21 de abr. de 2020

Diário do entre-mundos 19

Em uma fotografia, um objeto que está perto da câmera ocupa uma grande parte da imagem, enquanto os objetos distantes ocupam pouco espaço. Nem por isso achamos que um copo é maior que o carro que passa ao longe.
O cinema brincou muitas vezes com essa facilidade que temos em entender a dimensão das coisas no espaço. O telefone em primeiro plano que parecia de tamanho normal, quando o personagem se aproxima percebemos que é, na verdade, grande mesmo, por exemplo.
O que vivemos hoje é uma perda de referência das dimensões.
Não por acaso, estamos todos os dias sendo informados do número de mortos em cada lugar, como se esse número nos desse a régua verdadeira, aquela que podemos usar mesmo!
Uma régua que ainda encontra brechas inexplicáveis, mas que, sobretudo, traz como medida de realidade a morte. Talvez ela seja sempre a medida, mas organizamos o que chamamos de realidade com as contas no final do mês, o encontro com os amigos, os desafios do trabalho, as relações amorosas, etc. Todas essas medidas de realidade, todos esses territórios, perderam a estabilidade. O que estava longe parece ocupar todo o quadro, o que era pequeno parece enorme, o que estava perto se perde de vista.
O momento nos leva a perder a dimensão das coisas, do que nos acontece, e a ansiedade dessa ausência pode vir para o primeiríssimo plano.
Como nos damos conta da medida das coisas no cinema, quando a realidade é reestabelecida?
Quando aproximamos dois objetos que conhecemos, com no caso do telefone. Ao fazer isso retomamos um território. Talvez isso nos ajude no momento. Quando tudo está sem medida, talvez seja necessário buscar aquela linha certeira, as relações com as quais temos certeza da medida. Nos colocar em relação com dimensões com as quais não temos dúvida. Não por acaso tantas relações familiares distantes têm sido retomadas, e mesmo os ódios. A imbecilidade assassina do presidente é uma boa medida, por exemplo. Dela temos certeza.
Se nada disso der certo, façamos como no cinema, novamente, com um dos olhos fechados, olhamos a mão, depois o que está um pouco mais longe, o que está bem distante e depois o céu.
Se tirar de foco já é uma saúde.
-- Diário do entre-mundos 19 --

Nenhum comentário: