21 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 15

Por que sonhamos tanto na quarentena?
1 – Quando nos encontramos no entre-mundo, sem muitas bases para pensar o que será ali na frente e, ao mesmo tempo, repensando os ritmos, prioridades e opções da vida pré-quarentena, os sonhos são intensamente convocados como forma de trabalho subjetivo.
Ou seja, quando os elementos racionais não são suficientes para desenhar uma passagem entre o que era – e que não necessariamente precisa continuar sendo – e o que será, o trabalho onírico vem nos socorrer.
2 – Quando a vida fica restrita a um pequeno espaço, com poucos encontros, poucos cheiros, poucos desvios, o sonho vem criar um contexto, um enquadre para o que nos acontece na vida online.
Como a memória depende de todo um entorno para se fazer, nossa vida quarentenada dá poucos elementos para lembrarmos das conversas e encontros online. Os sonhos vêm nos socorrer! Com eles o que poderia se dissolver no esquecimento reaparece já transformado, montado, afetado.
3 - Há uma rebeldia no sonho. Uma rebeldia do inconsciente no momento em que somos organizados por uma hipefuncionalidade: para não morrermos ou participarmos da morte de outros, precisamos nos isolar. Já entendemos isso. Já nos confinamos por livre vontade.
Novamente, os sonhos vêm nos socorrer trazendo uma rota de fuga, uma saída honrosa para essa racionalidade que nos afasta dos outros, dos prazeres da rua, dos encontros.
Sonhar é uma forma do corpo encontrar uma escapadela em relação ao servilismo da racionalidade.
Talvez sonhemos por muitos outros motivos, claro! Mas essas experiências das intensidades oníricas, frequentemente relatadas durante a quarentena, apontam para duas belezas dos sonhos.
Por um lado, elas nos garantem que a realidade não se perderá na ausência de um contexto, de um enquadre. De maneira estranha o sonho nos garante um chão.
Por outro, o sonho nos permite um trabalho do pensamento frente à impossibilidade de uma racionalidade harmoniosa e fundada nas relações de causa e efeito.
Por fim, uma resistência em relação ao excesso de chão. Uma rebeldia em relação à servidão.
Sonhemos.
-- Diário do entre-mundos 15 --

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