Em uma das histórias que fazem parte de um livro que lancei o ano passado, a menina ficava impressionada com a mãe que “pegava muito engarrafamento”, mas nunca era, ela própria, o engarrafamento.
A breve observação da menina parece apontar para uma operação importante dos processos subjetivos contemporâneos. Trata-se de uma a-territolialização cínica.
Se sempre foi necessário encontrar formas para continuar vivendo, cuidando dos filhos, se apaixonando, etc, apesar das misérias que nos cercam, esse aprendizado forçado parece ter sido levado a limites que desconhecíamos.
Da mesma forma que o mercado se tornou global, o consumo e nossas vidas parecem ter perdido o território. Radicalizamos um separação entre o mundo que nos afeta e o mundo que produzimos.
Essa separação demanda dois gestos que remetem ao cinismo.
O primeiro é que não há nada mais a esconder sobre os mundos que escolhemos. O presidente da Nestlé pode dizer que toda água deve ser privatizada. O presidente de uma cadeia de TV (TF1) pode dizer que faz uma programação para tornar os cérebros disponíveis para a publicidade. Um banco que acaba de ter vários crimes revelados, como o HSBC, pode chantagear um governo, etc. No nosso pequeno mundo, consumimos Neslté porque é mais simples, compramos as roupas mais baratas possíveis, apesar de sabermos que em Bangladesh as pessoas morrem sem garantias trabalhistas produzindo para Zara e Primark. Nós mesmos não temos nada a esconder, pelo contrário. Quando mando uma foto do meu celular está escrito “sent from my iphone” ou facilmente nos encontramos em rodas que falam de carros 4x4 para espaços urbanos.
Esse primeiro gesto da a-territolialização cínica nega o território – não há gente, na há terra, não há planeta – através de uma antecipação de qualquer crítica. “Eu mesmo sei o que faço e faço porque é o sistema”, digo junto com o presidente da Neslté.
O segundo gesto opera na filtragem, na separação entre o efeito do consumo para mim e para o mundo. Isso me permite ficar indignado com o trânsito mesmo estando parado sozinho dentro de um carro. Isso me permite separar o sabor e facilidade do Nespresso da poluição e das políticas dessas empresa. Fazemos assim uma montagem cínica entre as formas de usufruirmos das coisas do mundo, essas nós aceitamos, e o modo que essas formas prescindem de um território, de outras pessoas e do planeta para existir.
Separamos assim as múltiplas esferas de cada evento, de cada consumo criando um abismo entre a esfera privada e a subtração absoluta de qualquer território.
Enquanto espero os três “likes”, dissociando essa rede social da sua contribuição para a vigilância e opressão, vou tomar um “café sem cafeína”, como diria o Zizec, ou, melhor ainda, uma vodka que não dá ressaca.
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