Há alguns anos percebi que cada vez que participava de uma banca de mestrado ou doutorado online guardava pouquíssima memória do encontro. Como se a memória dependesse do corpo, do cheiro, das simpatias e afetos que circulam para além da objetividade da fala e da escuta. Como se a experiência tivesse uma relação direta com o território.
No momento em que o isolamento é necessário, esse risco de esvaziamento do território se intensifica. Os que pedem comida ou compras, podem fazer isso convocando qualquer lugar da cidade ou do mundo. “A coisa” chegará da mesma maneira: um jovem – ou nem tanto – chegará na sua porta.
Ir para uma sessão de análise, um encontro, uma reunião é fazer um caminho, chegar um pouco mais cedo, pensar em tomar ou não um sorvete e considerar a quantidade de açúcar, não ir em determinado lugar, ver os discos do vendedor da esquina, fotografar a copa das árvores ou simplesmente olhar as pessoas.
Agora, online, as coisas ganham uma objetividade que abstrai essa abundância do território. A casa é segura, mas é pobre, é repetitiva, é previsível.
Quando sairmos da quarentena, talvez o comércio local tenha desaparecido, talvez o território tenha sido uma das vítimas, talvez a possibilidade de experiências tenha minguado.
A quarentena explicita a forma como a cidade cuida, como o território, com todas as suas instabilidades, garante uma realidade, uma saúde. Na fila do supermercado, o senhor que reclama da violência da rua garante sua saúde estando ali, falando da violência da rua. A Rua é anterior aos riscos.
Talvez tenhamos escrito e lido tanto nesse momento de quarentena para tentar desenhar um território ainda inexistente. Sabemos que sem sentir o território nossa memória sobre o que nos acomete hoje será muito frágil e, se há algo que não poderemos deixar de lado é a forma como hoje somos intensamente exigidos.
-- Diário do entre-mundos 6 --
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