homens.
O segundo é a extrema angústia, a ansiedade. Diante do acontecimento, diante de algo para o qual não nos preparamos em nossos corpos, em nossas formas de pensar, há um mundo que se desfaz, que parece obsoleto para tudo isso que nos chega. Sentir nosso mundo como insuficiente para o que nos acontece não é simples. O que conhecíamos, o que sentíamos era suficiente para navegar em duros cotidianos, subitamente não é mais.
Uma outra angústia se faz necessária, a angústia do pensamento. Uma angústia que é também uma saúde. Uma saúde que tem a vantagem de não desejar a manutenção do que era a todo custo, que não demandará a violência de negar o outro ou o pensamento. Uma saúde que terá que encontrar meios, consigo e com os outros, de aceitar que um mundo desaba, que buracos estão feitos e que aquilo que era agora nos exige outras invenções, outras formas de ficar em pé.
Diante da onda gigantesca, vale a inteligência dos surfistas.
-- Diário do entre-mundos 9 --

Diário do entre-mundos 8

O isolamento produz mudanças nas formas de comunicação. A cada dia há o retorno de algumas pessoas, de velhos amigos, amores e afetos. Somos atravessados pela morte. Não necessariamente a nossa, mas de alguns e, certamente, de um mundo.
- Não vou deixar isso tudo acabar sem falar com ele.
- Preciso saber dela antes que acabe, – não sabemos bem o que, mas que acabará é uma certeza.
E assim perguntamos por amigos, respondemos a chamadas distantes que fazem a pergunta fundamental: como você está dando conta de toda essa exigência?
Sim! São gerações que não imaginaram que passariam por tamanha exigência. Exigência de um corpo, de uma saúde que dê conta do isolamento, das velocidades enlouquecidas do momento, de uma saúde que suporte as perdas, os medos, o outro como contágio. Logo ele, logo esse outro, essa rua que nos garante um chão! No final das mensagens delicadas, amorosas, desejosas de alegria, aparece um frequente: se cuida.
A cada vez que leio esse “se cuida” preciso fazer um esforço para guardar a alegria da mensagem. Se não bastassem todos os poderes, mídia, informações que não param – e provavelmente com razão – de dizer que nada podemos, que nossos rostos devem ser cobertos, que o outro é mortífero, ainda recebemos o carinho do “se cuida”.
O “se”, do cuida, parece corroborar a distância do outro, enquanto que o vírus nos explicita que não há distância total possível. Por toda parte é com esse outro ao nosso lado que trocamos. Quando entro no taxi troco fluidos, quando vou ao supermercado, universidade, tudo.
Sim, cuidarei de mim te escrevendo, sabendo de você, disponibilizando esse tempo que na casa tem dificuldade de encontrar medidores. Sim cuidarei. É o que temos feito.
Mas o cuidar pode ser também uma não-manutenção, não repetir o que conhecemos. É preciso chegar vivo alí na frente, mas que o cuidado não seja só conservar, que o cuidado seja atravessado por estranhamentos, pela possibilidade de um novo corpo. “Se cuida” poderia ser me cuida. Ou só: cuida.
E o desejo que desse mundo que desaba apareça um cuida.
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Diário do entre-mundos 7

Uma ex-funcionária da Amazon é demitida porque, segunda ela, percebeu que as pessoas estavam adoecendo no galpão em que comandava 100 “pickers” – trabalhadores responsáveis por pegar os produtos do galpão para serem despachados -, e avisou seus superiores. Ninguém fez nada e ela procurou autoridades e a mídia. Demitida.
Funcionários da Amazon são obrigados a trabalhar horas extras – 2 dólares a mais por hora – para atender a demanda do momento.
O isolamento de alguns significa a radical exposição de outros.
Uma exposição que, associada à abstração do território, em que a rua desaparece, produz também uma abstração daqueles que sofrem. Quem está trabalhando para nós está tão longe - em algum galpão ou aeroporto da China ou dos Estados Unidos, em alguma fábrica de Bangladesh - que a exploração radicalizada, e rapidamente fatal em tempos de corona, parece pouco nos afetar.
O que já era praxe no capitalismo se torna a norma quando perdemos o território.
Sigo direitinho a quarentena, só compro pela internet.
No mesmo caminho a MP do governo que corta salários.
Em tempos de crise é necessário radicalizar a exploração.
Esse mundo que dificilmente um dia será o mesmo verá os esforços das elites em nada mudar, mas, para isso, esses poderes não terão – e já não tem – pudores em assumirem suas facetas assassinas.
Talvez as máscaras possam servir para outros fins.
-- Diário do entre-mundos 7 --

Diário do entre-mundos 6

Há alguns anos percebi que cada vez que participava de uma banca de mestrado ou doutorado online guardava pouquíssima memória do encontro. Como se a memória dependesse do corpo, do cheiro, das simpatias e afetos que circulam para além da objetividade da fala e da escuta. Como se a experiência tivesse uma relação direta com o território.
No momento em que o isolamento é necessário, esse risco de esvaziamento do território se intensifica. Os que pedem comida ou compras, podem fazer isso convocando qualquer lugar da cidade ou do mundo. “A coisa” chegará da mesma maneira: um jovem – ou nem tanto – chegará na sua porta.
Ir para uma sessão de análise, um encontro, uma reunião é fazer um caminho, chegar um pouco mais cedo, pensar em tomar ou não um sorvete e considerar a quantidade de açúcar, não ir em determinado lugar, ver os discos do vendedor da esquina, fotografar a copa das árvores ou simplesmente olhar as pessoas.
Agora, online, as coisas ganham uma objetividade que abstrai essa abundância do território. A casa é segura, mas é pobre, é repetitiva, é previsível.
Quando sairmos da quarentena, talvez o comércio local tenha desaparecido, talvez o território tenha sido uma das vítimas, talvez a possibilidade de experiências tenha minguado.
A quarentena explicita a forma como a cidade cuida, como o território, com todas as suas instabilidades, garante uma realidade, uma saúde. Na fila do supermercado, o senhor que reclama da violência da rua garante sua saúde estando ali, falando da violência da rua. A Rua é anterior aos riscos.
Talvez tenhamos escrito e lido tanto nesse momento de quarentena para tentar desenhar um território ainda inexistente. Sabemos que sem sentir o território nossa memória sobre o que nos acomete hoje será muito frágil e, se há algo que não poderemos deixar de lado é a forma como hoje somos intensamente exigidos.
-- Diário do entre-mundos 6 --