Uma estranha memória se produz nesses tempos em que o trabalho, os afetos e os cuidados se fazem através de telas e apps com nome em inglês.
Um deles, inclusive, tem nome afeito ao universo da fotografia, mas se você quiser fazer um zoom, não é possível.
Um deles, inclusive, tem nome afeito ao universo da fotografia, mas se você quiser fazer um zoom, não é possível.
Não se trata de uma falsa proximidade, mas de uma proximidade que torna o corpo pouco necessário. Para muitos é um alívio: quando a sociabilidade, a presença física, os rituais profissionais ou eróticos são um estorvo, poder ficar em casa e mediar essas relações com a tela é algo muito bem-vindo.
Mas, como lidamos com a memória desses encontros?
A ausência do corpo, do cheiro e do tempo-espaço para o encontro retiram dele um enquadre. Imagine uma tela de Francis Bacon sem as linhas geométricas que circunscrevem o desfoque do rosto e as mudanças que os corpos sofrem. São aquelas linhas que garantem um chão para a transformação, para as passagens de um estado físico a outro. Essas linhas de Bacon acolhem o que acontece. Acolhem o acontecimento.
O desafio das terapias individuais pela internet, no meu entender, passa pela dificuldade de construirmos um quadro de acolhimento para a palavra. Esse quadro é feito com o espaço, com a presença física do terapeuta e com todo o entorno que acolhe a possibilidade do gesto analítico.
A memória do que nos acontece online, nos tantos skypes, hangouts (outra palavra sequestrada pela indústria) tem, justamente, seu enquadre esfacelado.
O entorno do encontro amoroso é o mesmo da reunião com o chefe. Enorme demanda para refazer um quadro, um contexto.
Sem o enquadre, sem o solo para o encontro, sem o chão para a transformação que pode se dar em uma conversa, somos convocados a inventar linhas, como as de Bacon, para sustentar os encontros.
Cada um sabe as linhas que inventa e sabe também dos prazeres em simplesmente esquecer.
Aqui voltamos aos sonhos. Temos ouvindo de muitos lados sobre a intensidade com que os sonhos estão presentes nesses tempos quarentenais. Sonha-se muito, sonha-se bizarrices, sonha-se.
Além do sonho ser essa produção inconsciente que trabalha intensamente quando estamos no impasse de um entre-mundos. O sonho é o trabalho do enquadre do que nos acontece.
Se os encontros online produzem poucas memórias, pelo menos da forma como estamos acostumados, parece ser pelos “restos do dia” que nos apropriamos dos acontecimentos. Obviamente essa apropriação não aparece como informação: “agora lembro disso ou daquilo”, mas nos sonhos aparecem intensidades, sensações, montagens que se esforçam em manter em movimento o que estamos vivendo. Não é esse o papel da memória?
Quando tudo vai para as telas, talvez possamos fazer como Bacon: inventar um chão estranho, permeável, com um mínimo de resistência para podermos deixar as transformações e encontros acontecerem.
-- Diário do entre-mundos 14 --
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